sábado, outubro 03, 2009

COMPLEXO DE GRANDE POTÊNCIA


Foi Nelson Rodrigues quem cunhou uma expressão definidora do caráter nacional brasileiro. Segundo o genial cronista e dramaturgo - melhor cronista, em minha opinião, do que dramaturgo -, o brasileiro sofria de um terrível "complexo de vira-latas", que o impedia de ver a verdadeira grandeza do País e o levava a se humilhar perante os outros países, principalmente os europeus, os quais sempre enxergava de uma posição inferior. Segundo Nelson Rodrigues, foi a vitória na Copa do Mundo da Suécia em 1958 - a primeira conquista mundial do futebol verde-e-amarelo -, mais do que qualquer outra coisa, que lavou a alma do povo brasileiro e começou a sepultar o "complexo de vira-latas" que o amofinava e inibia. Finalmente, o mundo descobria o nosso valor: éramos bons em algo, o futebol; mais que bons, éramos os melhores do mundo, sem dever nada a ninguém.

Para muitos, o complexo de vira-latas de que falava Nelson Rodrigues se resume a um sentimento de inferioridade perante o estrangeiro, uma certa subordinação abjeta ante o que vem de fora. É parcialmente verdade. O complexo de vira-latas não se encerra na auto-depreciação em face do mundo exterior, nem na tendência em valorizar somente o que procede de além-fronteira. Na verdade, à luz do que vemos presenciando, o complexo de vira-latas pode manifestar-se de maneira bem diferente, na forma de nacionalismo. Digo mais: talvez nunca, em toda a História deztepaís, o complexo de vira-latas se manifestou de forma tão eloqüente e vigorosa quanto agora.

Um traço do complexo de vira-latas é, como disse acima, o apequenamento ante os grandes e poderosos. Outro, de que quase não se fala, é o seu oposto exato: isto é, a megalomania, a mania de grandeza. Nisso somos craques, assim como na auto-indulgência. Passamos, diretamente e sem escalas, da prostraçao à grandiloqüência, da extrema modéstia ao orgulho exacerbado. Trata-se, de fato, de uma característica esquizôfrenica do brasileiro. Para nós, não há meio-termo: ou somos os melhores e maiores do mundo, ou somos uns pés-de-chinelo. Ou o "gigante adormecido", deitado eternamente em berço esplêndido, ou o "Brasil Potência", que nada, nem ninguém, é capaz de segurar.

Hoje, vivemos um dos momentos "Brasil Potência" que caracterizam o complexo de vira-latas nelsonrodrigueano. A forma como o governo Lula e o povo em geral reagiram à escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 - com uma explosão de nacionalismo bocó e de euforia ufanista não vistos desde os tempos do "milagre" econômico dos anos Médici -, atesta isso de maneira cabal e cristalina. Lula e os petralhas não perderam tempo em se apropriar também das Olimpíadas, vendendo a escolha do Rio como uma "vitória do governo" - mais: como uma "vitória sobre Obama" (esperteza: como a cidade foi escolhida, dizem que foi graças a Lula e seus asseclas; se fosse Madri, diriam que foi "preconceito"). Agora vão aproveitar para capitalizar em cima dos Jogos. Preparem-se para mais uma corrente pra frente, mais um arroubo ultra-patriótico, com muito samba-exaltação, muitas musiquinhas irritantes à Don & Ravel, com a reprodução incessante de videos promocionais e imagens de cartão-postal, mostrando um Rio de novela das oito, habitado somente por gente feliz e bem-nutrida, sem favelas, nem meninos de rua, nem tiroteios, nem arrastões, nem balas perdidas, nem tráfico de drogas. Até quando queremos ser grandes, somos uns vira-latas. Na verdade, somos vira-latas porque queremos ser grandes, porque transformamos o "ser grande" numa obsessão nacional, em nome da qual vale até maquiar a realidade.

