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sábado, outubro 13, 2012

HOBSBAWN E A ERA DOS IDIOTAS

Está circulando na internet um troço curioso. Trata-se de um texto-manifesto, assinado por uma certa ANPUH (Associação Nacional de Professores de História), da qual eu, apesar de graduado em História, nunca tinha ouvido falar - e da qual, pelo que segue, orgulho-me de não ser sócio.

É uma resposta (ou deveria ser) ao obituário publicado na revista VEJA do historiador inglês Eric Hobsbawn, falecido no dia 1 de outubro aos 95 anos de idade. Os senhores da tal ANPUH se mostram indignados pelo que consideram um tratamento desrespeitoso dado pela revista ao historiador marxista inglês, uma das vacas sagradas da intelligentisia esquerdista mundial e, por tabela, brasileira - o que significa: um autor obrigatório nas universidades brasileiras, sobretudo para quem não conhece outro autor e acredita que a historiografia marxista é a única existente.

O texto é um típico produto coletivo de mentes que só sabem pensar coletivamente (ou seja: que não sabem pensar). Tanto que seus autores, na ânsia de darem uma "resposta" a quem teve a ousadia de criticar um de seus ídolos (um crime, enfim, de lesa-santidade), parecem esquecer-se de fatos básicos, fundamentais. O que apenas reforça minha convicção de que os esquerdistas são guiados por um misto de cegueira voluntária e amnésia. E por nenhum senso do ridículo.

Fiz questão de transcrever o texto na íntegra. Vai em vermelho. Meus comentários vão em preto.  

ANPUH- RESPOSTA À REVISTA VEJA

09/10/2012

Eric Hobsbawm: um dos maiores intelectuais do século XX

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, faleceu o historiador inglês Eric Hobsbawm. Intelectual marxista, foi responsável por vasta obra a respeito da formação do capitalismo, do nascimento da classe operária, das culturas do mundo contemporâneo, bem como das perspectivas para o pensamento de esquerda no século XXI. Hobsbawm, com uma obra dotada de rigor, criatividade e profundo conhecimento empírico dos temas que tratava, formou gerações de intelectuais.

Não se discute que Hobsbawn foi um historiador de talento, dotado de inteligência. Falo sobre isso depois. Tampouco está em questão sua influência sobre gerações de intelectuais. O debate é outro, como se verá adiante.

Ao lado de E. P. Thompson e Christopher Hill liderou a geração de historiadores marxistas ingleses que superaram o doutrinarismo e a ortodoxia dominantes quando do apogeu do stalinismo.

Nem tanto. Hobsbawn, se procurou distanciar-se do stalinismo, depois da denúncia dos crimes de Stálin feita por Kruschev em 1956, não teve a coragem e a ousadia de abandonar o barco do comunismo nos anos seguintes. Pelo contrário: até intensificou sua militância comunista, recusando-se a criticar abertamente a URSS e justificando os milhões de assassinatos de Stálin, como veremos em seguida. Ele sempre se manteve no campo marxista, dando "apoio crítico" ao Kremlin e considerando os EUA "a maior ameaça à humanidade". Nos últimos tempos, não cansava de elogiar Lula como um exemplo de governante marxista.

Deu voz aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever. Que sequer imaginavam que, em suas greves, motins ou mesmo festas que organizavam, estavam a fazer História. Entendeu assim, o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista.

Para começar, a função do historiador, como a de qualquer intelectual, não é "dar voz aos excluídos", ou, como está acima, "aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever". Ele pode até fazer isso, mas como militante político, não como um investigador, que deve ter como único compromisso a realidade dos fatos. E a realidade da História é que as "agruras do desenvolvimento do capitalismo", ao contrário do que diz o texto, levaram à melhoria das condições gerais de vida dos trabalhadores em todos os países capitalistas europeus, conforme demonstraram, com dados e números inquestionáveis, estudiosos sérios como Ludwig von Mises (ver o seu As Seis Lições, se quiserem tirar a prova).

Mas Hobsbawm não foi apenas um "acadêmico", no sentido de reduzir sua ação aos limites da sala de aula ou da pesquisa documental. Fiel à tradição do "intelectual" como divulgador de opiniões, desde Émile Zola, Hobsbawm defendeu teses, assinou manifestos e escolheu um lado. Empenhou-se desta forma por um mundo que considerava mais justo, mais democrático e mais humano.

Aqui há uma falsidade disfarçada de verdade biográfica: Hobsbawn foi sim, além de historiador, um militante - ou um "divulgador de opiniões". Mas de maneira nenhuma essas se enquadram numa perspectiva fiel à tradição intelectual de autores como Émile Zola - Hobsbawn era comunista, Zola era um liberal e um democrata, um defensor da tolerância, famoso pela defesa do capitão Dreyfus no final do século XIX. Aliás, Hobsbawn, judeu como Dreyfus, assinou manifestos e participou de passeatas a favor do nacionalismo palestino (na época em que este sequer reconhecia o direito de Israel à existência). Aproximou-se, assim, portanto, muito mais dos detratores antissemitas de Dreyfus do que de Zola e outros paladinos da liberdade de imprensa. Algo, aliás, inexistente na defunta URSS, que Hobsbawn sempre tratou com simpatia em seus livros, como um paradigma daquilo que ele considerava um mundo "justo, democrático e mais humano"... Nada mais longe da verdade.

Claro está que, autor de obra tão diversa, nem sempre se concordará com suas afirmações, suas teses ou perspectivas de futuro. Esse é o desiderato de todo homem formulador de ideias. Como disse Hegel, a importância de um homem deve ser medida pela importância por ele adquirida no tempo em que viveu. E não há duvidas que, eivado de contradições, Hobsbawm é um dos homens mais importantes do século XX.

