quinta-feira, dezembro 20, 2007

MINHA MENSAGEM DE FIM DE ANO


O ano está chegando ao fim. Como sucede a cada giro de 365 dias, as pessoas costumam tirar alguns dias de folga e enviar mensagens a seus amigos e familiares com os melhores votos de paz, felicidade, saúde - e dinheiro também, claro, pois ninguém é de ferro. Fiel a essa tradição, também estou saindo de férias, motivo pelo qual deixarei de colocar aqui textos novos por algumas semanas. Também pensei em escrever algo, digamos, edificante, bem de acordo com o espírito natalino, para deixar todos felizes, enquanto trocam presentes e comem panetone na ceia de Natal, ou estouram seus espumantes e jogam flores para Iemanjá na noite do reveillón, desejando boas festas.
.
Mas confesso. Não sou bom nisso. Nunca fui e, desconfio, jamais serei. O fim do ano é uma época que provoca, em mim, sentimentos contraditórios. Por um lado, fico feliz porque o ano finalmente está acabando e poderei, após meses intensos de trabalho estafante, descansar alguns dias e rever a família (este ano, inclusive, terei a oportunidade de renovar a fidelidade à tribo, pois, apesar de ser a pessoa mais improvável para tal função, fui escolhido como padrinho no batismo de minha sobrinha...). Por outro lado, a proximidade de outro ano me enche de uma sensação de tédio quase insuportável, intensificado pelas costumeiras e previsíveis mensagens de esperança para o ano que se inicia, e pela circunstância de que o período de Natal coincide com meu aniversário - 33 anos, a idade do crucificado -, o que, não é difícil imaginar, causava-me bastante frustração quando criança (em vez de dois, ganhava sempre apenas um presente, "para as duas datas", me diziam com um sorriso meio amarelo...). O tédio que neste período costuma se apossar de mim reforça-se ainda mais diante da perspectiva, quase sempre certeira, de que, em vez de renovação, no próximo ano assistiremos a um pouco mais do mesmo, à repetição de velhos erros e ilusões, que insistem em desafiar qualquer experiência e qualquer ensinamento. Pois assim é a natureza humana: passam-se os anos, as décadas, os séculos, os milênios, e a humanidade continua a mesma, está sempre correndo atrás do próprio rabo, como cachorro louco, em busca de sonhos de grandeza e de redenção da espécie que, em vez de resolver, apenas agravam nossas falhas.

Por esse motivo, não vou desejar nada para 2008. Espero apenas que o ano que se inicia traga, mais do que paz, saúde, grana e felicidade, menos assuntos sobre os quais escrever neste blog do que 2007, que foi realmente um ano cheio. Que haja menos demagogia, menos criminalidade, menos ingenuidade, menos banditismo travestido de bom-mocismo. E que haja um pouco mais de senso crítico, tolerância verdadeira (e não afetações relativistas), inteligência e, acima de tudo, lucidez. Sei que isso é quase uma utopia, talvez um sonho impossível. Mas, se há algo que eu gostaria de pedir a Papai Noel, seria isso: que em 2008, eu tenha muito mais tempo para cultivar meu jardim, e muito menos razão para incomodar dizendo o que penso - e não só o que a maioria gosta de ler - na tela do computador.

Até mais. Vejo vocês em 2008 (com menos textos, espero).

terça-feira, dezembro 18, 2007

COMO DESTRUIR UM PAÍS


Diante da atual situação política de Nuestra América, resolvi elaborar uma pequena receita que, creio, será útil aos candidatos a ditadores e demagogos de todos os tipos, cores e ideologias, que sonham em, um dia, alcançar o Paraíso na terra. Para eles próprios, evidentemente. Tomem nota:

Refundar a nação - A primeira lição que um bom caudilho populista deve aprender, talvez a mais importante de todas, é não ser modesto. Nada de reformazinhas cosmésticas aqui e ali, que logo serão superadas e esquecidas. O bom demagogo deve buscar sempre deixar sua marca na história, de forma inesquecível e indelével. E que maneira melhor de fazer isso do que "refundando" o país? Em outras palavras: nada de reconhecer avanços positivos nos governos anteriores; trata-se agora de romper radicalmente com o passado, fazendo dele tábula rasa. Todos os governantes que o antecederam não fizeram mais que destruir a nação; é hora de reconstruí-la das cinzas. Para fixar essa idéia-força na cabeça da população, não se furte a apelar para a história, condenando, por exemplo, as "elites" (ou "oligarquias") que "dominam este país há quinhentos anos". Mudar o nome oficial do país, inserindo um "bolivariano" no meio, é aconselhável. Aproveite e recubra qualquer iniciativa de seu governo, mesmo que seja a inauguração de cemitério de cachorro em Passa-Quatro do Norte, com ares de Moisés abrindo o Mar Vermelho ou de conquista da Lua, afirmando que "nunca na história deste país" se fez coisa semelhante. Finalmente, sempre que algum engraçadinho resolver botar água na sua fervura, apele para a "herança maldita" deixada pelo governo anterior como a raiz de todos os problemas atuais. Ainda que essa tal herança seja o que sustenta sua demagogia.

Apresente-se como representante das camadas populares - Essa é uma lição importantíssima. O bom demagogo deve esforçar-se sempre para trombetear, ante seu eleitorado e os visitantes estrangeiros, sua imagem de legítimo filho do povo, de autêntico rebento dos setores mais desfavorecidos. Se for mestiço, descendente de índios e semi-analfabeto, melhor ainda, pois sempre poderá usar sua origem e sua própria ignorância como moeda política, aproximando-se assim do povo, que o verá como um dos seus. Mesmo que essa ignorância seja voluntária e cuidadosamente estudada para provocar esse efeito, bastante impactante, curiosamente, também nas camadas mais abastadas, que gostam de coisas exóticas e costumam ser acometidas por um forte sentimento de culpa. Assim, tendo você conquistado a condescendência do conjunto da população, e inclusive das "elites", qualquer um que tiver a ousadia de apontar para sua manipulação de suas origens étnico-sociais por razões eleitoreiras será rapidamente tachado de "elitista" e "preconceituoso", ainda que aponte para fatos, nada mais que fatos.

Concentre todos os poderes - Este é o caminho das pedras. Tenha sempre em mente que o verdadeiro objetivo, a finalidade última, do demagogo é ter todo o poder em suas mãos. Mas aqui é preciso cuidado: não se trata de tomar o poder do Estado à força, num golpe ou quartelada. Esse método está ultrapassado. Nos dias de hoje, os caudilhos tratam de se apossar do poder de forma mais suave e dissimulada, usando os próprios meios legais da democracia. Lembre-se de Hitler e Mussolini, ditadores que conseguiram chegar lá pelo voto. Uma vez na cadeira presidencial, entretanto, não se contente com as restrições constitucionais à concentração dos poderes. De preferência, faça sua própria Constituição, após conseguir maioria parlamentar. Use e abuse de plebiscitos e referendos, pois, ainda que manipulados, você poderá dizer que seu governo é democrático e tem apoio popular e muitos acreditarão nisso. Faça questão de falar em democracia, mas sempre coloque um adjetivo depois, como "participativa" e "protagônica", para diferenciá-la da democracia verdadeira, que não precisa de adjetivos. Aproveite e nomeie os juízes da Suprema Corte, e também a Justiça Eleitoral. Se isso ainda não for suficiente, tente reformar a Constituição que você mesmo fez, a fim de conseguir ser reeleito quantas vezes quiser. Trocando em miúdos: use a democracia para destruí-la. Caso não tenha a sorte de encontrar um país em frangalhos, com a população ansiosa para se livrar dos velhos políticos, nem detenha maioria no Congresso, não tem importância: uma mesadinha para os deputados, digamos uns 30 mil caraminguás por mês, são o suficiente para garantir a fidelidade deles. Mas cuidado para que nenhum deputado da base aliada, não querendo servir de boi de piranha em algum escandalozinho qualquer, resolva botar a boca no trombone e chutar o pau da barraca. Aí o caldo entorna.

