terça-feira, outubro 20, 2009

EIS UM DEBATE


Reproduzo, a seguir, resposta de Reinaldo Azevedo ao representante do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), embaixador Ruy Casaes, sobre a questão de Honduras. Fiz questão de enviar o artigo, por e-mail, a uns amigos meus que estão trabalhando junto à representação brasileira na OEA, em Washington. Trata-se de algo raro, sobretudo no Brasil, sobretudo no Itamaraty, sobretudo na Era Lula: um debate.

Contextualizando: Casaes enviara a RA uma réplica a seu texto "Uma Formidável Coleção de Asneiras", publicado no blog do jornalista em 27 de setembro (http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/uma-formidavel-colecao-de-asneiras/). Casaes expõe o ponto de vista do governo Lula, segundo o qual houve golpe de estado em Honduras, cuja vítima foi Manuel Zelaya. RA rebate essa afirmação, com base no que diz a própria Constituição de Honduras, em especial seu Artigo 239. Ele aborda ponto por ponto as observações do embaixador brasileiro, a partir de uma argumentação essencialmente jurídica.

Já expus, aqui, minha opinião sobre o assunto. Basta rolar a página para baixo e ver meus outros posts para saber o que penso a respeito. Então, não vou emitir, neste post, nenhum juízo de valor. Acredito que o debate a seguir deixa claro quem está com a razão e quem não está. Leiam e tirem suas próprias conclusões.

***

Respondo ao embaixador Ruy Casaes em azul. O texto dele segue em vermelho. Faço uma pequena inversão, começando, literalmente, pelo fim de sua mensagem:

e.t. A propósito, não sou ignorante em direito. Formei-me em direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro há exatos 40 anos.
Também não sou ignorante em direito. E não cursei direito em lugar nenhum. Fiz outras faculdades, mas me arrependo por ter perdido tanto tempo. Aliás, esta é uma das minhas diferenças com Lula: ele não estudou, diz que lamenta não ter estudando, mas, de fato, tem orgulho da sua condição. Eu estudei, não costumo lamentar em público, mas não tenho orgulho disso. Ao que interessa.

Prezado Reinaldo Azevedo,
li com interesse sua matéria “Uma formidável coleção de asneiras”, que verifico, lamentavelmente, não refletir com exatidão os comentários que fizera ao jornalista Gustavo Chacra, do Estadão. Confesso que não li a matéria publicada no Estadão. Li, sim, em sua coluna algumas afirmações minhas, que foram transcritas, definitivamente, fora de contexto. Para sua informação — e eventualmente de seus leitores —, procurarei repetir o que disse e que tenho dito sobre o golpe de estado em Honduras.
Caro embaixador, o jornalista Gustavo Chacra reproduziu rigorosamente o seu pensamento. Todas as suas objeções devem ser endereçadas às minhas opiniões. Conforme fica claro no aludido post, que reproduz trecho da reportagem de Chacra, ele foi absolutamente preciso: tudo o que está lá coincide com o seu pensamento, reiterado abaixo.

Sobre a Constituição hondurenha e as Constituições brasileira e colombiana
Ao comparar as três Constituições, procurei mostrar ao jornalista do Estadão que não é usual que os dispositivos relativos ao mandato presidencial se constituam em cláusulas pétreas.
Ruy Casaes deve concordar comigo que os países não fazem constituições segundo usos e costumes. Até porque inexistem usos e costumes de alcance mundial ou mesmo regional. Se as Constituições do Brasil e da Colômbia não tratam o mandato presidencial como cláusula pétrea, a de Honduras trata. Podemos até achar estúpido que os hondurenhos tenham feito tal escolha. Mas certamente o embaixador não deve achar correto que os forcemos a mudar de idéia.