Deixando de lado o português arrevesado - isso de escrever "desiderato"... -, a frase de Hegel, no contexto em que está colocada, não significa rigorosamente nada: Napoleão, Hitler, Lênin e Stálin foram importantes no tempo em que viveram, e isso não acrescenta ou retira absolutamente nada do significado de suas ações. O que está em questão não é a importância de Hobsbawn - ele foi, sim, um historiador importante -, mas o valor de suas idéias. Ou, melhor dizendo: a moralidade delas.

Eis que, no entanto, a Revista Veja reduz o historiador à condição de "idiota moral" (cf. o texto "A imperdoável cegueira ideológica da Hobsbawm", publicado em www.veja.abril.com.br). Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX.

Aqui, finalmente, entramos na questão principal. Vejamos quão "barato" e "despropositado" é o julgamento da revista sobre Hobsbawn.

Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo.

Pelo menos o texto reconhece que Hobsbawn tinha contradições... Mas somente para, logo em seguida, incorrer na maior das contradições, ao afirmar que o marxista Hobsbawn tinha uma compromisso com a democracia (!). Ora, de que democracia os autores do manifesto estão falando? Se é das "democracias populares" do Leste Europeu ou da ex-URSS, então acertaram em cheio. Mas não da democracia liberal, da democracia tal qual a conhecemos, com alternância de poder, eleições livres e liberdade de associação e de expressão, a qual Hobsbawn, como todo bom marxista, dedicava um desprezo solene, tachando-a de "burguesa". E isso mesmo após a queda dos regimes soviéticos, ao contrário do que está dito acima. Preocupação com a paz e com o pluralismo? Qual pluralismo existia na finada URSS? Existe tal coisa na moribunda ditadura cubana (que Hobsbawn admirava)? Uma coisa é a contradição que é inerente a todos os homens. Outra, é a idiotice moral de justificar a morte de milhões de seres humanos em nome do que quer que seja. 

A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação.

A tal ANPUH considera desrespeitoso e irresponsável (!?) chamar Hobsbawn, por sua posição esquerdista pró-URSS, de idiota moral. E investe contra o mensageiro e não a mensagem. Deixando de lado o ódio da esquerda brasileira ao "cada vez mais desacreditado veículo de informação" - ódio que se estende aliás a todo e qualquer órgão de imprensa que não esteja sob seu controle -, devo dizer que, a meu ver, a denominação de idiota moral para referir-se a Hobsbawn não lhe faz justiça. Isso porque, ao contrário do que afirma a revista, ele não era um idiota. Idiota é quem não sabe o que faz. E Hobsbawn sabia. Ao se negar a criticar a URSS e ao justificar o morticínio de milhões de pessoas em nome de "um mundo melhor", ele mostrou mais que idiotice: mostrou cumplicidade moral com o terror e com a barbárie. Se ele fosse um idiota, desses de babar na gravata, seria melhor para ele: seria um álibi. Portanto, a VEJA foi até boazinha com ele...

O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto "historiador esquerdista", dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a "análise" acerca do falecido historiador.

Em primeiro lugar, o tratamento de "historiador esquerdista" (na verdade, "comunista"), não é dado pela revista, mas por outro historiador eminente, o igualmente britânico e também recentemente falecido Tony Judt. Este, citado no texto da VEJA, advertira Hobsbawn em 2008 que, com sua insistência ideológica em tratar de forma benigna a ex-URSS, ele seria lembrado pela posteridade não como "o" historiador, mas como "o historiador marxista" (ou "comunista"). E, de fato, foi isso que Hobsbaw sempre foi, e jamais escondeu que fosse.

Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.

São Paulo, 05 de outubro de 2012

Diretoria da Associação Nacional de História

ANPUH-Brasil

Gestão 2011-2013

Sempre desconfiei de textos escritos na primeira pessoa do plural, ainda mais referentes a toda uma categoria profissional ("Nós, historiadores"). Como se todos os historiadores estivessem representados etc. Mas deixa pra lá. É curioso como, ao mesmo tempo em que afirmam, corretamente aliás, que "os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos", os autores do manifesto buscam isentar Hobsbawn de qualquer julgamento crítico. Como se ele, Hobsbawn, estivesse acima de qualquer análise que não fosse hagiográfica - em outras palavras: acima do bem e do mal. E isso ao mesmo tempo em que caem num relativismo fácil, negando a própria validade de conceitos como bem e mal, vistos como categorias absolutas, mais em termos teológicos do que históricos ou ideológicos. (Menos, claro, se for para atacar o "imperialismo ianque" ou a besta-fera do capitalismo, mas já desisti de tentar explicar para esse pessoal que o capitalismo não é um jogo de soma zero.) 

Basta fazer um pequeno exercício para desmontar essa falácia. Imaginem se um historiador se propusesse a escrever "a" História do século XX e que, ao fazê-lo, denunciasse acerbamente os crimes do comunismo mas evitasse, de propósito, qualquer menção ao nazi-fascismo. Seria chamado, no mínimo, de intelectualmente desonesto. Agora imaginem que esse mesmo historiador fizesse declarações nas quais buscasse justificar os crimes de Hitler e de Mussolini. Algum dos signatários do manifesto da ANPUH se oporia a que se criticasse tal historiador, no mínimo como cúmplice moral dos crimes do totalitarismo nazi-fascista? Quem, em vez disso, acusaria o crítico de não levar em conta as contradições e ambiguidades do historiador, considerando a condenação moral deste como uma visão "medíocre, pequena e mal-intencionada"?