Cale a imprensa - O bom candidato a ditador deve sempre ter em mente que a imprensa, tirando a oficial, é sempre sua inimiga, e que notícia boa é sempre notícia a favor. Para garantir essa visão cor-de-rosa, não hesite em maquiar a realidade. Pode começar por uma repaginada no visual, por exemplo, trocando um macacão surrado de operário por ternos bem cortados (ou, se preferir, pode criar sua própria persona, usando símbolos como uma boina militar ou uma roupa com motivos indígenas, fique à vontade). Não esqueça de contratar um bom marqueteiro, a fim de passar uma imagem simpática, e cuidar da aparência (você vai perceber que, nesse jogo da política, aparência é tudo que há). Quanto à imprensa não-tutelada, não vá com muita sede ao pote. Nada de sair por aí mandando de cara empastelar jornais e espancar jornalistas atrevidos. Comece devagarinho, usando os próprios meios legais, como processos por injúria e difamação. Expulsar um jornalista estrangeiro que ousou escrever sobre seus hábitos etílicos, juntando assim censura e patriotada, é uma boa pedida, embora possa pegar mal no início. Idem para tentar tutelar o que se passa na TV, de preferência com nomes pomposos e aparentemente anódinos como Conselho Federal de Jornalismo. Ameaçar sutilmente cortar o fornecimento de papel aos jornais ou cancelar a concessão para funcionar, também é útil. Sem falar no método mais infalível de todos: grana. Com o tempo, você verá como parte da imprensa vai ficar mansinha, vendo como você é maravilhoso e dizendo amém para o seu governo. Logo, logo, você poderá alçar vôos mais altos, fechando, por exemplo, aquela emissora de TV que lhe incomodava. Lembre-se: o que você quer não é debate, não é honestidade. É aplauso.

Distribua assistencialismo - Demagogo que se preze não pode descuidar do bom e velho panen et circensis. Sobretudo porque isso é o que costuma lhe garantir apoio entre as massas populares, e simpatia em setores da intelligentsia nacional e internacional. Aproveite que há idiotas no mundo que sempre vão confundir populismo com justiça social, e faça farto uso de verbas oficiais para distribuir dinheiro e outros benefícios aos mais pobres. Se seu país for rico em recursos naturais, como petróleo, não pense duas vezes antes de torrar os petrodólares com "missões" assistencialistas nas favelas das principais cidades, ainda que tal assistencialismo não se traduza em melhorias efetivas da qualidade de vida da população. Se os alimentos começarem a sumir das prateleiras e a inflação disparar, não se preocupe: basta culpar a ganância dos especuladores, e pronto. O paternalismo estatal, seja na forma de misiones ou de Bolsa-Família, é item indispensável no kit de qualquer demagogo, pois ajuda a manter a população dócil e sob cabresto, criando uma clientela dependente e fiel. Mesmo se o seu maior beneficiário - ou seja, você, candidato a ditador - tenha passado metade da vida vociferando contra a esmola dos ricos, pois esta só fazia promover o conformismo e adiar a tão necessária revolução. Não importa: você está no governo agora, não é mais tempo de bravatas. Lembre-se: você gosta dos pobres; quanto mais deles houver, melhor.

Aparelhe a máquina estatal - É muito importante, para garantir o poder, cercar-se de companheiros leais. Essa lição elementar da política se aplica com muito mais intensidade no caso de líderes populistas e caudilhescos. No seu caso, não se trata apenas de encher a máquina estatal com companheiros de partido ou de campanha, em geral sem nenhuma outra qualificação para exercer o cargo para o qual acabaram de ser nomeados que não o fato de serem companheiros de partido ou de campanha. Trata-se de garantir o controle efetivo da máquina do Estado, sem o qual o projeto populista-totalitário não pode ser implantado. O fato de os que ocupam os altos cargos públicos não terem nenhum compromisso com estes ou capacitação técnica para exercê-los não deve ser um óbice para você: saiba que o Estado deve estar a seu serviço, e não da população. Se tal aparelhamento ideológico do Estado resultar em tragédias, como, por exemplo, a queda de um avião por causa de má administração do sistema aéreo, acione a outra máquina, a da propaganda, e é grande a chance de todos aceitarem a esparrela de que foi tudo uma fatalidade.

Coloque pobres contra ricos - Item da mais alta importância. O velho discurso marxista da luta de classes, verdadeiro catecismo das esquerdas, é sempre bem-vindo. Como bom adepto da arte da demagogia, você sabe perfeitamente que nenhum ditador, desde o século XIX, conseguiu impor sua tirania sem apelar para esse tipo de chavão. Tendo-se atribuído a missão messiânica de "refundar" o país, e apresentando-se como o representante iluminado dos anseios populares, você precisa coroar essa sua missão atiçando os pobres contra os ricos, os sem-terra contra os latifundiários, o proletariado contra a burguesia. Nesse quesito o apoio das esquerdas, em especial dos comunistas, ser-lhe-á de extrema relevância. Consciente que o comunismo soviético já foi para as cucuias faz tempo, e que o socialismo fracassou onde quer que tenha sido implantado, trate de rebatizá-lo, acrescentando-lhe um "democrático" ou um "do século 21". Tenha o cuidado, porém, de não deixar muito claro o que isso significa, deixando aberto o caminho para as mais diversas interpretações. É recomendável, aliás, cultivar a imprecisão. Por exemplo, caso lhe perguntem qual sua ideologia, responda que não é nem capitalista nem comunista, nem de direita nem de esquerda, apenas um "torneiro mecânico". Diante de uma platéia de empresários, é bom fingir compromisso com a estabilidade econômica, a disciplina fiscal, a democracia etc. Para a companheirada, porém, pode soltar o verbo, prometendo a revolução. Desse modo, você vai deixar seus adversários da oposição atordoados, enquanto implementa seu projeto de poder quase na surdina. Deixe os bobocas esquentarem a cabeça para descobrir qual é a sua. Afinal, quando descobrirem - se descobrirem -, já será tarde demais. Com essa aparente indefinição e ambigüidade, você conquistará de imediato o respeito da burguesia e a simpatia e apoio entusiastas de grande parte da intelligentsia européia e continental, órfã da utopia comunista e ansiosa por se deixar enganar novamente. Também não se importe com o fato de, sob seu governo socialista, ter surgido uma elite de burocratas e novos-ricos empoleirados nas tetas estatais. Assim como ocorria na ex-URSS e continua a ocorrer em Cuba, eles ganham dinheiro e bebem seu Romané-Conti a R$ 11 mil a garrafa para servir à causa dos trabalhadores. Além disso, junte à luta de classes uma pitada de chauvinismo nacionalista. Faça como Mussolini, transferindo a dicotomia ricos versus pobres para o cenário internacional. Esta é a próxima dica.

