quinta-feira, maio 31, 2007

PICARDIAS ESTUDANTIS

Já tinha começado a escrever um texto sobre o cancelamento da concessão da RCTV pelo governo Chávez na Venezuela e outro sobre a monumental farsa que foi a Revolução Cubana – assunto que, por seu alcance e significado práticos para a realidade atual, mereceria vários livros – quando tive a atenção voltada para um fato que insiste em ocupar as manchetes nesses últimos dias. Refiro-me ao fenomenal circo midiático criado em torno da invasão da reitoria da USP por um bando de autoproclamados "estudantes", que já completou vinte dias.

Às vezes é preciso dar um tempo e deixar de lado assuntos mais importantes para mergulhar na vala comum do besteirol cotidiano. Isso porque um fato aparentemente banal muitas vezes pode encerrar preciosos ensinamentos, revelando até que ponto vai, ou melhor, a falta de limites, da babaquice e estupidez humanas.

O motivo que me chamou a atenção para mais essa patacoada foi um debate a que assisti numa rede estatal de televisão. Às vezes perco tempo vendo esse tipo de programa. Embora irremediavelmente chatos, podem ser bem instrutivos.

No debate, além do moderador, havia dois professores – um deles, autor de um livro sobre o "poder jovem", claramente a favor, e outro, timidamente contra, quase pedindo desculpas por suas observações – e um representante da "classe estudantil" (sic), um dos líderes do tal "movimento", apresentado como estudante de filosofia da USP.

Este último, com cara e jeito de nerd e fala empolada de leitor voraz de orelhas de livros de Gramsci e Lukács, foi o que teve mais tempo para falar, aproveitando cada minuto da ribalta para desfiar um extenso rol de divagações filosóficas, em tom triunfalista, sobre a emergência de um "novo padrão", "avesso às instituições oficiais", saudando o "revigoramento" das "lutas dos estudantes" etc.
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Sobre a justeza ou não das reivindicações do referido movimento, bem como sua utilização por partidos políticos que não têm nenhum interesse específico por elas, pouco se falou. A maior parte do tempo foi gasta com as ponderações gramscianas do nerd de óculos e cabelos revoltos, entrecortada por uma ou outra comparação do professor a favor com as agitações dos anos 60. Enquanto isso, o que deveria fazer o papel "do contra", meio acabrunhado, limitava-se a esta ou aquela observação sobre a ilegalidade de invadir prédios públicos, ao mesmo tempo em que confessava sua falta de "capacidade analítica" para interpretar melhor os acontecimentos da USP e elogiava a notável inteligência do tal estudante de filosofia uspiano, a vedete do programa.

Findo este, pus-me a pensar no que acabara de ver. Um "debate", transmitido por uma rede pública de televisão, em que se faz de tudo, menos debater, ou seja, polemizar, argumentar, discutir, e em que os "debatedores" tudo fazem para justificar e enaltecer uma ação ilegal já é uma coisa grave o suficiente para causar preocupação. Usar um canal pertencente ao Estado para louvar o suposto aparecimento de um "movimento" com claras motivações anacrônicas e patrimonialistas, na maior universidade do Brasil, seria motivo para uma CPI. Mas o buraco, como se verá, é mais embaixo.

Chamar a "ocupação" – é assim que são chamadas a invasão e depredação de prédios públicos no Brasil – por uma horda de militantes travestidos em acadêmicos de baderna e desrespeito, assim como o suposto "movimento estudantil" de "movimento" e "estudantil", seria por demais caridoso. Trata-se de uma ação de grupelhos radicalóides que usam os estudantes (com ou sem aspas) para atingir seus objetivos políticos revolucionários. No caso em questão, o catalisador foi a reação contra um decreto do governo do Estado de São Paulo (encabeçado, aliás, por um ex-dirigente nacional da UNE), que prevê maior transparência nas finanças de uma instituição pertencente ao Estado.

Sob o disfarce da defesa da "autonomia" universitária, e acobertados por reivindicações oportunistas ("melhores alojamentos", "melhor comida nos restaurantes" etc) e pela leniência oficial, o que os "estudantes" querem, na verdade, é a conservação de um modelo falido e patrimonialista que, ironicamente, só beneficia aquela parcela da população mais abonada procedente das melhoras escolas particulares, a qual se apossou das universidades estatais (os mais pobres, como se sabe, têm o estranho hábito de preferir as universidades pagas). Em nome do ensino universitário público, o que se defende, na realidade, é o império do interesse privado de quem pode pagar, mas prefere continuar mamando nas generosas e maternais tetas estatais.

Nesse sentido, falar em mais verbas em defesa da "universidade pública, gratuita e de qualidade", é até piada de mau gosto. Se dependesse do gasto com as universidades públicas, o Brasil seria líder mundial em diversas áreas do conhecimento. Entretanto, não é o que se verifica, o investimento estatal não se traduz em resultados concretos na área de pesquisa. Excetuando-se algumas raras ilhas de excelência – em geral, devido à parceria com a iniciativa privada – o que impera é o reino da mediocridade, no qual professores fingem que ensinam e os alunos fingem que estudam. O que os "estudantes" uspianos que invadiram a reitoria querem não é um ensino de qualidade, mas a preservação desse lamentável estado de coisas.
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Nas faculdades de ciências humanas, por exemplo, vigora não o estudo e a pesquisa, mas uma forma de doutrinação político-ideológica, eivada de vulgata marxista ou "politicamente correta", que há muito substituiu o estudo sério por palavras de ordem para agitar as "massas" contra o "sistema", o "capitalismo", a "globalização" etc. De tempos em tempos, estoura uma greve - a principal ocupação acadêmica de muitos "estudantes" -, o que leva sempre a atrasos no ano letivo e serve apenas para agravar ainda mais o já calamitoso estado do ensino (mas isso não é problema para esses "estudantes", pois esta é a menor de suas preocupações). Sem falar no sistema de cotas raciais – importado dos EUA, onde, ao contrário do Brasil, quase não houve miscigenação –, esta invenção do lulismo, já vigente na Universidade de Brasília, uma imposição ("conquista" é o nome que usam) do "movimento negro" incrustado nas faculdades de antropologia.
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Em suma, nas universidades públicas do Brasil, não há lugar para o mérito e o ensino de verdade. Daí porque, apesar dos milhões gastos todo ano pelo governo, quase não há pesquisadores importantes brasileiros citados em publicações científicas internacionais. Mostrem-me um, somente um, filósofo ou cientista político brasileiro famoso mundialmente, por exemplo. A busca será em vão.

Sob o manto do patrocínio oficial, as universidades viraram locais de festa ou substitutos do jardim-de-infância, em que jovens ou nem tão jovens assim, certos de que sempre haverá quem passe a mão em suas cabecinhas ocas, fazem de tudo, menos estudar de verdade. Não surpreende, portanto, que falar em ensino pago nas universidades públicas brasileiras – o que já ocorre nos EUA e até na China Comunista, para citar apenas alguns exemplos – seja anátema. O que esses privilegiados desejam mesmo é manter a boa vida de filhos da classe média e da burguesia, sustentados e mimados pelos cofres públicos para "estudar" (leia-se: farrear entre uma aula e outra, isso para a minoria que freqüenta as salas de aula). Bastou neguinho ter falado em obrigar as universidades a prestar contas à sociedade – ou seja, a nós, otários, que pagamos impostos – e a molecada, correndo o risco de perder a mesada oficial, revoltou-se – ó, que absurdo – contra essa tentativa "arbitrária" de acabar com esse sacrossanto "direito".