Mas deixemos que o próprio Hobsbawn responda essa questão. No artigo da VEJA, do qual o manifesto dos "historiadores" é, supostamente, uma réplica, há o relato de um episódio que os autores da "resposta" estranhamente não citam. E que apenas aumenta minha certeza de que os devotos brasileiros de Hobsbawn realmente mal e mal conhecem o pensamento e a obra do autor. Eis o episódio, uma entrevista dada em 1994 por Hobsbawn ao jornalista da BBC Michael Ignatieff (conforme relatado pelo historiador britânico Robert Conquest, autor do clássico O Grande Terror):

Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin [mais de 20 milhões de mortos apenas na principal de três ondas, fora outros milhões de mortes fora dos Expurgos] teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Este era Hobsbawn. O verdadeiro Hobsbawn. Aquele que em nenhum momento aparece no manifesto da ANPUH.

Não pensem vocês que não reconheço, na obra de Hobsbawn, qualidades, inclusive literárias. Entre suas obras, estão livros interessantes como A Era das Revoluções, A Era do Capital e a A Era dos Impérios (A Era dos Extremos, que trata do "breve século XX" [1914-1991], é o mais fraco da série, por razões ideológicas - Hobsbawn passa ao largo dos crimes do comunismo, como se tivessem sido uma nota de rodapé). Mesmo obras como Bandidos, se foram pioneiras em suas áreas de pesquisa, por enfocar temas até então relegados a um plano secundário pela historiografia tradicional, trazem consigo um forte ranço ideológico (no caso, a tese marxista do "banditismo social", que trata criminosos como "rebeldes primitivos" em luta contra uma ordem social injusta etc.).  Ele certamente foi um grande historiador e um intelectual importante, que não se rebaixava à condição de panfletário produtor de agitprop. Não era um agitador vulgar, como Noam Chomsky, ou um filósofo de quinta, como Slavoj Zízek. Mas, sinto dizer, ele foi, assim como estes, um idiota moral. A exemplo de intelectuais e figuras proeminentes da esquerda, como Jean-Paul Sartre, José Saramago e Gabriel García Márquez, que não quiseram ou não foram capazes de deixar suas preferências ideológicas e seus preconcentos anticapitalistas e antiamericanos fora de suas análises, Hobsbawn justificou o terror stalinista.  Flertou, para dizer o mínimo, com uma das faces do Mal. Talvez a pior de todas.

Hobsbawn foi um historiador inteligente, mas colocou a sua inteligência a serviço de um projeto totalitário que deixou mais de 100 milhões de mortos no século XX. E se recusou a fazer uma autocrítica consistente. Seu talento e capacidade acadêmica apenas aumentam sua culpa. E ainda há quem escreva manifestos defendendo (ou omitindo) essa sua atitude. Enfim, isso sim, uma visão pequena, medíocre e mal-intencionada. Coisa de idiotas.

quinta-feira, agosto 23, 2012

OS QUE PROPÕEM UM BANHO DE SANGUE - POR NELSON RODRIGUES

 
Num dia 23 de agosto como o de hoje, há exatos 100 anos, via a luz pela primeira vez na cidade do Recife o menino Nelson Rodrigues. Nasceu e morreu menino, olhando o mundo, como dizia, pelo buraco da fechadura.
 
A título de homenagem, reproduzo aquela que considero uma de suas melhores crônicas (ou "confissões", como ele gostava de chamar), publicada em seu livro "O Reacionário". É uma espécie de síntese do pensamento nelsonrodriguiano: polêmico, libertário, anticomunista. Genial.
 
Fico pensando como um artigo desse teor seria recebido no Brasil de hoje, cada vez mais dominado pelos cretinos fundamentais e pela bobajada politicamente correta. As patrulhas ideológicas, que foram implacáveis com Nelson Rodrigues em vida, certamente não lhe dariam trégua.
 
Afinal, não é impunemente que um escritor, dramaturgo e cronista, respondendo quais seriam suas últimas palavras, afirma em tom categórico: "Que grande besta era o Carlos Marx!"
 
Grande Nelson Rodrigues. Grande e eterno Nelson Rodrigues. (GB)
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Os que propõem um banho de sangue
 
Preliminarmente, devo confessar o meu horror aos intelectuais ou, melhor dizendo, a quase todos os intelectuais. Claro que alguns escapam. Mas a maioria não justifica maiores ilusões. E se me perguntarem se esse horror é recente ou antigo, eu diria que é antigo, muito antigo. A inteligência pode ser acusada de tudo, menos de santa.
 
Tenho observado, ao longo de minha vida, que o intelectual está sempre a um milímetro do cinismo. Do cinismo e, eu acrescentaria, do ridículo. Deus ou o Diabo deu-lhes uma cota exagerada de ridículo. Vocês se lembram da invasão da Tcheco-Eslováquia. Saíram dois manifestos de intelectuais brasileiros. (Por que dois, se ambos diziam a mesma coisa? Não sei.) Contra ou favor? Contra a invasão, condenando a invasão. Ao mesmo tempo, porém, que atacava o socialismo totalitário, imperialista e assassino, concluía a Inteligência: — “O socialismo é liberdade!”. E ainda lhe acrescentava um ponto de exclamação.
 
Vocês entendem? Cinco países socialistas estupravam um sexto país socialista. Este era o fato concreto, o fato sólido, o fato inarredável que os dois manifestos reconheciam, proclamavam e abominavam. E, apesar da evidência mais espantosa, os intelectuais afirmavam: — “Isso que vocês estão vendo, e que nós estamos condenando, é a liberdade!”.
 
E nenhum socialista deixará de repetir, com obtusa e bovina teimosia: — “Socialismo é liberdade!”. Bem. Se o problema é de palavras, também se poderá dizer que a burguesia é mais, ou seja: — “Liberdade, igualdade e fraternidade”. Mas o que importa, nos dois manifestos, é que um e outro se fingem de cegos para o pacto germano-soviético, para o stalinismo, para os expurgos de Lênin, primeiro, e de Stalin, depois, para os assassinatos físicos ou espirituais, para as anexações, para a desumanização de povos inteiros.
 