Invente um inimigo externo - Seguindo esse último conselho, não deixe de condenar, em seus discursos, o "imperialismo", escolhendo um país - de preferência, os EUA - para demonizar como responsável por todos os males do mundo. Aproveite que esse é um tipo de discurso que, não importa a época, sempre terá uma audiência atenta e fiéis seguidores. Além de servir para unir a nação em torno de sua figura e desviar a atenção dos problemas internos, a retórica antiimperialista serve também para projetá-lo no exterior, como líder dos povos oprimidos, mesmo que seu país seja um dos maiores exportadores para o "império". Busque aproximar-se de outros inimigos jurados da Casa Branca, em geral países democráticos como o Irã e a Coréia do Norte, a fim de formar um eixo contra as ambições imperiais de Bush e cia. Tal discurso será sempre popular, e tem o bônus de ser de fácil assimilação pelas massas incultas e analfabetas: estas sempre vão querer alguém para culpar pelos seus próprios infortúnios, causados, em grande medida, por você mesmo. Se esse inimigo externo a condenar for os EUA, aí sim a coisa fica perfeita. Sobretudo se o país estiver envolvido em duas guerras impopulares no Oriente Médio, e que, ainda por cima, resultaram na derrubada de duas das piores tiranias dos últimos cinqüenta anos. Nesse caso, é aconselhável, mesmo a título de propaganda, explorar o temor de uma invasão ianque, tal como Fidel Castro faz em Cuba há quase meio século, e armar-se até os dentes. Você dirá que as armas são para enfrentar a invasão iminente, mas é claro que o verdadeiro inimigo é interno: o próprio povo, cada vez mais vigiado.

Reescreva a história - "Quem controla o passado, controla o presente", já dizia George Orwell. "E quem controla o presente, controla o futuro". Isso significa que, para assegurar a posse do poder, é indispensável ter o controle também da educação pública, instituindo um eficiente sistema de doutrinação político-ideológica nas escolas. Não somente através de ameaças abertas ou veladas às instituições de ensino privado, mas principalmente mediante um amplo esquema gramsciano de lavagem cerebral, existente há décadas, no qual militantes disfarçados de professores procuram doutrinar, com cartilhas marxistas, crianças de 13 e 14 anos de idade contra o perverso sistema capitalista e em favor de grandes humanistas como Stálin e Mao Tsé-Tung. Nesse sentido, não hesite em comparar-se a figuras proeminentes da história pátria, e até mesmo mundial, como Bolívar ou Jesus Cristo, atribuindo-lhes supostas características socialistas. Some a isso uma boa dose de revisionismo histórico, pedindo desculpas aos países africanos, por exemplo, pela escravidão negra no passado (ainda que os próprios africanos tenham feito largo uso também do trabalho escravo), ou concedendo a torto e a direito indenizações milionárias a famílias de militantes que lutaram pela democracia (ainda que esses militantes quisessem transformar o país numa Cuba). Com esse tipo de manipulação da História, não duvide, você terá as portas abertas para seu projeto populista de poder.

Desqualifique seus críticos, não os argumentos - Outra dica importante: jamais responda as críticas que lhe fizerem. Apele para a desqualificação de quem as fez, usando e abusando do velho método de argumentação ad hominem, que consiste em atacar o mensageiro, não a mensagem. Assim, você poderá unir o útil ao mais últil ainda, impedindo o debate e desviando o foco para a pessoa que o iniciou, somando, de quebra, mais alguns pontinhos. Por exemplo, alguém mencionou que o governo está gastando demais com o aparelhamento dos Ministérios e projetos sociais assistencialistas de caráter puramente eleitoral? São neoliberais, querem um Estado para os ricos somente. Alguém protesta contra os freqüentes atentados à liberdade de expressão e outras garantias constitucionais? É um reacionário, um defensor da velha ordem oligárquica. Alguém cogitou de seu impeachment por causa da roubalheira oficial, fartamente documentada para quem quiser ver? É um golpista, um saudoso dos anos de chumbo da ditadura. Alguma voz se ergueu para criticar o sistema de cotas raciais nas universidades, que apenas oficializa o racismo, sob pretexto de combatê-lo? É um racista, neto de senhores de escravos e membro da Ku-Klux Klan. Alguém criticou a proposta de prorrogar pela eternidade um imposto que nasceu provisório? São sonegadores, ainda que o imposto em questão penalizasse ricos e pobres. E assim por diante.
.
Tenha amigos no exterior - A experiência demonstra que um demagogo legítimo não dura muito tempo sem amigos importantes, não somente nos governos de outros países, mas também nos meios acadêmicos e artísticos em geral. Assim como Mao Tsé-Tung teve um Edgar Snow e Fidel Castro teve um Herbert L. Matthews, o bom caudilho de hoje não pode sobreviver sem um Ignacio Ramonet ou um Noam Chomsky. Não se acanhe, se você for um pouquinho inclinado à leitura, em brandir um livro desses gênios quando estiver discursando, sobretudo se for no maior palco de todos, a Assembléia Geral da ONU. Não esqueça também de chamar esses amigos preciosos para conversar de vez em quando, de preferência com tudo pago pelo governo que você preside. Dá visibilidade, e também ajuda a inflar-lhes os egos.
.
Conte com a ignorância alheia - Finalmente, nenhum desses conselhos elencados acima teria alguma serventia se não fosse por essa deusa suprema, a verdadeira guia da vida dos mortais: a ignorância. Jamais subestime a capacidade humana de iludir-se. É ela o verdadeiro motor da História.

Seguida à risca essa receita, asseguro que estarão criadas as bases para mais um governo populista e personalista, messiânico e autoritário. Garanto que o resultado será, em pouco tempo, um país destroçado, uma economia arrasada ou estagnada, as divisões sociais e raciais exacerbadas, a insegurança galopante, as instituições em frangalhos, um povo imbecilizado, uma intelectualidade vendida ou estupidificada. O verdadeiro caminho para a reedição dos piores pesadelos do século que passou. A humanidade não aprende com seus erros; apenas espera a oportunidade de repeti-los. Como tragédia ou como farsa. Ou como ambas.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

O QUE ELES QUEREM


"Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvarguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começa a me compreender?"

Toda vez que eu leio isso, fico arrepiado. O parágrafo acima é, pode-se dizer, o clímax do romance de George Orwell, 1984, e descreve um diálogo (na verdade, um monólogo) entre o torturador, O'Brien, e sua vítima, Winston. Enquanto Winston está sendo torturado até ser reduzido a um esqueleto vivo no Ministério do Amor, O'Brien lhe explica didaticamente os princípios do Ingsoc, o Partido, como a novilíngua e o duplipensar, e a amar o Grande Irmão (o "Big Brother", que tudo sabe e tudo vê, e que é mais conhecido hoje em dia por causa daquele programa de TV idiota). Tendo passado pelas mais cruéis formas de tortura, Winston, que fora preso juntamente com sua amante, Júlia, já passara pelo estágio de aprender: agora precisava compreender para, depois, aceitar. Nesse estágio final, onde deveria tomar para si que dois mais dois são cinco, seria encaminhado à temida sala 101, onde seria colocado diante de seus piores medos.