No Brasil como na Colômbia, as Constituições adotadas, respectivamente, em 1988 e 1991, não previam a possibilidade de reeleição. No Brasil, não poderia ser imediata; na Colômbia, jamais. As circunstâncias políticas, entretanto, ensejaram emendas constitucionais em um e em outro país que passaram a permitir a reeleição do Presidente da República (no Brasil, inclusive, para outros cargos nos Poderes Executivos Estadual e Municipal). Mencionei a título de exemplo fora do continente americano mudança na duração do mandato presidencial francês, que passou, há relativamente pouco tempo, de 7 para 6 anos. Em nenhum momento, disse que o artigo da Constituição hondurenha que trata da matéria não fosse uma cláusula pétrea. Disse, sim, que, habitualmente, as cláusulas constitucionais pétreas tratam de princípios e valores. Quanto à figura da reeleição, as mudanças nas Constituições brasileira e colombiana não são exemplos únicos.
Sugiro que o senhor releia o post que contesta. Nem Gustavo Chacra nem eu afirmamos que o senhor negou que a questão da reeleição fosse uma cláusula pétrea. Aliás, este é exatamente o problema: o Brasil — e, se quiserem, a comunidade internacional — trata Honduras e sua Constituição como se tal dispositivo não existisse. E ele existe. Todas as referências aos demais textos constitucionais são absolutamente ociosas ou interessam, sei lá, ao estudo do direito comparativo. E daí que a questão não esteja entre os dispositivos imutáveis no Brasil, na Colômbia ou na França??? O que isso quer dizer? Nada!!! Ou agora devemos convidar Honduras a consultar a Carta de outros países antes de tomar suas medidas? Ora, embaixador, o que foi que escrevi naquele post, no seu trecho mais manso? Isto: “A sua [de Casaes] referência às Constituições da Colômbia e do Brasil dá prova de sua ignorância. Nestas duas Cartas, inexiste o artigo que proíbe a apresentação de dispositivos que facultem a reeleição.” Com isso, queria e quero dizer o óbvio: no Brasil e na Colômbia, apresentar emendas ou propostas visando à mudança da Constituição neste aspecto não ofende a… Constituição! Em Honduras, sim! Será que o país deve se tornar pária por isso?

Em tempo: o mandato presidencial na França foi reduzido de sete para CINCO ANOS, não para seis, conforme o senhor diz.

Sobre o “tempo para instituir a possibilidade de um novo mandato”
Mais uma vez seus comentários não refletem absolutamente o que disse ao jornalista do Estadão. Visivelmente estão fora de contexto. O que realmente afirmei foi que a alegação de que, ao propor uma consulta popular, o Presidente Zelaya queria reeleger-se, era falsa na medida em que, se houvesse uma “quarta urna” (lembro a respeito que o que o Presidente pretendia era fazer uma consulta de caráter não vinculante no dia 28 de junho, justamente o dia em que foi deposto), esta se daria no mesmo momento em que um novo presidente estaria sendo eleito. Assim, os meus comentários ao jornalista do Estadão indicavam a impossibilidade material de que o Presidente Zelaya fosse reeleito, ademais porque nem candidato era. Seus comentários a respeito de minhas palavras sobre este ponto não traduzem, portanto, aquilo que efetivamente disse.
De novo, eu o convoco a fazer justiça a Gustavo Chacra. A sua fala, que ele reproduziu, está absolutamente de acordo com o que vai acima, a saber: “Não haveria tempo para realizar isso. Afinal, quando a Constituinte fosse aprovada, em novembro, um novo presidente teria sido eleito. Zelaya não teria como se candidatar.” Quem considerou e considera absurda a sua opinião sou eu. Respondi naquele post e respondo agora: “Sua argumentação de que não haveria tempo para instituir a possibilidade de um novo mandato é estúpida. A violação de um dispositivo constitucional não se caracteriza em função do tempo que levaria para que a transgressão produzisse efeitos.” O senhor entendeu, não é? Ademais, pouco importa se daria tempo ou não: ele violou o Artigo 239 da Constituição e, ATENÇÃO!, FOI AUTOMATICAMENTE DEPOSTO. Refrescado a memória:

“O cidadão que tenha desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou indicado. Quem transgredir essa disposição ou propuser a sua reforma, assim como aqueles que o apoiarem direta ou indiretamente, perderão imediatamente seus respectivos cargos e ficarão inabilitados por dez anos para o exercício de qualquer função pública”.