Se os intelectuais fossem analfabetos, diríamos: — “Não sabem ler”; se fossem surdos, diríamos: — “Não sabem ouvir”; se fossem cegos, diríamos: — “Não sabem ver”. Por exemplo: — d. Hélder. Bem sei que na sua casa não há um livro, um único e escasso livro. Mas o bom arcebispo sabe ler os jornais; viaja; faz um delirante e promocional turismo. E, além disso, vamos e venhamos: — nós estamos esmagados, obsessivamente, pela INFORMAÇÃO. Outrora uma notícia levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina. Hoje não. A INFORMAÇÃO nos persegue. Todos os sigilos são arrombados. Todas as intimidades são escancaradas. D. Hélder sabe que o socialismo é uma bruta falsificação. Mas, para todos os efeitos, o socialismo é a sua pose, sua máscara e seu turismo.
 
O socialista que se diz anti-stalinista é, na melhor das hipóteses, um cínico. Os habitantes do mundo socialista, por maior que seja o seu malabarismo, acabarão sempre nos braços de Stalin. Admito que, por um prodígio de boa-fé obtusa, alguém se iluda. Não importa. Ainda esse é stalinista, sem o saber.
 
Bem. Estou falando, porque estive outro dia numa reunião de intelectuais. Entro e, confesso, estava disposto a não falar de política, nem a tiro. Eu queria mesmo era falar do escrete, o abençoado escrete que em terras do México conquistou a flor das vitórias. Logo percebi, porém, que a maioria ali era antiescrete. Já que tratavam mal a vitória e a renegavam, esperei que tratassem de simpáticas amenidades.

E súbito um dos presentes (socialista, como os demais) vira-se para mim. Há dez minutos que me olhava de esguelha e, fingindo um pigarro, interpela-me: — “Você é contra ou a favor da censura?”. Eu só tinha motivos para achar uma graça imensa na pergunta. Comecei: — “Você pergunta se a vítima é contra ou a favor? Sou uma vítima da censura. Portanto, sou contra a censura”.
 
Nem todos se lembram de que não há um autor, em toda a história dramática brasileira, que tenha sido tão censurado quanto eu. Sofri sete interdições. Há meses, proibiram no Norte minha peça Toda nudez será castigada. E não foi só o meu teatro. Também escrevi um romance, O casamento, que o então ministro da justiça interditou em todo o território nacional. E quando me interditavam, que fazia, digamos, o dr. Alceu? Perguntarão vocês: — “Nada?”. Se não tivesse feito nada, eu diria: — “Obrigado, irmão”.
 
Mas fez, e fez o seguinte: — colocou-se, com toda a sua ira e toda a sua veemência, ao lado da polícia e contra meu texto. Em entrevista a O Globo declarou que a polícia tinha todo o direito, toda a razão etc. etc. Anos antes o mestre também fora a favor da guerra da Itália contra a Abissínia, a favor de Mussolini e contra a Abissínia, a favor do fascismo, sim, a favor do fascismo.
 
Não tive ninguém por mim. Os intelectuais ou não se manifestavam ou me achavam também um “caso de polícia”. As esquerdas não exalaram um suspiro. Nem o centro, nem a direita. Só um Bandeira, um Gilberto Freyre, uma Raquel, um Prudente, um Pompeu, um Santa Rosa e pouquíssimos mais — ousaram protestar. O Schmidt lamentava a minha “insistência na torpeza”. As senhoras me diziam: — “Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo”. E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são “como todo mundo”: — e daí a repulsa que provocavam. “Todo mundo” não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções.
 
Portanto, fui durante vinte anos o único autor obsceno do teatro brasileiro. Um dia, doeu-me a solidão; e fui procurar um grande jornalista. Levava a minha mais recente peça interditada, o Anjo negro. Eu queria que o seu jornal defendesse o meu teatro. Eram dez da manhã e já o encontrei bêbado. Era um homem extraordinário. Um bêbado que nem precisava beber. Passava dias, meses sem tocar em álcool e, ainda assim e mais do que nunca, bêbado. Recebeu-me com a maior simpatia (e babando na gravata). Ficou com o texto e mandou-me voltar dois dias depois. Quando o procurei, no dia certo, continuava embriagado. Devolveu-me a cópia; disse: — “Olha aqui, rapaz. Até na Inglaterra, que é a Inglaterra, há censura. O Brasil tem que ter censura, ora que graça! Leva a peça. Essa não. Faz outra e veremos”.
 
Quanto à classe teatral, não tomou conhecimento de meus dramas. No caso de Toda nudez será castigada, seis atrizes recusaram-se a fazer o papel, por altíssimos motivos éticos. Claro que tanta virtude me deslumbrara.
 
Volto à reunião de intelectuais. Estava lá um comunista que merecia dos presentes uma escandalosa e diria mesmo abjeta admiração. Era talvez a maior figura das esquerdas. Comunista de partido, tinha sobre os outros uma ascendência profunda. Em torno dele, os demais assanhavam-se como cadelinhas amestradas. Um ou outro é que preservara uma sofrível compostura. E então o mesmo que me interpelara quis saber o que o grande homem achava da censura. Ele repetiu: — “O que é que eu acho da censura?”. Apanhou um salgadinho e disse: — “Tenho que ser contra uma censura que escraviza a inteligência”.

As pessoas se entreolhavam, maravilhadas. Quase o aplaudiram, e de pé, como na ópera. Um arriscou: — “Quer dizer que”. O velho comunista apanhou outro salgadinho: — “Um homem como eu jamais poderia admitir a censura”. Foi aí que dei o meu palpite. Disse eu. Que foi mesmo que eu disse?