A leitura de Orwell é, certamente, o melhor caminho para entender o que se está passando na América Latina de hoje, e no Brasil em particular. Mais que isso: é uma das melhores formas de compreender os mecanismos do poder. Há, no diálogo entre O'Brien e Winston, mais ensinamento do que na maioria dos tratados de ciência política. Não há, em toda a literatura ocidental, trecho mais forte a dissecar o verdadeiro motivo que leva as pessoas, sobretudo aquelas imbuídas de uma fé messiânica na redenção da humanidade, a buscar o poder. O poder, diz Orwell, não tem outro compromisso senão com o próprio poder, é um fim em si mesmo. Ao contrário do que nos acostumamos a pensar mecanicamente - por inércia, por preguiça, por medo, ou por tudo isso junto -, é o poder, o poder puro, e não qualquer objetivo altruísta, o que move e conduz os políticos. Todos os políticos, indistintamente. Os de esquerda, defensores de soluções totalitárias - como as denunciadas por Orwell em seus livros -, mais que os outros.

Estando eu em Brasília já há alguns anos, convivo quase diariamente com essa realidade de um mirante, digamos, privilegiado. Por causa da minha profissão, vez ou outra tenho contato com ministros e parlamentares. Percebo, então, como é vazia essa gente, como são ocos seus discursos. É sempre a mesma ladainha, a mesma lengalenga sobre a importância de servir os interesses do "povo" etc. etc. É claro que é tudo falso, que ninguém no Congresso, ou nos Ministérios, ou em qualquer outra instância governamental, leva essa discurseira demagógica a sério, nem está nem aí para os desejos do "povo", ou seja lá o que isso for. É óbvio que a briga por verbas para seus currais eleitorais, a eterna barganha política, não atende a outro propósito senão a manutenção de seus cargos e privilégios corporativos, e nada mais. É o desejo de poder, às vezes da simples proximidade com o poder, o que está por trás de todas as suas ações.

Diariamente, somos bombardeados com informações de como o governo está se empenhando em melhorar a vida da população, em como o Bolsa-Família e a CPMF irão beneficar milhões de pessoas (no caso da CPMF, devemos colocar a sentença no condicional, pois a prorrogação da mesma acaba de ser derrubada no Senado), de como, enfim, o Estado existe para atender os anseios e necessidades do povo. Esqueçam essa balela. É tudo falso, é tudo mentira. Nem Lula, nem a "oposição", nem quem quer que seja, têm outra finalidade, pensam em outra coisa senão em conquistar e conservar o poder. Como sabe perfeitamente quem já leu Maquiavel, é essa a única finalidade da política. Poder. Mais poder. Sempre. Simples assim.

É difícil abrir os olhos para essa verdade tão simples, tão óbvia. Um dos mitos mais fortes, sobretudo entre a esquerda do Primeiro Mundo, é que políticos populistas como Lula e Chávez estão interessados em promover a justiça social. Nada poderia ser mais distante da realidade. Assim como as ditaduras totalitárias do século XX, como o nazismo e o comunismo, os populismos latino-americanos, ao prometerem o céu para as massas, apenas preparam o caminho para o inferno. Nem Lula, nem Chávez, nem Fidel Castro, nem Stálin, nem o Grande Irmão dão a mínima para justiça social e outras coisas do tipo. A única coisa que realmente lhes interessa, a única razão por que se lançaram à política, é o poder, nada mais, nada menos. No caso de Lula e dos companheiros petistas, o poder nunca foi um instrumento para alcançar nenhum objetivo mais elevado, mas o próprio objetivo perseguido, assim como uma forma de ascensão social. É isso que explica seus ziguezagues políticos, suas alianças espúrias, seus mensalões e valeriodutos, suas bravatas, sua proposital indefinição e vagueza ideológica. O poder pelo poder.

Não que todos os políticos sejam vagabundos e safados. Nada disso. Acredito que, em meio à imensa maioria de salafrários, sempre haverá um ou dois idealistas. Mas isso não faz a menor diferença. Idealistas, creio eu, também eram muitos nazistas e comunistas. Provavelmente o personagem do livro de Orwell, O'Brien, o torturador a serviço do Partido, seja um arquétipo do idealismo. Por isso sempre desconfiei de quem se mostra muito idealista em política. Pior que um político sem princípios, só um político com princípios. Principalmente, se for de esquerda.
.
Durante muito tempo, acreditei na cantilena marxista de que o Estado, longe de ser um instrumento a serviço do bem comun, nada mais é do que uma máquina para garantir a opressão de uma classe por outra, ou, no dizer de Marx, "um comitê para gerir os negócios comuns da burguesia". Como em tudo o mais, Marx estava redondamente enganado. O Estado não é nada disso. É, sim, um instrumento de opressão, mas a serviço de si mesmo. É para sustentar essa formidável máquina, e não para transformar a terra num paraíso, que existem as leis, os exércitos e os impostos. É por isso que, quanto menor for essa máquina, quanto menor for sua burocracia e quanto menos funcionários tiver, quanto menor for sua ingerência na economia e nos assuntos privados dos cidadãos, melhor para a sociedade. Não por acaso, o animal que simboliza a receita federal, entre nós, é o leão. Não sendo possível nos livrarmos em definitivo desse monstro voraz, cumpre serrar seus dentes e aparar suas unhas, para que fique o mais manso possível.
.
Se lêssemos um pouco Orwell, talvez percebêssemos que, de tudo o que o governo nos diz, 99% são mentiras, e o 1% restante é pura propaganda, o que dá quase no mesmo. Seríamos capazes, certamente, de enxergar o que sempre esteve diante de nossos olhos o tempo todo, mas que nunca tivemos a disposição, ou a coragem, de enxergar: que ninguém entra na política pensando no bem alheio, mas unicamente, exclusivamente, simplesmente, no poder, o eterno e inexorável poder. Poder não para distribuir justiça, para dar comida aos pobres e lar às criancinhas, mas para ter mais e mais poder. Não é à toa que os livros de Orwell são até hoje proibidos em países como Cuba. Não é à toa que elegemos e reelegemos Lula para presidente do Brasil.
.
Enquanto não abrirmos os olhos para essa dura e fria realidade do poder, deixando de lado definitivamente as ilusões de justiça social brandidas pelos totalitarismos e populismos de todo tipo, correremos o risco de acabar como Winston, que, após ser reduzido a um farrapo humano, aprende a amar o Grande Irmão. "Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre", diz O'Brien no livro de Orwell. 1984 foi escrito há mais de cinqüenta anos. O futuro chegou.

terça-feira, dezembro 11, 2007

A ARTE DE CULTIVAR O PRÓPRIO JARDIM

Confesso. Sou um egoísta. Sempre fui. Desde criancinha. Claro, de acordo com a teologia cristã, eu vou para o inferno. Mas não me importo, até porque não creio em Deus, nem em Diabo, nem em boitatá ou curupira. Isso significa também que, de acordo com a ideologia oficial do Estado brasileiro atualmente, eu sou um canalha, um reacionário, um burguês desprezível. Nem precisa dizer que não dou a mínima para isso também.