Não falo isso por ouvir dizer, mas por experiência própria. Estudei em universidade pública e, lá, pude ver e sentir o que é o chamado "movimento estudantil". A palavra mais adequada para descrevê-lo – na verdade, não consigo achar outra melhor – é palhaçada. Os estudantes, com a UNE à frente, contentam-se em ser massa de manobra das infindáveis disputas entre partidos de esquerda como o PT e o PCdoB, sem falar nos incontáveis grupelhos trotskistas, anarquistas ou simplesmente oportunistas que povoam os DCEs. Eu mesmo, nos meus 19 ou 20 anos, talvez por tédio juvenil, quase caí na besteira de entrar num desses grupos, mas felizmente a razão falou mais alto.
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Duvido que a garotada que faz parte desse "movimento" saiba o que está fazendo. O que a atrai é a festa, o agito, o oba-oba, além da mania, bem adolescente, de seguir a maré, apenas para não ficar de fora da galera. Entre uma farra e outra, regada a muita cerveja e maconha, namoricos e pileques homéricos, de tempos em tempos um dos "líderes" acaba se sobressaindo e termina sendo eleito por alguma legenda de esquerda, apenas para ser esquecido depois, como o Lindbergh Farias (lembram dele?) e agora aquela gatinha gaúcha, eleita – a contragosto, segundo diz – a musa do Congresso.
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A origem disso tudo está na mitologia criada em torno da "geração 68". Há mitos difíceis de erradicar. Um deles, que foi prontamente apropriado pelo "movimento estudantil", é o da juventude idealista que lutou, alguns com armas na mão e o sacrifício da própria vida, contra a malvada ditadura militar e a favor da democracia e da liberdade. Que muitos desses estudantes fossem, na verdade, militantes de organizações terroristas, manipulados por gente velha, e que sua luta não tivesse nada a ver com democracia ou liberdade, mas com ditadura e opressão (basta lembrar que o modelo de quase todos era a Cuba de Fidel Castro), é algo que se tratou de botar debaixo do tapete. Também que remanescentes dessa época, como Zé Dirceu, tenham acabado como paradigmas de corrupção, é algo que não parece incomodá-los muito. O importante é ser "rebelde", ainda que a rebeldia, aqui, esteja direcionada contra a transparência nas contas públicas e para a conservação de privilégios corporativos e patrimonialistas.

O teatro da invasão da reitoria da USP é apenas isso: teatro. Nesse e em outros casos, nossos "rebeldes" estudantis estão mais para aquele grupinho musical infanto-juvenil mexicano do que para Lênin ou Gramsci.
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P.S.: Já tinha terminado de escrever este texto quando irromperam as manifestações de protesto na Venezuela contra a decisão de Chávez de fechar a RCTV. Os estudantes venezuelanos estão dando uma lição a seus colegas brasileiros. Após pintarem a cara contra Collor, em 92, estes viraram uma espécie de papagaios do lulismo, dominados que estão há décadas pela retórica marxistóide-esquerdista. Enquanto os estudantes em Caracas vão às ruas enfrentar a polícia chavista em defesa da democracia e da liberdade de expressão, os estudantes brazucas se calaram diante da tempestade de corrupção que avassalou o país nos últimos anos, servindo de megafone do governo e prestando-se ao ridículo papel de invadir reitorias para manter privilégios. Lamentável!

sexta-feira, maio 25, 2007

O LULISMO AVACALHA O BRASIL


O Brasil é o país da bagunça. É a terra da esculhambação. Até aí, nenhuma novidade. Você, certamente, já ouviu isso antes. Sempre foi assim e, provavelmente, sempre será. É algo de que não podemos fugir: é nosso destino nacional, está no nosso código genético, no nosso DNA.

Sim, mas e daí?, você deve estar se perguntando. Daí que o atual governo brasileiro conseguiu uma proeza quase inacreditável: o lulismo avacalhou o Brasil, esculhambou a própria esculhambação, levando-a a níveis nunca dantes alcançados na terra papagalis. Parafraseando Lula, "nunca antes neste país", roubou-se tanto, tão descaradamente, tão alegremente, tão impunemente.

A cada dia, o Grande Molusco surpreende a todos, superando todos os recordes na área. Sob o lulismo, os índices de deboche e de escracho atingiram um ponto além da imaginação. Antes dele, éramos malandros (ou metidos a malandro), pândegos, esculhambados, corruptos. Com ele, descobrimos que podemos ser muito mais, que não há limites para a embromação humana. Afinal, somos brasileiros e não desistimos nunca, lembram?

A crônica do lulismo pode ser contada em rápidas pinceladas. Primeiro, foi o deslumbramento com a vitória do "presidente-operário", a festa da posse, as multidões extasiadas atirando-se aos pés da Grande Divindade, jogando-se histericamente em direção ao carro presidencial, tal como índios em transe, possuídos de enlevo supersticioso diante de um totem. Depois, os primeiros sinais de desgaste, e então... decepção! Veio Bob Jefferson, das entranhas do governo, e chutou o pau da barraca. Um a um, caiu toda a cúpula petista: Zé Dirceu, Genoíno, Silvinho, Delúbio... Para muitos, foi o fim do petismo, o desmascaramento de um mito, algo comparável apenas ao mar de lama que tomou conta do governo Collor, quinze anos atrás. No entanto...

No entanto – surpresa! –, eis que Lula sobreviveu à crise, livrou-se de seus incômodos aliados esquerdistas, fez novos aliados ("novos" é maneira de falar, se é que se pode dizer que Sarney, Collor e Jader Barbalho são algo "novo" na política brasileira), e – para espanto de muitos, que já o julgavam um lame duck, um pato manco, como se diz nos EUA – conseguiu reeleger-se com grande votação. Mesmo com o barco governista fazendo água, e mais um escândalo – mais um! – estourando às vésperas da eleição, o lulismo levou o bicampeonato. Quanto á corrupção, nem adianta insistir: Lula já disse que isso não tem nada a ver com ele, que não está nem aí – e muita gente, sem querer contrariar o Grande Pai, diz amém.

Confirmado no poder, Lula está se sentindo o tal, com a corda toda. Algum marqueteiro a seu serviço inventou um tal de PAC – do verbo empacar – para tentar vender a idéia, é o que diz o governo, de "destravar" o País em quatro anos (destravar a própria língua, coisa que Lula teve mais de vinte anos para fazer, ele não fez, mas não sejamos preconceituosos...), prometendo, como sempre, mundos e fundos. De tão confiante na amnésia nacional, nosso mandatário supremo já se acha no direito de dar lições até mesmo à Sua Santidade em pessoa. Na campanha, Lula beijou a mão do companheiro Jader Barbalho, mas se recusou, em nome do Estado "laico" – palavrinha cujo significado ele aprendeu recentemente, e que acrescentou às duas dúzias que já domina no idioma português – a beijar a do Papa quando este visitou o Brasil, semanas atrás.