Disse-lhe que um comunista como ele, membro do partido ainda em vida de Stalin, não podia sussurrar contra nenhuma censura. Devia querer que o nosso governo fizesse aqui o Terror stalinista. Devia querer o assassinato de milhões de brasileiros. Não era assim que Lênin e Stalin faziam com os russos? E ele, ali presente, devia querer a interdição de intelectuais nos hospícios, como se doidos fossem. A Inteligência que pedisse liberalização tinha que ser tratada como uma cachorra hidrófoba. Mao Tse-tung vive de Terror. Vive o Terror. Mao Tse-tung é Stalin. Lênin era Stalin. Stalin era Stalin. Quem é a favor do mundo socialista, da Rússia, ou da China, ou de Cuba, é também a favor do Estado assassino.
 
Fiz-lhes a pergunta final: — “Vocês são a favor da matança do embaixador alemão?”. Há um silêncio. Por fim, falou o comunista: — “Era inevitável”. E eu: — “Se você acha inevitável o assassinato de um inocente, também é um assassino”. E era. Assassino sem a coragem física de puxar o gatilho. Parei, porque a conversa já exalava a febre amarela, a peste bubônica, o tifo e a malária. Aquelas pessoas estavam apodrecendo e não sabiam.
[3/7/1970]

terça-feira, agosto 09, 2011

OS DEVANEIOS DO VELHINHO

De vez em quando alguém me manda um link na área de comentários, geralmente para um texto ou uma entrevista de alguma vaca sagrada do esquerdismo nacional. Aconteceu de novo. Um anônimo, provavelmente mais um da sinistra – essa gente adora se apoiar nas palavras de figuras do tipo, agindo como abelhas, guiados por feromônios –, remete a uma entrevista de Antonio Candido, um dos medalhões da esquerda tupiniquim (foi fundador do PT e o escambau), à revista “Brasil de Fato” (um dos panfletos chapa-branca crias da era lulista, como a Carta Capital). O texto é inacreditável. A começar pelo título, que diz tudo: “O socialismo é uma doutrina triunfante”. Levado por uma, como direi?, curiosidade mórbida, acabei lendo o troço. E não resisti a fazer também meus comentários.

Selecionei a parte mais, digamos, controversa da entrevista. Depois de discorrer sobre literatura e dizer que está afastado de todas as novidades há 30 anos – ele diz não saber o que é e-mail – o professor Antonio Candido trava o seguinte diálogo com a entrevistadora-fã (botei em negrito alguns trechos):

Brasil de Fato – O senhor é socialista?
Antonio Candido – Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria.

Ao ler o que está aí em cima, voltei à minha infância. Lembrei imeditamente do Didi Mocó: "Cuma???" O socialismo, uma “doutrina triunfante”??? É isso mesmo, professor?

Nem vou me concentrar nessa questão, por ora. Prefiro comentar as palavras de Antonio Candido sobre os primórdios da indústria capitalista, que, segundo ele, foram algo assim como o inferno de Dante. Esse tipo de afirmação é corrente desde os romances de Dickens. Mas aí eu me pergunto: e o que havia antes? O feudalismo. E, no feudalismo, como era a vida? Certamente, não era nenhum mar de rosas. Desconfio que Antônio Cândido jamais leu Von Mises. Se o fizesse, perceberia que, no capitalismo, as condições de vida MELHORARAM de forma geral, inclusive para o operariado.

Mas cortei um parágrafo da entrevista. Vejamos o que diz o gênio:

Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

Ai, ai.... (longo suspiro). Qualquer um, mesmo um militante do PSTU, deve ter sentido, ao ler essas palavras, aquela sensação desconfortável que a gente costuma chamar de "vergonha alheia". Trata-se de uma visão primária, infantil mesmo, do que seria o socialismo – Antonio Candido o descreve como se fosse um misto de conto-de-fadas e de livro do Gabriel Chalita. Até para os padrões marxistas, tal conceito de socialismo é de uma superficialidade inacreditável, ginasiana. É constrangedor ver um ancião de 93 anos de idade com idéias tão esclerosadas, dignas de uma cartilha do PT ou do PSOL. Chega a ser tocante.

A opinião de Antonio Candido sobre a suposta miséria dos trabalhadores no capitalismo, por exemplo, é de fazer corar de vergonha até o mais burocrático editor do "Pravda". Para ele, as conquistas sociais se devem ao socialismo, não existe capitalismo com face humana etc. O fato de o capitalismo ser o sistema econômico que mais produziu riqueza na história da humanidade e – o que é mais importante – o ÚNICO capaz de conciliar lucro com liberdade (e as tais conquistas sociais) não existe para o velho socialista Antônio Cândido. É o capitalismo, esse bicho-papão...

Mas o mais incrível vem na explicação de Antonio Candido para sua última afirmação ("O socialismo só não deu certo na Rússia" - e em nenhum outro lugar, esqueceu-se de dizer):

Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.

Ah bom! Agora entendi tudo. O que deu errado na URSS não foi o socialismo; não foi a ditadura do proletariado; foi o... capitalismo!

Agora só falta botar a culpa pelos fuzilamentos, pelas torturas, pela censura e pelos milhões de mortos nos campos de concentração na Casa Branca ou nos banqueiros de Wall Street. Santo Deus!

Falando sério: uma das coisas mais desonestas que existem é essa lengalenga de que tudo de bom que existe no capitalismo se deve ao socialismo. É uma das maiores mentiras que alguem já inventou. Mesmo que fosse verdade, gostaria de saber por que o Gulag teria sido necessário para que existissem hoje décimo-terceiro salário e férias remuneradas.

Brasil de Fato – O socialismo como luta dos trabalhadores?
Antonio Candido – O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o trabalhador.


O "grau de igualdade de hoje", que segundo Antonio Candido foi obtido "pelas lutas do socialismo" foi proporcionado pelo próprio capitalismo, que tem no lucro e na propriedade seu grande fator equalizador (não os laços de parentesco ou os títulos de nobreza). Mas lembrar esse fato talvez seja pedir demais ao cérebro de Antonio Candido.