É óbvio que, para afirmar tal coisa a respeito de mim mesmo, eu teria que ter uma forte argumentação a favor do egoísmo, tido entre nós como um dos vícios mais funestos, um dos pecados mais terríveis que alguém possa cometer. Teria que ter uma base muito sólida, ou ser muito cara-de-pau, ou as duas coisas, para provar que é bem melhor ser egoísta e se importar apenas com a própria vida do que ser um militante de causas altruístas como a luta contra a extinção dos ursos panda chineses ou o aquecimento global. Devo dizer que a tarefa não é das mais difíceis. Nem precisei ler Ayn Rand ou Milton Friedman para descobrir a delícia e a virtude que estão por trás dessa minha opção consciente. Bastou um pouco de Voltaire.
.
François-Marie Arouet, o Voltaire (1694-1778), como quem já leu a Barsa deve saber, foi o principal filósofo do Iluminismo na França. E foi também um grande cínico. Em um século, o XVIII, pontuado por mentes brilhantes e detestáveis, ele foi talvez a mais brilhante de todas, e pessoalmente a mais detestável. Fortemente anticlerical (chamava a Igreja católica de "A Infame"), embora acreditasse na possibilidade de Deus (mas e daí?, perguntava; pois se há mesmo um Deus bondoso e todo-poderoso, por que existem terremotos?) e inimigo de toda forma de obscurantismo, cortejava, porém, algumas cabeças coroadas da Europa, como o Rei da Prússia, Frederico II, em cuja corte chegou a viver por alguns anos. Adversário implacável do absolutismo, desprezava, no entanto, o povo, a quem chamava de "a canalha". Era bastante esperto também, e, quando se tratava de ganhar dinheiro, tinha poucos escrúpulos. Certa vez, aproveitando-se de uma loteria mal organizada, comprou todos os bilhetes e embolsou o prêmio. Escritor, romancista e teatrólogo, desdenhava o público, que considerava uma fera terrível, que precisava ser domada. Era o que se poderia chamar de um esnobe, um aristocrata do pensamento.
.
O contraponto perfeito de Voltaire é seu contemporâneo, o filósofo suiço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de O Contrato Social. Ao contrário de Voltaire, Rousseau acreditava na virtude pessoal e na bondade natural dos homens, e fazia mesmo dessa crença uma obsessão e a base de sua filosofia. Diferentemente de Voltaire, Rousseau rejeitava a ciência e o progresso, assim como as desigualdades sociais decorrentes do capitalismo, e advogava, em lugar da sociedade industrial, um retorno à natureza. Em nome da "vontade geral", opunha-se à monarquia constitucional defendida por Voltaire, defendendo o que chamou de "soberania popular". Foi em nome de seus ideais de igualdade e justiça que a ala mais radical da Revolução Francesa, os jacobinos, tendo à frente Robespierre, o "Incorruptível" - tão incorruptível que, dizem, morreu virgem -, desencadeou o Terror na França, cortando milhares de cabeças dos que se opunham ao "Reino da Virtude" e lançando as sementes dos totalitarismos do século XX, como o nazismo e o comunismo. Paradigma da Virtude, Rousseau acreditava que o Estado, como encarnação da vontade geral, poderia substituir o indivíduo e a família. Coerente com essa crença, entregou seus filhos a um orfanato estatal e foi passear à beira do Lago Genebra, onde costumava sonhar com a redenção da humanidade, sustentado por uma rica viúva. Rousseau, o romântico, acreditava que os homens nascem bons e livres, apenas a sociedade é que os corrompia. Voltaire, o racionalista, acreditava que a sociedade poderia até ser algo bom, mas os homens, não. Durante um período, Voltaire e Rousseau trocaram uma rica correspondência. Certa feita, diante da insistência de Rousseau em condenar o progresso e em louvar as virtudes de uma vida pastoril, Voltaire, fiel a seu estilo sarcástico, não titubeou: sugeriu-lhe ficar de quatro e comer capim.
.
Ao contrário de seu colega genebrino, Voltaire não dava a mínima para as assim chamadas causas sociais, esse fetiche das esquerdas. A coisa mais importante que um homem poderia fazer na vida, a única realmente de algum valor, dizia, era cuidar do próprio jardim. Somente uma vez Voltaire deixou suas roseiras de lado e entrou de cabeça na defesa de uma causa. Foi quando um morador de Toulouse, no sul da França, Jean Calas, protestante, foi acusado falsamente de planejar o assassinato de um filho que se havia convertido ao catolicismo. Voltaire sentiu, corretamente, cheiro de Inquisição no ar. O resultado foi uma das páginas mais corajosas e uma das defesas mais brilhantes da liberdade religiosa já escritas na história humana, seu Tratado sobre a Tolerância.
.
Mesmo nesse caso, porém, Voltaire foi coerente com sua opção individualista. Ele não defendeu Jean Calas porque simpatizasse pessoalmente com ele, ou porque gostasse dos protestantes, ou porque queria mostrar ao mundo que era capaz de gestos altruístas e que não era tão individualista assim, afinal. Nada disso. O que estava em jogo para ele, naquele momento, era o mesmo sentimento que o levava a cultivar seu jardim: a defesa da liberdade individual. Em nome desta, ele estava disposto a servir de advogado em um obscuro caso de intolerância religiosa, em pleno "Século das Luzes", numa distante vila no interior da França. Ao fazê-lo, ele afrontou, assim como faria depois Émile Zola no caso Dreyfus - outro caso de intolerância religiosa, travestido de patriotada militarista -, um país inteiro, uma época inteira.
.
Voltaire foi um dos maiores egoístas que já andaram sobre a terra. E um dos maiores benfeitores da humanidade, em todos os tempos. Seu cinismo legou-nos coisas como a liberdade de pensamento e a busca da felicidade individual, artigos até hoje considerados de luxo em muitas partes do planeta ainda submersas no obscurantismo. "Não concordo com uma palavra do que você diz, mas, enquanto viver, lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizer o que pensa", é certamente sua frase mais citada. Pode-se dizer que ele é mesmo o modelo do célebre paradoxo formulado por Adam Smith, o pai da economia clássica, segundo o qual vícios individuais, como a cobiça e a avareza, geram benefícios coletivos.
.
Entre nós, brasileiros, as idéias de Voltaire nunca foram muito populares. Em vez de seu saudável ceticismo e de sua mordacidade política, bem presente em sátiras como Cândido, preferimos Rousseau, com seu igualitarismo meio histérico. Este sempre teve, por estas bandas, discípulos devotos. É fácil encontrá-los: no governo, em ONGs, nas redações dos jornais e revistas. Alguns vestem batina. Outros, estão aboletados em algum Ministério. Todos preocupam-se com o próximo, com a humanidade, exalando virtude por todos os poros, arrotando altruísmo e compromisso com a coletividade, ansiosos por "fazer a diferença". Querem revolucionar o mundo, mudá-lo de alto a baixo para restaurar o império da virtude, assim como Rousseau e Robespierre. Em nome desse objetivo abstrato e de um futuro hipotético, no qual imperaria o bem absoluto, estão dispostos a tudo, não se importando em fazer o mal aqui mesmo, de forma concreta, no presente. A perfeita definição do revolucionário, pode-se dizer.
.
Costuma-se afirmar, a título de boutade, que quem não foi de esquerda na juventude não tem coração, e quem continua a sê-lo na maturidade não tem cérebro. Eu discordo em parte. Como demonstram os 100 milhões de mortos produzidos no século XX pelo Reino da Virtude, quem é de esquerda, seja que idade tiver, não tem nem cérebro nem coração. Agora com licença, que eu vou cuidar do meu jardim.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

AS VIVANDEIRAS DO DESARMAMENTISMO


A cena é conhecida: nos EUA, um maluco entra em um lugar público e, sem nenhum motivo aparente ou racional, saca uma pistola ou submetralhadora e começa a disparar indiscriminadamente. No final do tiroteio, várias pessoas jazem mortas no chão, crivadas de balas, e outras saem feridas, enquanto o atirador, acuado pela polícia, é abatido a tiros ou se suicida.