Agora, um novo escândalo – mais um! – explode sobre o Palácio do Planalto, e lá se vai mais um ministro, cujo nome em breve esqueceremos, apanhado na roubalheira, e nem nos importamos mais. Enquanto isso, surgem sinais de que a Polícia Federal – subordinada ao comissário Tarso Genro, o pai daquela louquinha de voz infantil e cabelo encaracolado – anda se comportando como uma NKVD tropical, vazando de propósito informações para prejudicar quem não dança de acordo com o governo. Estamos todos como que submetidos a algum estranho encanto, a algum sortilégio misterioso, capaz de anestesiar as mentes e embotar a razão. Desde a ascensão do lulismo ao poder, o País entrou em estado de letargia, de hipnose coletiva, como se a perplexidade e a falta de senso crítico – ou de vergonha na cara – tivesse tomado conta de tudo e de todos. A maioria dos brasileiros, diante da corrupção lulista, comporta-se como o marido traído que, tendo pego a esposa em flagrante de adultério, recusa-se a acreditar nos próprios olhos. A verdade é simplesmente dura demais, feia demais, para que a encaremos sem cair das nuvens, sem acordar de nossos sonhos cor-de-rosa.

Mas o que é o lulismo?

O lulismo não é uma ideologia, nem uma teoria, nem mesmo uma corrente política, como o foram, em sua época, outros ismos semelhantes: o marxismo, o fascismo, o lacerdismo, o janismo, o ademarismo, o malufismo. Não. O lulismo é algo mais, uma força muito mais profunda e sinistra, algo muito mais entranhado na psique coletiva nacional. O lulismo é a avacalhação do Brasil porque eleva à máxima potência e leva às últimas conseqüências do caradurismo (outro ismo!) aquilo que há de pior no Brasil e nos brasileiros: a ambigüidade moral, a desonestidade, a malandragem, o – olha os ismos aí de novo – clientelismo, o fisiologismo, o compadrismo, o puxa-saquismo, o patrimonialismo. Em bom português: o levar vantagem, a cafajestice, a indolência, a sem-vergonhice, a safadeza.

Um exemplo: a economia vai bem, mas isso não é obra dos lulistas. Pelo contrário: estes já pegaram o bonde andando, tendo-se beneficiado de reformas – incompletas, aliás – iniciadas no governo anterior, contra as quais se opuseram, à época, com todas as forças, assim como do bom momento por que passa a economia mundial – a famigerada globalização contra a qual berram sem parar muitos lulistas. Mesmo sendo contra, os lulistas se apropriaram dos frutos dessas reformas e dessa mesma globalização, sem qualquer pudor ou arrependimento – afinal, se você não tem uma idéia melhor que a de seu adversário, por que não roubá-la? O importante, no final das contas, é o "poder" – e, para conservá-lo, vale de tudo, até copiar e aproveitar-se do que sempre se criticou. Confissão? Arrependimento? Honestidade? Para quê?

Engana-se quem acha que o lulismo é um fenômeno de esquerda, ou que se circunscreve ao PT e seus simpatizantes. Há lulistas em todos os partidos, em todas as tendências políticas. Há lulistas no PT, no PMDB, no PSDB, no ex-PFL (agora DEM), em partido nenhum. Lulistas católicos, evangélicos, espíritas, budistas, ateus. Lulistas governistas e de oposição. Do contra e do a favor. Lulistas pró-Lula e até mesmo contra Lula. Há lulistas de esquerda, mas também de centro e de direita, sem falar, claro, do principal exemplar da política nacional – o político sem cor política, sem ideologia, sem caráter e sem-vergonha, faminto por verbas e interessado apenas em "se dar bem", seja de que lado for (de preferência no lado do governo, pois é sempre melhor ficar do lado de quem tem as chaves do cofre).

Assim como extravasa o PT, o lulismo vai além do próprio Lula, impregnando tudo, contaminando qualquer coisa que estiver a seu alcance, cada porção da sociedade, como uma bolha assassina. Não importa o que se faça, é impossível ficar imune a ele. O lulismo entrou em cada casa, em cada sala, contagiando a todos, deixando sua marca, como o mosquito da malária ou uma febre tropical. Faça um teste e veja se você se enquadra no figurino:

Você está indignado com a corrupção do governo Lula, mas no final dá de ombros, pois "todos fazem igual"? Então você é lulista.
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Você crê que Lula é um governante corrupto e incapaz, além de incompetente e ignorante, mas acha que, no fundo, ele tem boas intenções e está fazendo um governo voltado para os mais pobres e para corrigir as injustiças sociais? Você é lulista, com certeza.
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Você indignou-se com a sucessão de escândalos, como o caso Waldomiro, Zé Dirceu, os dólares na cueca, Genoíno, o dossiêgate etc., e, como o professor Mangabeira Unger, até defendeu o impeachment de Lula em 2005, mas hoje pensa que a hora de tirá-lo do poder passou, e que no final o tempo tratará de apagar tudo da memória? Você é lulista, pode apostar.

Você esfregou as mãos com os escândalos, vendo neles uma oportunidade de "deixar Lula sangrar" nas eleições de 2006, para que outro candidato pudesse vencer nas urnas, reduzindo a corrupção a uma mera questão eleitoral, e não penal? Você é lulista também.

Você considera Lula um "traidor do povo e do PT" e um corrupto por ter adotado as mesmas políticas "neoliberais" de FHC, e votou em Heloísa Helena ou em outro maluco de extrema esquerda? Não tenha dúvidas: ainda que ache que não, você é o maior dos lulistas.

Você prefere ver Lula no poder, embora mal o suporte, porque afinal você prefere um governo "popular" a um "de direita"? Você é um lulista de primeira hora.

Você discorda de tudo no governo, acha-o um desastre, mas aplaude sua política externa "altiva" e "independente"? Você é lulista, sim senhor.

Você torce o nariz para Lula e seus ministros, mas ainda assim o considera um antídoto contra a atual onda de populismo na América Latina? Acredite, você é um lulista de carteirinha.

Atualmente, uma exposição fotográfica no Conjunto Nacional, o shopping center mais popular de Brasília, dedica-se a louvar a figura de Lula, mostrando-o em poses ao lado de seus eleitores, segurando criancinhas etc. O título da exposição: "Somos milhões de Lulas". E somos mesmo. O lulismo não só vai além de Lula, como é anterior a ele. É, aliás, anterior ao próprio PT, á própria esquerda. Ele estava representado no Grito do Ipiranga, na Primeira Missa, nas Caravelas de Cabral. Em tudo que de pior Portugal trouxe para o Brasil. Em tudo que somos e não queremos admitir. É a quintessência do Brasil.

sexta-feira, maio 18, 2007

"NOSSOS" F.D.P. E OS "DELES"


O cubano Luís Posada Carriles é um assassino frio e sanguinário. Em 1976, ele foi o autor de um crime monstruoso: fez explodir, em pleno ar, um avião de passageiros da empresa Cubana de Aviación, matando todos seus 73 passageiros e tripulantes. Em 1997, ele confessou a autoria dessa atrocidade, assim como a de uma série de atentados à bomba em vários hotéis em Cuba, que resultaram na morte de um turista italiano e em onze feridos. Durante uma reunião da Cúpula Ibero-Americana no Panamá, em 2000, ele foi detido e condenado a oito anos de prisão (tendo sido indultado pelo governo panamenho em 2001) por ter entrado no país com documentos falsos e explosivos, supostamente para tramar contra a vida de Fidel Castro.

Luís Posada Carriles é um terrorista, um cão raivoso, um monstro. É o Osama Bin Laden de Cuba.

