terça-feira, outubro 06, 2009

O FILME DO LULA


No último domingo, fui ao cinema assistir, por pura teimosia, a Che 2 - a guerrilha, segunda parte da cinebiografia de Che Guevara dirigida por Steven Soderbergh. Depois escrevo a respeito. O que me chamou a atenção, na verdade, mais do que o filme, foram os trailers. Melhor dizendo, um dos trailers. Já estão anunciando o tal "filme do Lula".

Sei que é difícil falar de um filme que ainda está para ser lançado, mas o trailer dá bem uma idéia do que vem por aí. Pelo visto, o que se verá em breve nos cinemas é um samba-exaltação, uma adulação lacrimosa e reverencial do "presidente operário" (que já deixou o batente há muito tempo, diga-se). Preparem-se para uma versão romantizada e mitificada da vida do herói dos trabalhadores. Uma mistura de Gandhi, Central do Brasil e Dois Filhos de Francisco, feita sob medida para alimentar a lenda do Guia Genial e reforçar o culto à sua personalidade. Como se isso fosse necessário, aliás.

O trailer do filme de Fábio Barreto - bancado, em parte, com dinheiro público, como dez em cada dez filmes feitos no Brasil -, mostra uma casinha de taipa, em Garanhuns, agreste de Pernambuco. A atriz Glória Pires, interpretando uma mãe que acaba de dar à luz, aparece segurando um bebê. "Tu vai se chamar Luiz Inácio", diz ela, com aquele tom solene e reverente que costuma anunciar o nascimento dos messias e salvadores da pátria ou da humanidade. A câmera passa então para um caminhão pau-de-arara (todos sabem que Lula veio de pau-de-arara para São Paulo, nos anos 50). E termina focalizando o rosto de um ator que interpreta Lula, já nos anos 70, liderando uma assembléia de trabalhadores no ABC paulista (quase certamente, a famosa assembléia do estádio de Vila Euclides, em 1978). Enfim, o nascimento da lenda etc. e tal. Só não vi em nenhuma cena os companheiros Delúbio Soares e Zé Dirceu, nem o Professor Luizinho.

Posso estar enganado, mas é a primeira vez que um filme sobre um presidente brasileiro é feito enquanto ele está no governo. Isso diz muito sobre o nível mental e moral da Era Lula. Os cineastas brasileiros, como se sabe, adoram fazer obras-primas com o dinheiro público. Também não resistem a uma história (ou estória) edificante, sobretudo se o protagonista for algum líder de esquerda (se tiver origem pobre, então, é um banquete: esquerdismo sem pobrismo não é a mesma coisa). Walter Salles, por exemplo, tem uma atração irresistível por Che Guevara, o carrasco-mor de La Cabaña, em sua fase ternurinha de andarilho das Américas. Hector Babenco, mesmo não sendo brasileiro, não fica atrás no culto a velhos mitos esquerdistas tupiniquins, como o "bom bandido" e o "mau policial", como demonstrou Carandiru. Sérgio Rezende, que já cantou loas a Carlos Lamarca, vai no mesmo caminho, e seu último filme, Salve Geral, só falta dar vivas ao "sentido de justiça" dos facínoras do PCC. E por aí vai.

Qual a razão de um filme sobre Lula? Que sentido estético, histórico, ou grande lição moral, poderia advir de sua trajetória de vida? Lula nasceu pobre, é verdade, um dos muitos filhos de uma família sertaneja (na verdade, do agreste pernambucano), e foi criado pela mãe, pois o pai a abandonou quando ele era criança. Ele também foi de pau-de-arara para São Paulo, onde trabalhou vendendo laranjas no porto de Santos. Mas, fora isso, sua história não tem nada de extraordinário. (Aliás, nem isso é estraordinário: quantos políticos brasileiros vieram do nada, de baixo, para estarem hoje se locupletando? Por que não fazer um filme sobre as emocionantes trajetórias de Orestes Quércia ou de Renan Calheiros, por exemplo?) A história de Lula é, no máximo, banal. Desde quando, a não ser nos embolorados manuais marxistas, ter nascido na pobreza torna alguém melhor? E o que há de tão especial em ter sido mordido por uma jumenta aos quatro anos de idade, ou em quase perder o caminhão por ter ido fazer xixi no mato?

Se a intenção dos realizadores do filme de Lula é criar alguma forma de empatia entre a trajetória do atual presidente e o público, como sugere o título - Lula, o Filho do Brasil, retirado da hagiografia escrita por Denise Paraná -, a biografia do homenageado traz alguns sérios problemas.

Em primeiro lugar, se a idéia é emocionar com uma história de superação pessoal, feita de esforço e sacrifício, escolheram o personagem errado. Lula é exemplo de qualquer outra coisa, menos de superação individual. Para começo de conversa, só não estudou porque não quis. Sua ascensão política e social (as duas coisas são inseparáveis) não se deve ao esforço próprio, mas ao mito criado em torno de sua pessoa pela mídia e pelos intelectuais de esquerda. Estes sempre o bajularam, vendo nele o "herói da classe operária", que realizaria suas fantasias stalinistas. Hoje, Lula se gaba de não ter diploma, alimentando um culto do próprio semi-analfabetismo que constrange até seus admiradores mais fervorosos. Dificilmente um jovem de periferia que trabalha como caixa de supermercado de dia e freqüenta a escola pública à noite irá se identificar com a vida de Luiz Inácio. Como bem disse Augusto Nunes, celebrar a ignorância é uma ofensa aos pobres que estudam.
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A história de Lula é bastante conhecida: após chegar em São Paulo, fez um curso de torneiro mecânico, perdeu um dedo, virou líder do sindicato dos metalúrgicos e liderou as greves de 1978-1981. Passou por uma tragédia pessoal - sua primeira esposa morreu no parto -, conheceu Marisa Letícia e se casou de novo. Em 1981, já na fase cadente do regime militar, foi condenado de acordo com a Lei de Segurança Nacional e passou uma noite no DOPS (onde não lhe tocaram num fio de barba). Fundou o PT, candidatou-se a governador de São Paulo em 1982 (ficou em último lugar) e elegeu-se deputado federal em 1986 (com uma atuação das mais medíocres no Congresso). Passou os anos seguintes fazendo política partidária, tendo sido candidato a presidente da República quatro vezes (em 1989, 1994, 1998 e 2002), elegendo-se, finalmente, na quarta tentativa, e reelegendo-se em 2006. Nesse meio tempo, viajou muito, bravateou e foi paparicado. Essa é a história de Lula. E só.
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Eu poderia dizer mais coisas sobre o personagem, tanto o das telas quanto o da vida real. Poderia lembrar, por exemplo, que nenhum filme ou livro sobre Lula será completo se não mencionar sua paixão quase infantil por Fidel Castro, ou o mensalão, ou sua política externa pró-ditaduras. Mas seria inútil. O cinema, como as demais artes, lida não com o lado racional das pessoas, mas com o irracional, com a emotividade. Não é por acaso que grandes cineastas do passado, como Sergei Eisenstein e Leni Riefenstahl, tenham colocado seu talento e sua técnica a serviço das piores tiranias já existentes sobre a Terra. Entre a lenda e a verdade, geralmente os artistas preferem a primeira, ficam com a farsa. Os cineastas brasileiros, em sua maioria, não fogem à regra.

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