Sob a batuta de Lula e da propaganda petista, viramos todos uns policarpos quaresmas, uns nacionalisteiros caricatos e ridículos (diria Nelson Rodrigues: uns dragões de penacho, eternamente a desfilar na parada de 7 de setembro). Qualquer novidade, mesmo sem ser novidade, adquire, graças aos feitiços do marketing, essa religião moderna, ares de mudança revolucionária, que irá afetar para sempre os destinos não só do Brasil, mas de toda a humanidade. Lula assumiu o governo prometendo "mudar a geografia comercial do mundo", como se fosse um novo Alexandre, o Grande, ou um novo Napoleão - como se isso fosse, enfim, um ato de vontade, o resultado de um decreto ou de uma portaria governamental. Durante algum tempo, falou-se muito no etanol como o caminho para a "revolução energética" que iria fazer e acontecer e colocar o Brasil na vanguarda tecnológica mundial. Depois, com a descoberta do pré-sal, rapidamente mudou-se o foco, e o tema sumiu dos holofotes. Menos o ufanismo, que continuou o mesmo. A diferença é que agora o Brasil virou uma "potência petrolífera". E não simplesmente mais uma potência, mas a "maior do mundo". E isso também internamente: não basta reunir vários programas engavetados há anos numa sigla grandiloqüente; é preciso criar "o maior programa de aceleração do crescimento da História do País". Não é suficiente compilar uma série de programas assistencialistas num único; deve-se fazer "o maior programa social da História da humanidade". E por aí vai. Não basta anunciar uma nova política: é preciso dizer que ela é a maior e a mais importante de todos os tempos; é preciso revesti-la com o rótulo e a aura da grandiosidade. Não duvidem: em breve, o governo estará fazendo campanhas do tipo: "rumo à maior Olimpíada da História do Universo". O Brasil tornou-se pequeno demais para a retórica lulista.
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É no plano externo que o complexo de vira-latas, transformado, por um mecanismo psicológico, em complexo de grande potência, se manifesta com mais intensidade. O País de fato tem aumentado bastante sua presença internacional nos últimos anos - de 1% de participação no comércio mundial, passamos para 1,1%, um salto enorme -, e o governo festeja a substituição do G-8 pelo G-20 como a prova de que o Brasil "é agora respeitado entre os grandes" etc. e tal - como se a entrada em cena de países como a China e a Índia fosse o resultado dos bons esforços de Lula. No Itamaraty, o "pensar grande" virou um verdadeiro dogma. Para realizar a obsessão de tornar o Brasil membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o governo topa qualquer parada. Inclusive reconhecer a ditadura comunista chinesa como economia de mercado ou, para "aproximar-se do mundo árabe", apoiar - e ver ser derrotado - um antissemita e queimador de livros para dirigir a UNESCO. Vale tudo: desde fechar os olhos para o terrorismo narcotraficante das FARC e para as investidas do caudilho fanfarrão Hugo Chávez contra a democracia na Venezuela e em outros países até justificar a fraude eleitoral e a repressão no Irã e transformar a embaixada brasileira em Honduras em comitê político de um golpista bolivariano. Tudo para emergir como líder dos países em desenvolvimento contra os "países ricos" e, em especial, contra os EUA - a uma política externa assim tão protagônica não poderia faltar o indispensável elemento do antiamericanismo e do terceiromundismo ("só não somos grandes por causa 'deles'"...). Aqui, o complexo de vira-latas se demonstra pela idéia fixa de equiparar-se às grandes potências, de fato copiando-as - pensamento típico de mentes realmente colonizadas.

Assim como parece obcecado em se comparar a outros países, carregando consigo a bandeira do patriotismo mais rançoso e extremado, Lula insiste em comparar seu governo às administrações anteriores. Nisso, ele não consegue esconder seu complexo de inferioridade. Aliás, é curioso: a megalomania às vezes convive com o vitimismo e o coitadismo, outros traços marcantes do complexo de vira-latas. Lula usa o tempo todo sua condição de ex-operário, ex-retirante nordestino e semi-letrado (aqui não dá para colocar o "ex" antes) para dizer-se mais preparado para governar o Brasil. É o vira-latas que, uma vez de terno e gravata, deixa-se deslumbrar pelas sereias do poder, e acredita-se o dono do mundo. E ai de quem falar isso: é um "preconceituoso"...

Dialeticamente, como dizem os professores marxistas da USP, o complexo de grande potência traz em si sua própria negação. A obsessão pela grandeza é típica dos nanicos e dos insignificantes. Somente os pequenos, os inseguros, sentem a necessidade de se proclamarem grandes. Quem é verdadeiramente grande e poderoso não precisa disso, não fica alardeando por aí sua superioridade. Ou, como se diz no popular, "se garante". Os pequenos, recalcados e ressentidos, não: precisam provar o tempo todo que são grandes; precisam agitar-se, falar grosso, dizer que fazem chover.

Certa vez, quando eu era criança, fiquei impressionado com uma estória que li, ou que me foi contada, não lembro bem: era uma vez um sapo que se achava o maioral da lagoa. Um dia, ele viu um boi e ficou com inveja porque o boi era maior do que ele. Para não ficar atrás, ele resolve inflar o papo até alcançar o tamanho do boi. De tanto inflar, ele acaba explodindo. A moral da estória é que não se deve dar um salto maior do que as pernas. É uma fábula sobre vaidade e soberba. E sobre baixa auto-estima.

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