Esta semana, o quase octogenário Posada Carriles foi libertado nos EUA, depois de pagar uma fiança de 350 mil dólares. Desde que ele foi preso em 2005, por entrar ilegalmente no país, os governos de Cuba e da Venezuela, que querem sua extradição, acusam os EUA de estarem protegendo um perigoso criminoso internacional. Nesse mister, foram acompanhados por vários órgãos de imprensa, inclusive conservadores, que não tardaram em comparar a posição dos EUA no "caso Posada Carriles" com a atitude norte-americana em relação a outros terroristas procurados, como Osama Bin Laden, e aos detidos na base de Guantánamo. Nessa visão, o terrorista cubano parece comprovar, aos olhos de muitos, aquilo que se convencionou chamar de "duplo padrão" dos EUA no tratamento da questão do terrorismo. Como escreveu, em editorial, o jornal El Tiempo, da Colômbia, em 14/05/2007:

"Posada Carriles se converteu no símbolo de que ser qualificado de terrorista depende da agenda exterior dos EUA. Com muito menos evidência, mantêm-se em Guantánamo centenas de muçulmanos ‘suspeitos’ de terrorismo, aos que se negam os mesmos direitos que deixaram livre o cubano. Dupla moral que tira autoridade ao campeão da guerra global contra o terrorismo".

E, finalmente:

"Washington parece estar parodiando neste caso o que Theodore Roosevelt disse uma vez sobre o ditador nicaragüense Anastasio Somoza (pai): ‘É um f.d.p., mas é nosso f.d.p" (Grifo no original).

As duras palavras do editorial transcrito acima trazem uma parcela importante de verdade. Uma parcela significativa, mas que nem por isso compreende a verdade integral, toda a verdade.
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Refiro-me à forma claramente oportunista e demagógica com que governos tirânicos costumam utilizar a questão do terrorismo como uma arma retórica para reforçar seu poder e criminalizar qualquer oposição. No caso específico de Posada Carriles – um, repito, perigoso terrorista, que deve ser detido, julgado e condenado por seus crimes –, a manipulação, levada a cabo pelo regime que ele quer destruir – a ditadura de Fidel Castro – é explícita e chega a extremos de cinismo.

Para muitas pessoas, ingênuas ou mal-informadas, poderia parecer que o regime de Havana estaria sinceramente preocupado em tirar de circulação facínoras e criminosos contra a humanidade. Uma análise honesta, porém, deixa claro que não é nada disso. É tudo mais uma mise-en-scène, mais uma encenação do ditador cubano, nos mesmos moldes das gigantescas manifestações "espontâneas" orquestradas pela polícia da ditadura para mostrar a "unidade" do povo cubano em torno do Líder e louvar as glórias do regime na Plaza de la Revolución.

A manipulação da questão pelo regime castrista ocorre em duas frentes: uma interna, e outra, externa. Vejamos cada uma delas, começando pelo plano interno.

Há, como se sabe, vários grupos de oposição à ditadura de Fidel Castro, sobretudo entre os dois milhões de exilados cubanos que vivem hoje no exterior, tangidos pela Revolução que, tendo começado democrática, terminou comunista. A maioria deles, tendo à frente figuras da resistência como Oswaldo Payá e Raúl Rivero, é pacífica e se opõe terminantemente ao terrorismo, não só por razões políticas – como forma de luta contra ditaduras, o terrorismo é, como se verá a seguir, uma tática ineficaz e contraproducente –, mas também, e sobretudo, morais. Posada Carriles não tem nada a ver com esses grupos, assim como Carlos Mariguella e Carlos Lamarca não tinham nada a ver com Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Mesmo assim, para o regime de Havana, todos esses grupos, todos os que se opõem a ele, são gusanos – literalmente "vermes", traidores, bandidos, espiões da CIA, mercenários a soldo do imperialismo, criminosos que não merecem nenhuma consideração ou qualquer direito –, assim como, para a ditadura militar brasileira (1964-1985), todos os que se opunham a ela eram tachados com o rótulo bastante elástico de "subversivos". Em Cuba, basta ser a favor de eleições livres, dizer qualquer palavra que não agrade ao Líder, e se estará carimbando um passaporte para a cadeia.

O terrorismo é o maior aliado das ditaduras, tanto de direita quanto de esquerda. Não apenas o terrorismo de Estado – o terrorismo apoiado e patrocinado pelos serviços secretos de países como Irã, Síria, Líbia, Coréia do Norte e, também, Cuba –, mas também e, quiçá principalmente, o terrorismo contra o Estado, contra esses regimes. Tanto aquele quanto este atendem aos objetivos do tirano de plantão: aquele, por razões óbvias; este, por fornecer um pretexto para a intensificação da repressão e, assim, justificar a própria tirania. Foi assim em todas as ditaduras – absolutamente todas – que se viram um dia sob ataque de grupos terroristas, e a ditadura cubana não é exceção. E isso não é de hoje: foi justamente um atentado contra Lênin, em 1918, que desencadeou o terror bolchevique, que descambaria, anos mais tarde, nos grandes expurgos stalinistas na ex-URSS.

Assim como o regime militar brasileiro usou os atentados de grupos revolucionários – apoiados, entre outros, por Cuba – para apertar ainda mais o nó da repressão, estendendo-a a toda a população civil, os ataques de Posada Carriles e de organizações como a Alpha 66 acabam servindo aos propósitos do sistema político que querem atingir. Do mesmo modo que, durante a ditadura militar no Brasil, os generais no poder utilizavam a luta armada de extrema-esquerda como uma justificativa para o endurecimento da repressão, sufocando assim toda e qualquer oposição política, a ditadura comunista de Fidel Castro se vale de gente como Posada Carriles para reforçar a perseguição a seus opositores, inclusive os mais pacíficos (de quebra, o ditador ainda posa de vítima de uma agressão, perpetrada por um "agente do imperialismo ianque" – e muitos parvos, intoxicados pela propaganda castrista, assinam embaixo). Mais uma vez, comprova-se a teoria da ferradura, segundo a qual os dois extremos, cedo ou tarde, terminam se encontrando, usando, além dos mesmos métodos, os mesmos argumentos.

Um exemplo recente desse tipo de manipulação ocorreu em março de 2003, quando o ditador cubano se aproveitou do seqüestro de uma balsa por três pobres-diabos que queriam fugir da ilha-prisão para meter na cadeia, de cambulhada, 78 dissidentes políticos pelo crime de, entre outras coisas, emprestarem livros considerados "subversivos". A cada ação desse tipo, o regime cubano responde com mais repressão, mais censura. Nesse sentido, assim como o tão falado "bloqueio" dos EUA contra a ilha, Posada Carriles é uma verdadeira bênção para Fidel Castro – é mesmo um dos maiores advogados do totalitarismo castrista. Graças a tipos como ele, o regime continua a negar à sociedade qualquer vislumbre de democracia, como se esta fosse incapaz de enfrentar a ameaça terrorista – algo, aliás, desmentido por exemplos como o da antiga Alemanha Ocidental e da Itália nos anos 70 e 80, as quais não tiveram de abrir mão das liberdades e garantias constitucionais para derrotar o Baader-Meinhof e as Brigate Rosse.