O episódio mais recente dessa triste rotina ocorreu há dois dias, no estado de Nebraska. Um adolescente de 19 anos entrou num shopping-center armado até os dentes e começou a fuzilar as pessoas em volta. Oito morreram, além do atirador. Depressivo, este deixara uma carta em que relatava sua intenção de se matar "com estilo". Provavelmente ansiava, com esse gesto tresloucado, alcançar postumamente a celebridade, como os dois adolescentes que massacraram os colegas de escola em Columbine, oito anos atrás.

No Brasil, país que, felizmente, como se sabe, não tem dessas coisas - as batalhas campais entre narcotraficantes e polícia nas favelas cariocas ou as chacinas nos bares da periferia paulistana já nos bastam -, grande parte da imprensa, horrorizada, aproveita e martela a velha tecla: se esses gringos idiotas fizessem uma campanha de desarmamento, do tipo "sou da paz", vestindo branco e abraçando a Lagoa, certamente tragédias como essas não ocorreriam. Se resolvessem deixar de lado esse culto machista das armas e fizessem um referendo, como o que se fez no Brasil dois anos atrás em favor do desarmamento, não estaríamos vendo cenas semelhantes se repetindo. E etc. etc. etc.

As vivandeiras do desarmamento estão de volta. Vivandeiras, para quem não sabe, eram as mulheres que seguiam as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai. Desde então, a palavra passou a ser sinônimo de quem cerca as autoridades - civis e militares - solicitando "providências urgentes" sempre que uma crise se avizinha. Dois anos atrás, elas sofreram uma derrota, quando 64% da população rejeitou - mais por medo da bandidagem do que por amor à liberdade de escolha, é verdade - sua proposta de "desarmar" a sociedade. Mas elas não desistem assim tão fácil. A cada massacre em alguma cidadezinha dos EUA, elas se manifestam com força redobrada. "Viram só? Mais um banho de sangue nos EUA. A culpa é do lobby pró-armas, que impede o governo norte-americano de exercer um controle efetivo sobre os milhões de armas em circulação no país", proclamam aos quatro ventos, certas de que sempre haverá espíritos pouco críticos ou simplórios o suficiente para cair nessa esparrela.

A idéia de que tragédias como a de Nebraska ou de Columbine poderiam ser evitadas se houvesse um maior controle governamental sobre as armas é um desses mitos que a esquerda politicamente correta daqui e de alhures adora cultivar. É uma maneira muito esperta de manipular a verdade. Serve para desviar a atenção do fato de que crimes como esses acontecem não porque há uma arma na mão de alguém, mas porque há uma mente doentia por trás do gatilho. Se fosse uma faca de cozinha ou um canivete, em vez de uma pistola 45 ou uma escopeta 12, haveria mortes também, como demonstraram os atentados suicidas de 11 de setembro de 2001 (aliás, é curioso como os mesmos que advogam o fim da liberdade de escolha em nome do desarmamento no Brasil se mostram tão indignados quanto às rígidas regras de segurança adotadas nos aeroportos dos EUA após os ataques às Torres Gêmeas...). A questão não é a quantidade de armas em circulação, mas quem as porta, assim como o que importa não é quantos carros há nas estradas, mas se o motorista sabe ou não dirigir. Além disso, já está mais que comprovado que a fórmula "menos armas, mais segurança" não funciona na prática. Há atualmente, nos EUA, muito mais armas de fogo nas mãos de cidadãos comuns do que no Brasil, onde vigora uma legislação duríssima e um "Estatuto do Desarmamento" que praticamente proíbe o indivíduo de comprar legalmente um revóver 38. E, no entanto, o que predomina lá é a fórmula inversa, ou seja, "mais armas, menos crimes". Façam uma pesquisa, se quiserem, e vocês vão ver.

Na verdade, não há nada, rigorosamente nada, que permita dizer que um controle maior do Estado sobre as armas nas mãos da população - ou, inversamente, a ausência desse controle - influi, de forma decisiva, nos índices de criminalidade. Basta ver exemplos como o do Japão e da Jamaica, países onde portar armas, mesmo em casa, é ilegal e que têm níveis de violência muito diferentes - quase nulos no Japão, assustadores na Jamaica. Por sua vez, a Suiça convive muito bem com uma legislação que permite a um cidadão guardar um fuzil militar no armário, e nem por isso se vêem os suíços se matando como se estivessem em guerra.

Sabe-se que os EUA possuem uma tradição de o indivíduo possuir armas e portá-las. Mais que uma tradição, é um direito assegurado pela Constituição. Suas origens estão na própria formação histórica do país, a partir de comunidades na prática independentes, em que a posse de um rifle ou de uma pistola sempre foi vista como uma garantia de segurança contra índios e de liberdade contra qualquer ingerência estatal. Durante a Guerra de Independência (1775-1781), foram as milícias de cidadãos, os minutemen, que estiveram à frente da luta contra as forças coloniais britânicas. Ao contrário dos países da América Latina, colonizados manu militari por Espanha e Portugal, ter ou não uma arma, para os norte-americanos, passou a ser, desde então, mais que uma questão de segurança, um símbolo de resistência à opressão e de liberdade individual.