Agora, estão prontos para ter uma aula de precisão conceitual e de rigor lógico? Então lá vai:

Brasil de Fato – Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?
Antonio Candido – Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola… não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser… o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.


Acredito que nem mesmo um primeiranista de ciências sociais na USP ou na UnB teria muita dificuldade em perceber a total confusão de conceitos que Antonio Candido faz acima. Primeiro, ele diz que o sistema ideal não precisa ser socialista. Depois, que o sistema que melhor pode conciliar a ambição econômica com a igualdade é o... socialismo. Em seguida, proclama que o mundo está caminhando para isso. Mas nem ele sabe ao certo o que viria a ser esse sistema, de modo que só posso concluir que ele não tem mesmo a menor idéia do que está falando...

Isso fica claro quando o professor destila sua definição de socialismo como o "máximo de igualdade econômica", entendida por ele como igualdade salarial. O que Marx diria disso?

As palavras de Antonio Candido me fizeram lembrar de uma entrevista que o Lula deu anos atrás, antes de ser presidente. Na ocasião, o Apedeuta se disse socialista, mas confessou não saber exatamente como seria o socialismo se fosse um dia aplicado no Brasil. Não tinha idéia do que seria. A pergunta é: por que eu deveria apoiar algo que ninguém sabe ao certo do que se trata?

Mas esperem! O ápice da entrevista – e da sabedoria de Antonio Candido – vem agora.

Brasil de Fato – O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?
Antonio Candido – O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo.


É, o socialismo "humanizou" o mundo. Pena que foi a um preço, digamos assim, um pouco alto: algo como uns cem milhões de mortos... Vejamos como esse sistema maravilhoso fez isso em um lugar específico citado por Antonio Candido como modelo de igualdade entre os homens.

Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social.

Se eu precisava de algo que me convencesse, de uma vez por todas, que o capitalismo é mesmo o melhor sistema e que esse papo de socialismo é mesmo coisa de gente de miolo mole, o venerável professor Antonio Candido acabou de me proporcionar o argumento definitivo: para ele, o mais próximo de justiça social que existe é... Cuba!!!

Precisa comentar?

Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio.

E a castradura cubana, pelo visto, não tem nada de fanatismo, seria esse tal "socialismo democrático" de que fala Antonio Candido. Parece que, para ele, se Aristóteles estivesse vivo, concordaria que Cuba é o juste milieu. Seria, certamente, um militante bolivariano...

Acho que o que vai acima dá bem uma idéia de como funciona uma mente genial como a de Antonio Candido, um dos heróis da intelectualidade uspiana – o que dá também uma idéia da indigência mental de nossos intelelequituais. O resto da entrevista é pura louvação ao socialismo, "a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano" etc... Quando li isso, confesso que quase chorei; lembrou meus 14 anos.

Nem tudo na entrevista de Antonio Candido é delírio esquerdóide. Pelo menos numa coisa vou concordar: em certo momento, ele diz que o capitalismo atual está embebido de socialismo. É verdade! Vejam o "capitalismo" brasileiro, feito de dinheiro público distribuído à larga pelos companheiros em ministérios que já viraram balcões de negócios. Antonio Candido cita como prova do “triunfo do socialismo” o fato de que até figuras como Maluf falam hoje em justiça social. Deve ser porque Maluf, assim como Collor e Sarney, agora é lulista de carteirinha.

No final, Antonio Candido aproveita para fazer altos elogios ao MST, em especial à "preocupação cultural" do movimento, o que segundo ele não havia em movimentos anteriores. Ele diz que isso "é uma coisa muito bonita" do MST. De fato, é muito bonito ver os filhos dos invasores aprendendo a odiar o capitalismo e a venerar grandes humanistas como Mao Tsé-tung e Che Guevara em alguma universidade mantida pela gangue. Sem falar que, de economia, a turma de João Pedro Stédile entende bastante. Principalmente como tungar o Erário...

Antonio Candido diz ainda:

É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento, informação, notícia… Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. [...]

E Antonio Candido não sabe ainda que o Muro caiu. Empatou, né?

Um dos ensinamentos que ficaram da minha infância foi o respeito à opinião dos mais velhos. Mesmo que essa opinião seja absurda, não importa: é uma questão de respeito, de reverência, pelos anos vividos. Minha bisavó morreu aos 99 anos jurando de pés juntos que o homem não tinha ido à Lua. Não adiantava tentar argumentar, mostrar o video da aterrissagem, ela fincava pé: fora tudo encenação, como nos filmes de Hollywood etc. Durante um tempo tentei convencê-la, mas acabei desistindo. Concluí que era mesmo muito difícil para uma pessoa nascida no século XIX acreditar em um evento de tal magnitude. Era algo além de sua compreensão. Além do mais, provavelmente pensar assim a deixava feliz. Para quê contrariar a velhinha?

Desde que Oscar Niemeyer cometeu um artigo inacreditável na Folha de S. Paulo em que elogia um livro que não leu sobre Stálin - e que afirma exatamente o contrário do que ele escreveu a respeito de seu grande ídolo -, eu não lia tanta besteira sobre socialismo saída da boca de um medalhão da esquerda tupiniquim. Antonio Candido, 93 anos, não foge à regra da senilidade esquerdista (a última vez que ouvi falar do professor, ele estava discursando para um bando de baderneiros profissionais em meio a uma “greve” na USP; na ocasião, ele deu o seguinte conselho aos revolucionários juvenis do toddyinho e dos sucrilhos: “sejam justos e injustos”). Ao ler a entrevista, lembrei de Antero de Quental, escritor português do século XIX, que certa vez, numa célebre polêmica literária, respondeu a um desafeto com os seguintes termos:

Innovar é dizer aos prophetas, aos reveladores encartados: «ha alguma cousa que vós ignoraes; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; ha mundo além do circulo que se vê com os vossos oculos de theatro; ha mundo maior do que os vossos systemas, mais profundo do que os vossos folhetins; ha universo um pouco mais extenso e mais agradavel sobre tudo do que os vossos livros e os vossos discursos.»