O segundo front de manipulação, o externo, se manifesta da seguinte maneira: como ambos os lados são acusados da prática de atos terroristas e de violarem os direitos humanos, não faria sentido acusar o regime de Cuba por esses crimes, pois seus inimigos – os EUA – "fazem o mesmo". É a velha tese da "equivalência moral" entre os terroristas e os que os combatem, defendida por luminares do antiamericanismo e da idiotice esquerdista como Noam Chomsky e Ignácio Ramonet. Ao contrário, porém, do que dizem esses faróis da sabedoria anticapitalista, anti-EUA e antiglobalização, não há equivalência moral entre o terror de grupos como o Hamas e a Al Qaeda e o contraterror de Israel e dos EUA. Pelo mesmo motivo de que seria preciso ser um sicofanta e um completo canalha para enxergar qualquer equivalência moral entre um serial killer que mata de forma intencional e indiscriminada e o policial que, na tentativa de detê-lo, mata ou fere acidentalmente pessoas inocentes.

Diferentemente das democracias, como os EUA e Israel, que se vêem obrigadas a lançar mão de táticas semelhantes a dos terroristas para caçá-los e puni-los, enfrentando assim um duro dilema moral e político - e tornando-se alvo de duras críticas por causa disso -, as ditaduras estão livres desses escrúpulos de consciência. Apóiam abertamente o terror como forma de luta, e justificam esse apoio usando o terrorismo oposto como desculpa. Mais: fornecem refúgio e até mesmo consideram como heróis os terroristas a seu serviço. Sob o pretexto de denunciar o "duplo padrão" dos países ocidentais na luta contra o terrorismo, o que pretendem é justificar o próprio terrorismo contra os EUA e o Ocidente – ou seja, uma forma bastante sutil e oportunista de duplo padrão e de dupla moral. Aqui também, os que aplaudem a ditadura cubana se revelam grandes tolos ou excelentes atores, seguindo fielmente o ensinamento de Lênin, o pai espiritual de todos os ditadores do século XX: "Acuse-os do que você faz; xingue-os do que você é".

Assim como ocorre com a questão do terrorismo, a "politização" dos direitos humanos – uma queixa contumaz de regimes como o de Fidel Castro, sempre que é chamado a responder pela falta de liberdade na ilha – parte de governos como o dele, não de seus adversários. A tirania cubana já encontrou a fórmula para desviar a atenção das contínuas violações dos direitos humanos na ilha – basta olhar para o outro lado. Para que se preocupar com coisas como democracia e liberdade de expressão, essas formalidades burguesas, se os EUA não fazem sua parte? Para que pedir liberdade para os presos políticos e o fim da repressão e da censura, se os EUA têm Guantánamo e Abu Ghraib etc.? (curiosamente, Fidel Castro e sua camarilha justificam esse discurso sob a alegação da defesa da "soberania" de Cuba – soberania que, pelo visto, depende de que política seguirá Washington...). Em suma, tal fórmula pode ser assim resumida: se os gringos podem, então tudo é permitido. Algo muito conveniente, sem dúvida!

Há um outro elemento de manipulação no caso de Posada Carriles, malandramente explorado pela ditadura castrista: como os EUA e Cuba estão rompidos há mais de quarenta anos – desde 1977, há um escritório de representação de interesses em cada país, mas não há relações diplomáticas – e como, por conseguinte, os dois Estados não têm acordo de extradição, os EUA ficam com uma batata quente nas mãos. Como Fidel sabe que eles não podem, mesmo que quisessem, entregar Posada Carriles, pois este não duraria cinco minutos em Cuba, aproveita para fazer demagogia, apresentando os EUA como "protetores" de um terrorista cruel. Isso porque o sistema judicial cubano, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe perfeitamente, não é nenhum modelo de justiça e imparcialidade: basta lembrar os inúmeros casos de interferência do "Comandante" em julgamentos de "contra-revolucionários", para garantir a condenação dos mesmos, ainda que não houvesse prova alguma contra eles. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Huber Matos e Pedro Díaz Lanz, revolucionários de primeira hora, falsamente acusados por toda sorte de crimes por se oporem à guinada comunista da Revolução Cubana.

É irônico que um regime como o de Fidel Castro ainda queira erguer a voz para falar de terrorismo. Logo ele, que desde 1959 vêm apoiando guerrilhas e terroristas em praticamente todos os cantos do mundo, desde os Tupamaros uruguaios até grupos radicais palestinos e separatistas canadenses de Quebec. Sem falar, claro, naqueles que são certamente os maiores terroristas que já apareceram no continente latino-americano: as FARC colombianas, que tiveram durante anos na ditadura cubana, juntamente com o narcotráfico, seu principal esteio e fonte de inspiração ideológica. A falta de pudor do tirano do Caribe o leva a atirar às favas qualquer sentimento de humanidade, ao mandar explodir no ar, em 1996, um avião civil de um grupo de exilados que sobrevoava o litoral de Cuba, por exemplo. Certamente, ele se sente acima do bem e do mal, pois sabe que sempre contará com os préstimos daqueles que preferem desviar o olhar – afinal, estão ocupados demais apontando os podres, reais ou não, dos EUA.

Quando as torres gêmeas do World Trade Center ruíram, em 11 de setembro de 2001, não faltou quem dissesse que os ataques teriam sido parte de um grande complô arquitetado pelo próprio governo dos EUA para provocar uma "guerra contra o Islã" e se apossar dos poços de petróleo do Oriente Médio. Ainda hoje, há pessoas inteligentes que acreditam piamente nisso. É estranho, portanto, que quase ninguém pense algo parecido quando se trata de terroristas como Posada Carriles e da ditadura totalitária de Fidel Castro em Cuba, o único a se beneficiar desses atentados – ainda mais porque a informação em Cuba, ao contrário dos EUA, é totalmente controlada pelo Estado onipresente e onisciente. Ou seja: pelo próprio Fidel Castro.

Os EUA são freqüentemente acusados de usar "dois pesos e duas medidas" na questão do terrorismo e dos direitos humanos. Afirma-se que Posada Carriles, assim como Somoza, Pinochet e outros, é, para os norte-americanos, um "son of a bitch", mas é "our son of a bitch". De qualquer maneira, figuras como ele são universalmente execradas, tanto por seus inimigos como por seus supostos protetores. Já os que cometem atrocidades contra os EUA são louvados e tratados como heróis ou, como no caso dos homens-bomba palestinos, mártires – um passo para a santidade –, por esses mesmos regimes que acusam os EUA de double standards. Basta olhar para os exemplos cultuados pelas esquerdas, como Che Guevara – um dos assassinos mais frios de que se tem notícia, responsável por centenas de fuzilamentos no paredón em Cuba – e Carlos, o Chacal, o pen pal de Hugo Chávez, que o considera um "combatente da liberdade". No caso dos EUA e seus aliados, pode-se alegar um cínico pragmatismo. No desses últimos, porém, o que há é um fanatismo cego – ou safadeza ideológica mesmo.

"El sueño de la razón produce monstruos...", "o sono da razão produz monstros", é o título de uma célebre gravura de Goya. A instrumentalização do terrorismo e dos direitos humanos por ditaduras como a de Fidel Castro é um dos exemplos mais evidentes de como a sublimação da razão em favor de uma tirania leva ao entorpecimento político e moral de pessoas que, em nome do antiamericanismo, estão dispostas a justificar ou a fazer vista grossa ao terrorismo e à ditadura, desde que sejam "de esquerda". Em geral, são os mesmos que aplaudem o regime comunista cubano, mas que, estranhamente, não desejam governos semelhantes para seus próprios países.