Daí a resistência dos norte-americanos a qualquer projeto de lei que busque tolher esse direito. É difícil para nós, brasileiros, compreendermos isso. Nossa mentalidade, herdada do colonialismo português, sempre colocou a liberdade individual, o direito de escolha do indivíduo, em segundo lugar. Como demonstram os vários períodos ditatoriais da História do País, sempre vigorou, entre nós, uma postura favorável e simpática ao intervencionismo estatal, ao Estado-Leviatã, em vez do Estado liberal clássico. Este continua a ser, para nós, um anátema, geralmente confundido com práticas anárquicas e nepotistas ou com o funesto e incompreendido "neoliberalismo" (a culpa de todos os nossos males, segundo a visão esquerdista, assim como a "globalização" e o Fernando Henrique...).
.
A simples noção de liberdade individual, bem como a responsabilidade que lhe é inerente, nos é algo completamente estranho. Um exemplo demonstra isso de forma bastante didática: quando era criança, o piloto norte-americano Chuck Yeager, o primeiro homem a romper a barreira do som, matou acidentalmente seu irmão com um tiro de espingarda. Apesar do trauma, seu pai o pôs no colo e ensinou-o a manejar corretamente a arma, para que acidentes do tipo não se repetissem. Pode-se imaginar situação semelhante no Brasil? Há alguns dias, uma parte da arquibancada do Estádio da Fonte Nova, em Salvador, desabou, matando sete pessoas. Em vez de apurar responsabilidades, o governo estadual do petista Jaques Wagner resolveu demolir o estádio. Do mesmo modo agiu o governo do Pará, da também petista Ana Júlia Carepa, diante da denúncia de que uma menina de 15 anos havia ficado quase um mês trancafiada numa cela com mais de 20 homens, onde teria sido sistematicamente estuprada: mandou demolir a cadeia. Nos EUA, diante de uma tragédia como a relatada acima, busca-se acertar, corrigir o erro. No Brasil, manda-se demolir - ou desarmar. Cada povo encara - ou não - seus demônios de forma diferente.
.
A associação entre desarmamentismo e totalitarismo é inegável. Não por acaso, uma das primeiras medidas que regimes totalitários como o de Hitler e Stálin tomaram foi proibir todos os cidadãos de portar armas. Somente as Forças Armadas e os órgãos de segurança - inclusive a polícia política - tinham esse direito. E o resultado não foi nenhum aumento da segurança para a população. Muito pelo contrário. A julgar pelas simpatias ideológicas de partidos como o PT, que defende o desarmamento, por regimes como o de Cuba e pelos narcoterroristas das FARC, é lícito desconfiar de medidas desse tipo.

Ao contrário do que nos dizem diariamente as ONGs "da paz" e a Rede Globo, armas são, sim, uma proteção. Sempre me perguntei por que os tarados e malucos que resolvem se matar e levar uns dez junto consigo nos EUA escolhem lugares como escolas ou jardins-de-infância para cometer seus massacres. Por que não atacam, por exemplo, uma convenção de caçadores ou um clube de tiro? Há dezenas de motivos para tragédias sangrentas como as de Columbine ou Nebraska. Inclusive, e principalmente, motivos de ordem psicológica. A posse de armas por cidadãos comuns, porém, não é um deles.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

"HÉRCULES 56": A HISTÓRIA SEQÜESTRADA


Tudo bem que o cinema brasileiro nunca foi lá essas coisas. Tudo bem que alguns gêneros específicos, como o documentário, costumam trair um claro viés ideológico de esquerda. Tudo bem que nossos cineastas não são assim uns Fellinis ou Antonionis, apesar de pretensão não lhes ser artigo escasso. Tudo bem até que eles sejam quase todos uns comunas enrustidos e que não possam viver sem mamar nas gordas tetas estatais, sonhando com o dia em que irão competir de igual para igual com Hollywood. Tudo isso eu posso entender, e até tolerar. O problema é quando resolvem "reescrever" a história, na tentativa de impingir-nos uma versão mitificada e falsificada de eventos ocorridos há nem tanto tempo assim. Quando isso ocorre, o que fazem não merece nem ser chamado de cinema. É melhor chamar de propaganda ideológica pura e simples.

Hércules 56, documentário dirigido por Sílvio Da-Rin, se encaixa exatamente nesse perfil. Assisti ao filme há alguns dias. O assunto é o destino dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Elbrick, seqüestrado por duas organizações da esquerda armada em setembro de 1969, na primeira ação do gênero bem-sucedida da História.

Basicamente, Hércules 56 - o nome do filme é uma referência ao avião militar em que os prisioneiros embarcaram para o México e o exílio - é uma série de depoimentos dos ex-militantes de esquerda (alguns, como Zé Dirceu, nem tão "ex" assim) sobreviventes, entremeada por imagens de arquivo e por uma conversa informal entre os participantes da ação, hoje senhores grisalhos, em volta de uma mesa de bar. Enquanto os que foram libertados em troca da vida do embaixador desfiam suas reminiscências diante da câmera, lembrando passo a passo os momentos de tensão que precederam o embarque no avião e a chegada ao México e a Cuba - aonde a maioria se dirigiu, alguns para receber treinamento em guerrilhas -, os que tomaram parte direta no seqüestro relembram, em conversa bastante animada, os detalhes da operação espetacular. Em certo momento, confessam, às gargalhadas, que, caso o governo dos generais não atendesse suas reivindicações - a soltura dos 15 prisioneiros e a divulgação de um manifesto na imprensa - estavam, sim, dispostos a executar o embaixador. À certa altura, chegam mesmo a esboçar uma autocrítica sobre os erros da operação, que não foram poucos, e discutem se ela própria foi ou não um erro. Quanto a isso, as opiniões são discordantes - o próprio Zé Dirceu, além de Vladimir Palmeira e Flávio Tavares, três dos libertados no seqüestro, admitem que a ação foi equivocada desde o início, tendo contribuído para intensificar a repressão.

Dos que estão reunidos na mesa de bar, o atual Ministro da Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, é o mais falante. Ele teve papel de destaque, como integrante da Dissidência Estudantil da Guanabara (que daria origem ao MR-8) no episódio do seqüestro, tendo sido um dos redatores do manifesto dos sequëstradores (que muitos até hoje acreditam erroneamente, por causa do filme de Bruno Barreto, O Que é Isso, Companheiro?, ter sido obra do Fernando Gabeira). O filme termina com uma frase dele. Ao discutir a questão de se o seqüestro foi ou não um erro, Franklin Martins afirma mais ou menos o seguinte (escrevo de memória): o seqüestro não pode ser considerado uma ação errada, assim como a própria luta armada, pois tanto esta como aquele contribuíram significativamente para a derrota da ditadura e o restabelecimento da democracia no Brasil. Como fica claro pelos extras do DVD, o diretor do filme, Sílvio Da-Rin, tem opinião semelhante.

Foi aqui que me convenci daquilo que coloquei nos dois primeiros parágrafos deste texto. A tese da luta armada "democrática", de resistência à ditadura, é uma das mais presentes na literatura e na produção cinematográfica sobre o período do regime militar no Brasil. E é também uma das falsificações mais grosseiras e escandalosas de que se tem notícia. Não se pode sequer alegar falta de informações sobre o assunto: há uma vasta bibliografia que trata do tema, dentre a qual a série de quatro livros de Elio Gaspari, por exemplo, que não deixa qualquer dúvida sobre os verdadeiros objetivos dos revolucionários brasileiros. Ao contrário do que reza a lenda, estes não queriam saber de democracia, eleições livres e outras "formalidades burguesas", mas, sim, substituir um regime autoritário por outro, totalitário e comunista, transformando o Brasil não numa Suécia ou numa Finlândia, mas num "Cubão". Um dos que participaram do seqüestro de Elbrick, o hoje professor universitário Daniel Aarão Reis, também está presente no filme, ao lado de Franklin Martins. Ao contrário deste, Aarão Reis é um crítico honesto da luta armada dos anos 60 e 70, já tendo afirmado, em diversas ocasiões, seu caráter totalitário e não-democrático, inspirado em ditaduras comunistas como a de Cuba. Estranhamente, ele fala muito pouco no documentário. Deve ter sentido que estava em minoria. Ou que não estava no script.