Fico tentado a responder a Antonio Candido com as palavras acima. Mas então me lembro que ele tem 93 anos. Para quê contrariar o velhinho?

Afinal, não nos esqueçamos: o sobrenome dele é “Cândido”.

sábado, junho 11, 2011

RETRÁTU DU INTELEQUITUAU BRAZILÊRU

Se tem uma coisa que realmente me tira do sério, quase tanto quanto xingar minha mãe, é quando alguém me chama de intelectual.

Nessas horas, fico indignado. Eu, intelectual? De jeito nenhum. Não no Brasil de hoje.

Para ser considerado intelectual no Brasil da era da mediocridade lulopetista, o sujeito precisa preencher alguns requisitos básicos. Não me enquadro em nenhum deles. Muito pelo contrário. Sou o exato oposto do que se convencionou chamar de intelectual na terra dos papagaios.

Alguns requisitos essenciais para fazer parte da nem-tão-seleta categoria dos "intelectuais brasileiros" já foram analisados por Olavo de Carvalho - certamente o exemplo perfeito de anti-intelectual tupiniquim - no artigo Ética do Intelectual Brasileiro. Ou: Como Tornar-se uma Pessoa Maravilhosa, publicado em seu livro de 1996, O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Vou apenas tentar atualizá-los aqui. São os seguintes:

- Não ter idéias próprias. O legítimo representante da intelligentsia brasileira está sempre acompanhando o rebanho; jamais se atreve a dele se desviar um milímetro sequer e a trilhar um caminho próprio. Seu principal compromisso, acima de tudo, é com a própria grei, o partido ou o sindicato, também agrupados sob a denominação comum de pessoas maravilhosas. Ele coloca as afinidades político-ideológicas e pessoais de amizade ou geração acima da verdade. Para tanto, converte-se em simples repetidor de slogans, incapaz de elaborar um pensamento original, por menor que seja, sobre qualquer assunto. Sua meta primordial, sua razão de viver, é jamais destoar do que pensa o "coletivo".

Geralmente aboletado em algum departamento de universidade pública brasileira (convertido, portanto, em intelectual estatal), onde sente-se à vontade em meio a seus semelhantes, e onde geralmente possui um séquito próprio (além de verbas oficiais), nosso herói está sempre disposto a puxar o saco de seus parceiros (o que inclui autoridades), comprazendo-se no beletrismo e no elogio complacente. Assim espera, claro, receber o mesmo tratamento de seus pares, numa masturbação coletiva sem fim. Escreve (quando escreve) artigos sempre elogiosos e que visam a não desagradar ninguém, ou textos de teor lírico e supostamente "profundos" sobre coisas do cotidiano, esforçando-se para mostrar que é um cara sensível e para ser tão incisivo quanto uma canção dos Teletubbies. Para demonstrar sua solidariedade de classe, sempre que um da turma estiver encrencado por causa de uma besteira que fez ou disse, ele está a postos para colocar sua assinatura em um "manifesto de intelectuais" a favor do encrencado - sendo esta, muitas vezes, sua única produção intelectual.

Mais do que tudo, o verdadeiro intelectual brasileiro busca a aprovação de seus cumpinchas, vendo nisso o critério superior e definitivo, o selo de qualidade a atestar sua ciência e sabedoria. Por esse motivo, e para não cometer o terrível pecado de destoar da manada, ele idolatra Chico Buarque, "um dos maiores intelectuais brasileiros".

- Ser contra o capitalismo e os EUA (não importa quem estiver no poder). O típico intelectual brasileiro é devoto da religião antiamericana, embora alguns não aceitem ser chamados de antiamericanos (são capazes até de ficar indignados se alguém os chamar assim). Deseja ardentemente ver os EUA na sarjeta, e adoraria ver o lugar da pátria de Thomas Jefferson como maior potência mundial tomado pela China, assim como até há pouco desejava que esse posto fosse ocupado pela finada União Soviética. No máximo, alegra-se pela eleição do Obama porque ele é negão e sua vitória foi uma "vitória contra o racismo" etc., tomando o cuidado de rotular de racista e nazista qualquer um que tiver a ousadia de fazer perguntas inconvenientes sobre o atual presidente norte-americano (ou "estadunidense", como prefere dizer). Se obrigado a falar sobre coisas como direitos humanos, enche-se de indignação contra as ações dos EUA na guerra contra os terroristas islamitas da Al-Qaeda, como o waterboarding de prisioneiros, ao mesmo tempo em que acha um exagero típico da Guerra Fria pedir democracia em Cuba e chamar Fidel Castro de ditador, por exemplo.

O intelectual brasileiro que se preza está sempre pronto a escrever (isso, claro, quando escreve) rios de tinta criticando "os males do capitalismo" e a "desumanização da sociedade de consumo" (da qual, aliás, se beneficia com prazer), mas não tem uma palavra a dizer sobre a falta de liberdade e as torturas de presos políticos nos regimes totalitários comunistas do passado e do presente, assim como em outras ditaduras apoiadas pelos companheiros no poder, como a do Irã. Vez ou outra, ele diz uma palavra a favor de Marx, repetindo o chavão, por exemplo, de que a última crise econômica global "comprovou a atualidade do pensamento marxista" - embora, na maioria dos casos, jamais tenha lido uma linha de O Capital em toda a vida. Mas ler, para ele, não é importante (como veremos adiante).