Fidel Castro prometeu uma revolução democrática em Cuba e fez outra, comunista e totalitária. Para tanto, exilou, encarcerou e mandou fuzilar milhares de pessoas, muitas das quais antigos companheiros de revolução, que ousaram protestar contra essa colossal impostura. Não satisfeito em enganar a todos e em impor a mais longa ditadura pessoal do planeta, arrastou seu país, que era um dos mais prósperos das Américas, a uma situação de miséria e indigência totais. Hoje, ele se utiliza do terrorismo, em todas as suas vertentes, para continuar enganando os incautos e manter-se para sempre no poder, negando ao povo cubano a possibilidade de escolher sobre seu próprio destino. Agiu e age, portanto, como aquilo de que acusa seus adversários. Enfim, um autêntico filho-da-puta.

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P.S.: Agradeço ao meu colego Evandro Araújo por ter-me enviado o editorial citado acima, que me deu a idéia de escrever este texto. Ele me pediu para acrescentar que ele não necessariamente corrobora minha análise. Nem precisaria dizer isso, pois caso concordassem comigo eu não justificaria o nome deste blog. Mas aí está o registro. Obrigado, Evandro!

sábado, maio 12, 2007

A GRANDE ILUSÃO


Tem gente que insiste em manter a esperança diante de qualquer desastre, por pior que seja. Se estão num navio e ele bate num iceberg, preferem acreditar que foi só um esbarrão. Se o navio começa a fazer água e afundar, pensam que ele vai afundar só um pouquinho, não até o fundo do oceano. Se o casco empina e não há botes salva-vidas suficientes para todos, acreditam que podem escapar nadando. Se a água é fria demais para nadar ou o mar está coalhado de tubarões e a morte é certa, têm pelo menos o consolo de que vão para o céu, congelados e em pedacinhos.

É essa a atitude adotada por muitas pessoas tidas por "progressistas", diante da atual onda de governos populistas na América Latina, o do histrião Hugo Chávez da Venezuela à frente. Como se sabe, esses governos são um desastre monumental, uma verdadeira fórmula para o fracasso. Diante disso, muita gente boa, não querendo sair de vez do jardim-de-infância esquerdista nem passar por "de direita" - a encarnação do mal, segundo uma visão idiota há muito estabelecida -, termina caindo numa cilada mental, agarrando-se à primeira ilusão que aparecer como sua tábua de salvação.

Na América Latina, essa cilada responde atualmente pelo nome de teoria das "duas esquerdas" - uma, furibunda e "carnívora", adepta do nacional-estatismo mais atrasado; outra, racional e "vegetariana", que, pelo menos aparentemente, reconhece a importância da democracia e as regras da economia de mercado. São representantes da primeira os governos de Hugo Chávez na Venezuela, do índio fajuto Evo Morales na Bolívia e do enfant terrible Rafael Correa no Equador, sem falar, claro, no patrono de todos os perfeitos idiotas latino-americanos, o tirano Fidel Castro. A segunda corrente seria representada, por sua vez, pelos governos esquerdistas mais light de Lula, Michelle Bachelet no Chile e Tabaré Vázquez no Uruguai, com o argentino Néstor Kirchner esquizofrenicamente espremido em algum lugar entre as duas vertentes.

Essa teoria gastronômica das "duas esquerdas" vem sendo elaborada por pessoas que sempre militaram nas hostes esquerdistas, como o venezuelano Teodoro Petkoff (autor, aliás, de um livro chamado Dos Izquierdas), um ex-guerrilheiro e veterano dirigente comunista. Diante do caráter burlesco e histriônico do fenômeno chavista, Petkoff passou-se para a oposição a Chávez, a quem chama de legítimo expoente da esquerda "borbônica" (a que não esquece nem aprende). Até mesmo os autores do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano e de El Regreso del Idiota, livros fundamentais para se compreender a onda de idiotice esquerdizóide que vem tomando conta do hemisfério, endossaram essa tese. No Brasil, a revista Veja (até ela!) também parece ter-se deixado iludir, ao afirmar recentemente que a melhor forma de lidar com as presepadas de Chávez e companhia seria simplesmente ignorá-los, deixá-los de lado, pois contaríamos aqui com um governo - o de Luiz Inácio Lula da Silva - que, apesar dos pesares, estaria fechado com a democracia e com a estabilidade econômica, sendo, portanto, um mal menor, ou mesmo um antídoto contra o neopopulismo castro-chavista-indigenista.

Trata-se de um grande erro, evidentemente. A chamada esquerda "vegetariana", representada entre nós por Lula, não passa de uma escada para a esquerda "carnívora" de Chávez, Fidel, Morales e Correa. Ambas se completam, se complementam. A esquerda "carnívora", para sobreviver, precisa de cúmplices, de simpatizantes. A ditadura de Fidel Castro em Cuba, por exemplo, certamente não existiria nem continuaria prendendo e fuzilando dissidentes se não fosse a complacência com que foi e continua a ser tratada pelos governos "vegetarianos" do continente e de fora dele, como o de Rodríguez Zapatero na Espanha. Do mesmo modo, a semi-ditadura de Chávez e as estripulias "indigenistas" do índio de araque Evo Morales só são possíveis porque há governos - como o do "vegetariano" Lula no Brasil - que preferem virar o rosto e justificar suas ações, mesmo que estas, como no caso da nacionalização das refinarias da PETROBRAS na Bolívia, prejudiquem os interesses nacionais brasileiros.

A idéia de que os "vegetarianos" seriam inofensivos e representariam o juste milieu, o caminho do meio, é uma das maiores empulhações que já surgiram sob o sol. Se estes proclamam seu amor à democracia e ao mercado, não o fazem por convicção ou compromisso filosófico, mas por conveniência política ou falta de opção. A diferença é que os "carnívoros" não se dão sequer a esse trabalho, proclamando abertamente seus propósitos totalitários. Como disse certa vez o Diogo Mainardi, refrigerante light engorda menos, mas também engorda. Assim como não existe socialismo democrático, não existe esquerda light, existe esquerda ingênua ou dissimulada.

A divisão entre "carnívoros" e "vegetarianos", "radicais" e "reformistas","xiitas" e "moderados", "jurássicos" e "modernos", não é de hoje. Sua origem remonta, pelo menos, à Segunda Internacional, fundada por Karl Marx e Friedrich Engels no final do século XIX, onde se digladiavam "revolucionários" (que dariam origem aos comunistas) e "evolucionistas" (que se tornariam, depois, os sociais-democratas). Durante a Revolução de 1917 na Rússia, essa divisão se expressou na cisão entre "bolcheviques" e "mencheviques". Mais tarde, as duas correntes se juntaram, após 1935, na política de "frentes populares", baseada na aliança entre os comunistas e os setores democráticos da burguesia "contra o fascismo". Essa política foi aplicada, com resultados desastrosos, na Espanha e na França, tornando-se, durante a Segunda Guerra Mundial, a base da aliança da ex-URSS com os países democráticos contra o Eixo nazi-fascista. Ao mesmo tempo, a tática revolucionária comunista passou a apoiar-se cada vez mais na simpatia de importantes setores das artes e ciências nos países do Ocidente, como atores, diretores de teatro e cinema, músicos, pintores, professores etc. - enfim, a intelligentsia, de acordo com a visão gramsciana de conquistar cada vez mais espaço("hegemonia") na superestrutura da sociedade capitalista para miná-la por dentro, sempre usando uma máscara de bom-moço, de defensor da liberdade e da democracia.