Durante as últimas três décadas, a versão fantasiosa dos guerrilheiros como heróicos combatentes da liberdade contra os cruéis torturadores militares foi repetida à exaustão nos livros didáticos. Agora, com filmes como Hércules 56 e Batismo de Sangue, essa versão adquire enfim um formato cinematográfico, com apoio oficial (um dos patrocinadores do filme é a onipresente PETROBRAS). Que os militares foram cruéis e torturadores, não resta dúvida. Agora, que os guerrilheiros-terroristas foram heróicos combatentes da liberdade, e que sua luta visava a restaurar a democracia no Brasil, como sugere o filme de Sílvio Da-Rin, são outros quinhentos.

Um dia, num futuro distante, os que pegaram em armas contra o regime militar no Brasil vão admitir, finalmente, que sua luta não era por democracia coisa nenhuma. Que estavam lutando para instaurar aqui um regime muito mais brutal e sanguinário do que o que queriam derrubar e que, caso fossem vitoriosos, teríamos não três centenas de mortos em vinte anos de arbítrio, mas milhares ou milhões de cadáveres. Um dia, também, quem sabe, algum cineasta brasileiro fará um filme honesto sobre os "anos de chumbo" no Brasil. Desconfio, porém, que isso só ocorrerá quando for descoberta a cura para o mau-caratismo e a idiotice, três anos depois de fundarmos nossa primeira colônia na terceira lua de Júpiter.
---
P.S.: Na foto acima, os presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano sendo recebidos em Havana, embevecidos, pelo grande democrata e humanista, "El Comandante" Fidel Castro. A prova viva de que o objetivo dos guerrilheiros ("terroristas" é a palavra, mas o bom-tom não permite) era mesmo a democracia, os direitos humanos, a liberdade, eleições livres e pluralismo...

terça-feira, dezembro 04, 2007

OS VENEZUELANOS MANDARAM CHÁVEZ CALAR-SE

Em 1988, o então ditador do Chile, general Augusto Pinochet, convocou um plebiscito para decidir sobre sua permanência ou não no poder, que tomara à força num sangrento golpe de estado em 1973. Com isso, pretendia cobrir de legitimidade seu regime, uma das ditaduras militares mais brutais da história da América Latina, garantindo para si mais alguns anos de desmandos à frente do Estado. Para sua frustração, a grande maioria da população chilena, cansada de tanta arbitrariedade, votou em peso pelo "Não", manifestando seu descontentamento com o regime e seu anseio pelo retorno à democracia. Dois anos depois, a ditadura militar chilena chegava ao fim.

Em 2 de dezembro de 2007, situação semelhante ocorreu na Venezuela, com o plebiscito que decidiu, por uma pequena margem de diferença (51% a 49%), em favor do "Não" à pretensão do ditador de facto do país, coronel Hugo Chávez Frías, de ver aprovada a reforma constitucional que lhe permitiria manter-se indefinidamente na cadeira presidencial. No poder desde 1999, Chávez está à frente de um dos governos mais populistas da história da América Latina, caracterizado pelo personalismo caudilhesco e pela demagogia, sustentado pelos dólares do petróleo.

As duas situações são muito parecidas. Mudam apenas a época e os países, além dos personagens principais. No entanto, há claramente uma grande diferença, desta feita de percepção, entre os dois fatos. Em 1988, a esquerda chilena e latino-americana, brasileira inclusive, exultou como nunca com a derrota de Pinochet. Em 2007, a esquerda brasileira, com Lula e o PT à frente, recolheram-se a um acabrunhado e entristecido silêncio, sentindo o baque. Estão pianinho, como se diz.

Não faltará quem, dentre as hostes esquerdistas, procure racionalizar a derrota de Chávez, afirmando que tal fato é a prova de que o regime chavista é, afinal, democrático, e que todas as afirmações em contrário são, portanto, nada mais do que acusações levianas da ultra-direita e do Departamento de Estado. O mesmo poderia ser dito do regime de Pinochet, por ter permitido o plebiscito que decidiu pelo fim da ditadura. Por aí se vê o nível e a honestidade dos argumentos da tropa de choque pró-Chávez.

É o fim do Socialismo do Século XXI? Não creio. Aliás, essa é justamente, a meu ver, a principal diferença entre as situações do Chile em 1988 e da Venezuela de hoje. Ao contrário da ditadura de Pinochet, o regime chavista está longe de ter queimado seu último cartucho. Quando da realização do plebiscito, o regime dos generais chileno só sobrevivia por inércia, há muito arrastando-se para o fim e dando mostras claras de esgotamento. O autoritarismo militar estava em crise no continente, com os processos de redemocratização avançando a pleno vapor no Brasil, Argentina e Uruguai, dentre outros países. O fascismo bolivariano de Chávez, Morales, Correa et caterva, por sua vez, somente agora começa a dar os primeiros sinais de cansaço. Além disso, as reservas do combustível de que ele se nutre - o petróleo, por um lado, e a demagogia populista e antiamericana, de outro - são, pelo menos no último caso, inesgotáveis. Como demonstra o comportamento de seus cúmplices brasileiros e as tentativas bolivarianas na Bolívia e no Equador, sempre haverá quem esteja disposto a defender com unhas e dentes seu regime. Se têm alguma dúvida, leiam a Carta Capital, que nesta semana publicou uma capa em que, ao mesmo tempo em que reconhece a derrota de Chávez no plebiscit0, louva o caudilho bolivariano por dar comida e educação (!) aos pobres da Venezuela. Enquanto houver idiotas desse naipe, o Napoleão de circo venezuelano poderá ficar sossegado, pois as probabilidades de ele não seguir o caminho de Pinochet ou de Idi Amin continuarão sendo altas.

Pinochet é justamente execrado como um dos ditadores mais cruéis e sanguinários do século XX. Quando morreu, há um ano, milhares de esquerdistas fizeram festa nas ruas. Com todas as barbaridades cometidas por seu regime em 17 anos de autoritarismo, ele aceitou o resultado do plebiscito que rejeitou seu governo e devolveu o Chile à democracia. Receio que o mesmo não possa ser dito de Chávez, que, apesar da derrota do último domingo, ainda não abandonou seu projeto totalitário e militarista. E muito menos de seu mentor, Fidel Castro, que, alérgico a qualquer coisa que lembre remotamente democracia, continua a dar as cartas na ilha-prisão do Caribe. Quando esses dois saírem de cena, será que nossos esquerdistas também farão festa?

A rejeição dos venezuelanos ao projeto de reforma constitucional continuísta de Chávez não deve ser vista como o fim do chavismo. Basta lembrar as palavras do próprio fanfarrão bolivariano, logo após reconhecer a derrota no plebiscito: "por enquanto..." (não por acaso, as mesmas palavras por ele pronunciadas quando do fracasso de sua primeita tentativa - sangrenta - de tomada do poder, numa quartelada mal-sucedida em 1992). Também não se pode deixar de lado o fato (coincidência?) de o plebiscito ter-se realizado em coordenação com tentativas semelhantes de reforma constitucional na Bolívia e no Equador, sem falar na campanha subterrânea pelo terceiro mandato do Grande Molusco no Brasil. Assim como o Rei da Espanha, os venezuelanos mandaram Chávez calar a boca. Mas é improvável que esse Mussolini tropical mantenha a matraca fechada por muito tempo. Que ninguém se iluda com vitórias momentâneas. A fascistização da América Latina está só no começo.