Quando Zelaya deixou o país, nem presidente era mais segundo a Carta Magna do país. O senhor pode não gostar daquele texto, mas não pode impedir os hondurenhos de aplicá-lo. Há um monte de tolices na Constituição do Brasil. Nem por isso devemos pregar o desrespeito à Carta. Oui devemos?

Sobre a deposição do Presidente de Honduras
As questões internas de Honduras dizem respeito exclusivamente ao povo hondurenho. Este princípio está recolhido tanto na Constituição brasileira (Artigo 4, inciso IV), quanto na Carta da Organização dos Estados Americanos (Artigo 3, alínea e), que consagram, como tantas outras cartas constitutivas, o princípio de não-ingerência nos assuntos internos dos Estados.
Perfeitamente! O primeiro na imprensa brasileira a lembrar que os senhores, do Itamaraty, estão violando a Constituição do Brasil e a Carta da OEA ao permitir que a embaixada brasileira se transforme em plataforma de pregação da guerra civil fui eu. Com base nestes mesmos princípios que o senhor proclama. A propósito: os senhores já definiram qual é o status de Zelaya em nossa embaixada? Ele é “hóspede”, como dizem? Hóspedes de embaixadas brasileiras usam o “território” para fazer política? Cheguei a pedir o impeachment de Celso Amorim com base na violação do Artigo 4 da Constituição e no que dispõe a Lei 1.079. Ou o senhor nega que aquilo a que se dedica o Brasil seja “ingerência”?

O que justificou a participação da OEA e da comunidade interamericana foi ter Honduras descumprido a Carta Democrática Interamericana, que foi concebida para promover e defender a ordem constitucional nos seus Estados membros. Não há dúvida de que o que ocorreu em Honduras foi um golpe de estado. Assim o disseram a comunidade interamericana no foro regional e a comunidade internacional como um todo nas Nações Unidas.
Não há dúvida de quem, cara pálida? Da “Comunidade Internacional”? Eu estou me lixando pra ela. A “comunidade internacional” celebrou o pacto que Daladier e Chamberlain fizeram com Hitler. Cito o exemplo extremo só para não ter de me perder em miudezas. O que aconteceu em HONDURAS NÃO FOI UM GOLPE SEGUNDO O QUE DISPÕE A CARTA DE HONDURAS. E AQUELE É O ÚNICO PARÂMETRO ACEITÁVEL. O princípio de que não se remove um governante eleito de maneira alguma encontra, em cada país, as suas circunstâncias. Sob certo ponto de vista, então, Collor foi deposto no Brasil por um golpe parlamentar, já que, aqui, o “devido processo legal” se faz com o mandatário fora do poder quando é aceita a denúncia por crime de responsabilidade.