De lá para cá, a política de "frentes populares" só mudou de nome, conservando, em sua essência, o caráter tático de caminho para a tomada do poder pelos "carnívoros", os comunistas. Foi assim, por exemplo, na antiga Tchecoslováquia, onde os vermelhos impuseram sua ditadura logo depois de vencerem as eleições, em 1948, com o apoio da esquerda "vegetariana" -socialistas, sociais-democratas, liberais etc. -, a qual foi logo recompensada pelos novos donos do poder, sendo enviada aos magotes para mofar em campos de concentração. Vinte anos depois, em 1968, o que restou dessa esquerda "vegetariana", anti-totalitária, resolveu manifestar-se na famosa "Primavera de Praga", defendendo um "socialismo com liberdade". O resultado foi uma dura lição, na qual ela foi novamente calada, dessa vez pelos tanques da ex-URSS que invadiram o país, em nome do socialismo e para enterrar a liberdade.

E isso também na América Latina. Aqui, os "vegetarianos" sempre serviram de escada ou de trampolim para os "carnívoros". Assim como os comunistas, nos países desenvolvidos, passaram a se esconder atrás de palavras de ordem aparentemente inofensivas, como "paz" e "democracia", para ocultar seus verdadeiros objetivos (guerra e ditadura), por essas plagas nunca faltaram companheiros de viagem e inocentes úteis do comunismo. Estes, a pretexto de defender teses nacionalistas ou conciliar o inconciliável - socialismo e liberdade -, apenas prepararam o caminho para o assalto comunista ao poder. Em nome de slogans aparentemente democráticos, o que se planejava, na verdade, era a implantação de regimes totalitários.

O exemplo clássico desse tipo de manipulação é, claro, Cuba. Lá, Fidel Castro e seus barbudos tomaram o poder, em 1959, prometendo democracia e eleições livres. Bastaram pouco mais de dois anos, porém, para que a revolução castrista mostrasse sua verdadeira face, transformando a ilha numa ditadura comunista vitalícia e num porta-aviões soviético nas Américas. Em outras palavras: prometeu-se uma revolução e fez-se outra. Quanto ao motivo verdadeiro da rebelião contra a ditadura anterior, o restabelecimento da democracia e das eleições livres, até hoje os cubanos esperam por elas.

Isso quase ocorreu em outros países da região, como a Guatemala sob o coronel Arbenz em 1950-1954, passando pelo governo da Unidade Popular no Chile em 1970-1973 e pelo fracasso sandinista na Nicarágua nos anos 80. O Brasil, claro, não passou incólume a essa onda histórica - basta lembrar as palavras de Luiz Carlos Prestes, então Secretário-Geral do Partido Comunista Brasileiro (e, se a revolução triunfasse, futuro Líder Máximo da República Soviética do Brasil), às vésperas do golpe que derrubou o governo de João Goulart - protótipo do esquerdista "vegetariano" -, as quais não deixam dúvidas: "nós, os comunistas, já estamos no governo; só não estamos ainda no poder".

Hoje em dia, com o comunismo morto e enterrado, muitos acham que esse tipo de análise não mais procede, sendo tudo paranóia de um punhado de"direitistas" e "reacionários", saudosos da Guerra Fria. É assim que pensam aqueles, que constituem a imensa maioria, que são simplesmente indiferentes à política e à História. É outro erro, certamente induzido por décadas de infiltração marxista na mídia e nas universidades. Basta olhar, por exemplo, para os muçulmanos "moderados"("vegetarianos"), diante do terrorismo dos fundamentalistas ("carnívoros"). Que líder muçulmano "moderado" se atreve a condenar abertamente, perante os fiéis, os atentados do Hamas e da Al-Qaeda (ao contrário, sempre estarão dispostos a dizer alguma palavrinha contra Israel e os EUA)? Em que momento Lula e Zapatero condenaram abertamente regimes como o de Chávez e Fidel? Nem precisa ir muito longe: mostrem-me quando Lula resolveu enquadrar os "carnívoros" do MST, por exemplo. Sem a cumplicidade ou, pelo menos, o silêncio dos "vegetarianos", os "carnívoros" não teriam como existir. Aqueles são seus melhores relações-públicas.

Assim como durante décadas se alimentou o mito de que o socialismo pudesse ser compatível com a democracia, muitos mantém hoje a falsa esperança de que uma esquerda "boa", vegetariana, com Lula à frente, possa contrabalançar o furor populista da esquerda "má", carnívora, na América Latina. E, assim como aquela, esta é uma esperança vã, dramaticamente desmentida pelos fatos todos os dias: nos últimos anos, a força e influência dos "carnívoros" só aumentou, de forma inversamente proporcional a qualquer suposta capacidade moderadora dos seus colegas "vegetarianos". Em vez de servir-lhes de contrapartida, estes têm-se limitado a dizer amém a suas sandices, o que apenas os estimula a ir adiante. Caso haja alguma dúvida quanto a isso, sugiro dar uma olhada na maneira vergonhosa e acabrunhada como o Governo do Brasil se curvou à monumental tunga das refinarias brasileiras na Bolívia pelo índio de butique Evo Morales.

Não há solução para a América Latina dentro do campo esquerdista. Assim como os nacionalistas e outros exemplares da esquerda "vegetariana" na época de Prestes e Goulart, os "vegetarianos" de hoje são instrumentos dos "carnívoros". Para usar uma metáfora futebolística, tão na moda nestes tempos de muita lábia e poucos neurônios, aqueles passam a bola, enquanto estes a chutam. O que se pretende, com essa falsa dicotomia, é salvar o próprio conceito de "esquerda", cobrindo-o com uma aura de racionalidade, atribuindo-lhe virtudes contra as quais sempre lutou. Se é de forma consciente ou não, por malandragem ou ingenuidade, não faz a menor diferença. De um jeito ou de outro, o navio acaba afundando.

terça-feira, maio 08, 2007

"BATISMO DE SANGUE", A HISTÓRIA TORTURADA


O que acontece quando um dos livros mais desonestos já escritos sobre o período da luta armada no Brasil durante os anos 60 e 70, de autoria de um frade católico adepto da Teologia da Libertação e admirador incondicional de Fidel Castro, é adaptado para as telas do cinema? A resposta é: um filme também desonesto, cuja vítima, além da boa fé da platéia, é a verdade histórica.

É esse o caso de Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, atualmente em cartaz nas salas de exibição do País. Trata-se de uma obra que aposta na ingenuidade e na ignorância do espectador para tentar vender uma versão ideologicamente enviesada e factualmente mentirosa de um dos episódios mais marcantes dos chamados "anos de chumbo" no Brasil: a morte, em uma emboscada policial em São Paulo, em 4 de novembro de 1969, do ex-deputado federal e dirigente comunista Carlos Mariguella, chefe da Ação Libertadora Nacional (ALN), que defendia a revolução armada para derrubar a ditadura militar que se instalara no Brasil em 1964.

Como fica claro pelo título e pelos créditos iniciais, o filme é baseado no livro homônimo do dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, publicado originalmente em 1982 (e que se encontra atualmente em sua 14a edição). O livro conta a história em parte autobiográfica do envolvimento de frades da Ordem dos Dominicanos em São Paulo com a ALN de Mariguella (seu subtítulo original, aliás, era Os Dominicanos e a Morte de Carlos Mariguella, alterado na edição mais recente para Guerrilha e Morte de Carlos Mariguella).