- Acima de tudo, o intelectual brasileiro por excelência é de esquerda. Sendo assim, ele acredita piamente que tudo que não for de esquerda só pode ser a encarnação do tinhoso. Mesmo sem ter a menor idéia de quem foram Edmund Burke, Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises, Ortega y Gasset e Milton Friedman, ele está sempre disposto a satanizar autores liberais e de direita. Geralmente filiado ou simpatizante do PT ou do PSOL, ele gosta de se queixar da "mídia" (geralmente acrescida dos adjetivos "burguesa" ou "conservadora"), a ponto de acreditar que os tucanos e a VEJA são de direita... Se perguntado o que ele é, ele dirá socialista ou anarquista, ou então "pós-moderno" e até mesmo "niilista". Mas jamais (jamais mesmo!) liberal ou conservador, termos que, para ele, têm quase o mesmo significado de "fascista" - aliás, ele usa e abusa dessa expressão, "fascista", empregando-a sempre para desqualificar quem dele discorda.

Alguns membros dessa confraria de iluminados que são os intelectuais brasileiros tentam se diferenciar (mas só um pouquinho...) do restante da manada, posando de "neutros" ideologicamente, afetando superioridade moral e colocando-se acima ou além das ideologias. Em geral, gostam de repetir mantras como "esquerda e direita são conceitos ultrapassados", enfatizando, assim, seu caráter pós-ideológico. Mas não lhes peça para condenar a corrupção petista ou regimes políticos como o cubano. Nesse caso, é grande o risco de você ser tachado por ele de reacionário ou "proto-fascista"... Nesses momentos, a alegada neutralidade vai para o beleléu e aflora o militante.

- Sendo de esquerda, o autêntico exemplar da classe intelectual no Brasil é, claro, um "progressista". Ele é, portanto, a favor da legalização do aborto e do casamento gay, assim como da legalização das drogas - mas é visceralmente contra o cigarro e o álcool, porque afinal são "indústrias". Sempre em sintonia com a opinião da maioria de sua espécie, ele não vê problema algum em se dizer pró-democracia e defender, ao mesmo tempo, o fim da liberdade de expressão (sobretudo religiosa), mediante uma lei que, se aprovada, irá instituir o delito de opinião, encarando-a como um "avanço na luta pelos direitos civis" dos homossexuais, que serão colocados, assim, num pedestal acima dos demais cidadãos, sujeitos a irem parar na cadeia por citarem a Bíblia ou por uma piada de bar considerada "homofóbica". Além disso, é um inimigo ferrenho do racismo, tanto que defende a sua institucionalização mediante um sistema de cotas e um tribunal de pureza racial inspirado na África do Sul da época do apartheid (detalhe: em um país de mestiços). Também é um pacifista e um humanista, pois é um defensor ardoroso da idéia de desarmar a população mediante a proibição do acesso a armas de fogo adquiridas e registradas legalmente - embora não mostre o mesmo ardor em relação à idéia de reprimir o crime organizado e colocar os bandidos atrás das grades (afinal, a polícia é uma instituição reacionária e fascista...).

- Mente ilustrada, nosso intelectual não perde a chance de atacar violentamente a Igreja Católica, cobrindo-a com os piores epítetos (intolerante, homofóbica, antro de pedofilia etc.). Ao mesmo tempo, cala-se diante da perseguição a minorias nos países islâmicos, considerando isso preconceito contra o Islã. Quanto a religião, declara-se ateu, agnóstico ou adepto de algum culto da moda, de preferência oriental (budista, hare krishna, santo daime ou satanista light), mas nunca, NUNCA, católico (ou membro de alguma denominação tradicional protestante, como os luteranos ou metodistas). Enfim, vale qualquer coisa, menos a religião dos "brancos ocidentais imperialistas" etc.

- Finalmente, para ser intelectual no Brasil não é preciso sequer conhecer a língua portuguesa. Intelectual brasileiro que honra o nome manda às favas a última flor do Lácio. Para ele, o respeito às regras gramaticais é coisa da elite burguesa, e corrigir alguém por falar (ou escrever) "nóis pega os peixe" ou "os livro está emprestado" é "preconceito lingüìstico". Faz abertamente a apologia do erro e o culto da ignorância, enaltecendo a "língua de pobre" contra a norma culta, que seria um "instrumento de dominação da burguesia" (rotulando os pobres que estudam, portanto, de burgueses). Tendo como ideologias o vitimismo e o pobrismo, advoga a idéia imbecil de que ter nascido pobre é uma licença para todo tipo de desatino (corrupção inclusive), e apresenta-se como defensor da cultura "popular" ou "da periferia" contra a cultura "burguesa" ou "do centro", numa reprodução tosca e idiota da velha "teoria da dependência". Chega mesmo a aplaudir um ex-presidente semi-analfabeto que tortura o idioma, chamando de "preconceito elitista" lembrar que ele só não estudou porque não quis. Do mesmo modo, acha que criticar uma presidente por não dizer coisa com coisa (sem falar nas mentiras) é "machismo". É alguém que considera perfeitamente normal um ministro da educação ou um professor universitário falar (ou escrever) "cabeçário", "fusilar" (com S) e "Getulho" (com LH).

Resumindo: por favor, não me chamem de intelectual. Pelos seguintes motivos:

O típico intelectual brasileiro sofre de carência afetiva e de necessidade de aprovação. Eu não padeço desse mal, e não me importo de ser impopular. Acho, aliás, que a impopularidade é quase um dever de quem busca a verdade.

O típico intelectual brasileiro está comprometido, acima de tudo, com os de sua grei. Meu único compromisso é com minha consciência.

O típico intelectual brasileiro ama o povo. Eu não. E acho que o povo tem mais é que ser educado para sair do estado semi-bárbaro em que se encontra.

Não é só o povo que precisa de um banho de civilização. Os intelequituais também. De civilização e de vergonha na cara.