Ao julgar o Presidente Zelaya sem que lhe fosse dado o direito fundamental de ser ouvido e defender-se, o Estado hondurenho descumpriu a própria Constituição hondurenha e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Esta reza, em seu artigo 8, que trata das garantias judiciais, que “(t)oda pessoa tem o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido com anterioridade pela lei, na substanciação de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para a determinação de seus direitos e obrigações de ordem civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outro caráter”. Aquela determina no capítulo das garantias pessoais, especificamente em seu artigo 82, que “(e)l derecho de defensa es inviolable”. Não foi inviolável no caso do President Zelaya.
Já tratei sobejamente da questão, mas volto ao ponto. Vamos lá:
1 – em primeiro lugar, A Convenção Americana de Direitos Humanos não está acima da Constituição de Honduras, do Brasil ou da Colômbia. Não é a Constituição das Constituições. Ou é?;
2 – O que é “prazo razoável”?
3 – Observe que se fala lá que as instâncias são estabelecidas “pela lei”; cada país tem a sua;
4 – Supondo que o vai ali também se aplique a direitos políticos, os princípios remetem a decisão para leis específicas. Então vejamos:
a – Zelaya anunciou que faria a sua consulta; a Justiça do país a declarou ilegal. FOI OU NÃO NA FORMA DA LEI, SENHOR EMBAIXADOR?;
b – A Justiça proibiu o Exército de tomar as providências para fazer a tal consulta. FOI OU NÃO NA FORMA DA LEI, SENHOR EMBAIXADOR?;
c – Zelaya deu ao Exército uma ordem considerada ilegal pela Justiça, violando outros artigos constitucionais. Se o Exército a tivesse cumprido, o golpe teria sido dado ali. Ou que nome o senhor dá a uma força armada que faz o contrário do que determina a lei?
De novo, o senhor pode até achar que as leis hondurenhas não são tão boas quanto as brasileiras. Mas são as que eles têm. A propósito: o senhor considera que esse princípio da Convenção Americana de Direitos Humanos é devidamente seguido na Venezuela, na Bolívia e no Equador? Já nem me refiro a Cuba para não me acharem um homem indelicado.

Sobre a detenção arbitrária do Presidente Zelaya
Mesmo se a deposição do Presidente Zelaya tivesse sido, do ponto de vista jurídico, irretocável, não caberia dúvida quanto à ilegalidade do cumprimento da decisão da Corte Suprema de Justiça. Não apenas pela forma como o Presidente Zelaya foi retirado de sua residência, o que de toda maneira foi contrária à Constituição, mas porque a Constituição proíbe em seu artigo 102 que “(n)ingún hondureño podrá ser expatriado …”. Ao levarem sob vara o Presidente Zelaya para a Costa Rica, o Estado hondurenho feriu um direito constitucional básico conferido a todo hondurenho.
Neste blog e em lugar nenhum chamei de legal ou constitucional a saída de Zelaya. Aliás, acho que ele deveria ter ficado no país para responder por seus crimes. Eu mesmo já tratei do Artigo 102 da Constituição aqui. A nossa diferença, embaixador, é que eu digo: O ARTIGO 102 TORNA INCONSTITUCIONAL A RETIRADA DE ZELAYA DO PAÍS. Eu respeito o 102 porque respeito a Carta toda. Mas o senhor demonstra um respeito seletivo, não é? Por que despreza o 239? Isso significa, embaixador, preste atenção!, que eu posso acatar perfeitamente o artigo 102, conjugá-lo com o 239 e defender a minha posição: NÃO HOUVE GOLPE EM HONDURAS. Mas o senhor, para manter a sua — houve golpe —, tem de se agarrar ao 102 e jogar fora o 239. VERDADE OU MENTIRA?

Como o senhor nota, não estudei direito nem sou diplomata, mas o meu argumento mata o seu. Isso quer dizer que, neste embate, eu estou certo, e o senhor está errado. A menos que ache um argumento melhor.

Esperando ter esclarecido os pontos que me pareceram não estarem corretos no artigo do Gustavo Chacra, que serviu de base à sua matéria, subscrevo-me atenciosamente.
Ruy Casaes
Representante Permanente do Brasil junto à OEA
Reitero: Chacra, que é um ótimo profissional, não tem nada com isso. Ele reproduziu direitinho o seu pensamento. A sua carta se encarrega de torná-lo ainda mais claro. E verifico que discordo do senhor com ainda mais motivos. Afinal,
“eu posso acatar perfeitamente o artigo 102, conjugá-lo com o 239 e defender a minha posição: NÃO HOUVE GOLPE EM HONDURAS. Mas o senhor, para manter a sua, tem de se agarrar ao 102 e jogar fora o 239. VERDADE OU MENTIRA?”

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