Na versão de Frei Betto, que passou à história como a "verdadeira", Mariguella foi vítima de uma operação de infiltração da CIA, a agência de espionagem norte-americana, dentro da ALN. O livro sustenta essa tese, sem qualquer base factual, a fim de inocentar os dois frades dominicanos que, presos dias antes no Rio de Janeiro e brutalmente torturados pela equipe do DOPS paulista liderada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, entregaram a data e o local de um encontro clandestino com o líder guerrilheiro, na alameda Casa Branca, além da senha utilizada para marcar tais encontros por telefone ("Aqui é da parte do Ernesto. Esteja hoje na gráfica", telefonava um emissário de Mariguella para a livraria onde um dos frades trabalhava).

Na versão fantasiosa do livro de Frei Betto, todo o episódio da prisão e tortura dos dois dominicanos teria sido apenas uma "encenação" montada pelos serviços de repressão da ditadura para incriminá-los pela morte de Mariguella, de modo a indispor a ala "progressista" da Igreja Católica com os grupos que faziam oposição violenta ao regime militar. Nessa visão, Mariguella teria sido emboscado e morto com ou sem a delação dos dominicanos, cuja presença no local do tiroteio teria servido apenas ao propósito de forjar a versão oficial da delação.

Para dar lustre a sua teoria de infiltração da CIA, o livro de Frei Betto insinua que a agência estadunidense teria tido conhecimento dos planos da guerrilha brasileira de seqüestrar um avião, mas não tomou nenhuma providência no sentido de informar o Governo brasileiro e impedir a ação, para não prejudicar a operação contra a ALN e Mariguella - prova irrefutável, segundo Frei Betto, de que havia um espião da agência infiltrado na organização. Mais que isso, a "prova" definitiva de que os dominicanos não teriam tido qualquer responsabilidade na morte do líder terrorista foi que este teria sido abatido a tiros no meio da rua, do lado de fora do Fusca onde se encontravam os frades, e somente depois seu corpo teria sido colocado no banco de trás do automóvel, para simular uma traição dos dominicanos.

Coube a um outro representante da esquerda brasileira, o historiador marxista Jacob Gorender, ex-dirigente do PCB e fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), outra sigla da luta armada, desmontar a farsa de Frei Betto, agora exposta em filme. Em seu livro Combate nas Trevas, publicado originalmente em 1987, 6a edição, Gorender, que está muito longe de ser um direitista ou um simpatizante da ditadura militar (ele mesmo foi preso e vítima de torturas nas mãos do delegado Fleury), escreveu o seguinte a respeito da morte do líder da ALN, no capítulo "Assim mataram Mariguella":

"Às vinte horas, Mariguella apareceu subindo a alameda Casa Branca. Como de costume, aproximou-se do Fusca azul, abriu a porta e sentou no banco de trás. Instantaneamente, conforme instruções recebidas, Fernando e Yves escapuliram do carro, deram alguns passos e se jogaram ao solo" (p. 195. Grifo meu).

A respeito da teoria geral do assassinato de Mariguella inventada por Frei Betto, Gorender é incisivo:

"Frei Betto preferiu a meia verdade, o que é igual a meia falsidade. Sua versão reconhece que, sob tortura, Fernando e Yves (hoje, ex-frade) denunciaram o dispositivo de ligação com o líder da ALN. (...) Mas sua versão acumula invencionices, cujo desmentido já está na exposição acima. Devo referir-me, contudo, a uma delas: a de que o comparecimento de Mariguella ao ponto da alameda Casa Branca não se deveu exclusivamente (sic) aos dominicanos. Com ou sem o telefonema à Livraria Duas Cidades, ele iria até lá atraído por agentes da CIA infiltrados na ALN. O telefonema teria visado tão-somente a uma encenação (sic), que comprometesse a Igreja e a Ordem dos Dominicanos com o movimento subversivo". (p. 198. Grifos no original)

Em suma, o que Gorender afirma em seu livro - com base em depoimentos e sólida documentação, como está lá para quem quiser comprovar com os próprios olhos - é o seguinte: sob tortura, os dominicanos entregaram o local, a data e a senha do ponto com Mariguella. Na hora marcada, coagidos pelos policiais, esperaram o líder da ALN entrar no Fusca em que o estavam esperando. Quando este entrou, eles se afastaram rapidamente do carro. Os policiais então fuzilaram Mariguella. Não havia nenhum agente da CIA infiltrado na ALN. Nenhum espião norte-americano. Nada.

Como se não fosse suficiente, Gorender põe a pá de cal sobre a tese do livro de Frei Betto e do filme de Helvécio Ratton, ao se referir a um documento recentemente descoberto: o plano de captura de Mariguella pelo DOPS paulista, cujo primeiro ponto diz o seguinte, textualmente:

"Aguardar entrada Mariguella no carro dos padres; acionar os outros; dar voz de prisão". (p. 199. Grifo meu.)

Gorender conta ainda que ouviu de um dos dominicanos, quando estava preso com este no Presídio Tiradentes, a verdadeira história da morte de Mariguella. No entanto, em 1996, quando estavam sendo discutidas as indenizações às famílias dos mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar, o frade misteriosamente voltou atrás, em depoimento perante a Comissão Especial da Câmara dos Deputados criada para essa finalidade. Desde então, os dois dominicanos que estiveram presentes na alameda Casa Branca têm mantido silêncio tumular sobre o episódio, endossando com isso a versão de Frei Betto, que agora se transforma em filme.

Pela análise de Gorender, fica claro que a versão de Frei Betto teve por objetivo não esclarecer a verdade, mas isentar seus irmãos de batina de qualquer culpa pelo ocorrido. De quebra, ainda inventou uma esdrúxula teoria conspiratória, baseada tão-somente em um livro - A CIA e o Culto da Inteligência, dos norte-americanos Victor Marchetti e John D. Marks - que só ligeiramente faz menção a uma suposta infiltração da CIA na ALN, e que já se encontra totalmente desacreditada pela pesquisa criteriosa de Gorender.

A bem da verdade, deve-se reconhecer que o filme de Helvécio Ratton é menos desonesto do que o livro de Frei Betto no qual é inspirado. A tese do agente infiltrado da CIA na ALN, por exemplo, não é encampada pelo filme, pelo menos não abertamente, talvez por ser algo improvável ou absurdo demais, até mesmo para seus realizadores (mesmo assim, em algumas pinceladas, o filme se permite algumas insinuações mais ou menos sutis. Após a morte de Mariguella, por exemplo, os dominicanos presos se perguntam várias vezes, em tom de perplexidade, como a repressão sabia do encontro entre eles e o líder da ALN, se nem eles próprios sabiam que estava programado tal encontro - uma clara falsificação, já que os torturadores, sabedores da ligação dos dominicanos com a ALN, desejavam saber apenas quando e onde seria o próximo encontro dos frades com Mariguella). Mas onde o filme copia ao pé da letra a versão historicamente fictícia do livro de Frei Betto é na cena da morte de Mariguella - no meio da rua, antes de entrar no carro com os dominicanos (versão esta apresentada, também, em recente episódio do programa policialesco Linha Direta, da Rede Globo de Televisão). Poderia ter optado pela reconstrução fidedigna dos fatos, tal como está na obra de Gorender, mas optou pela meia verdade - ou meia falsidade.

Além disso, Batismo de Sangue, o filme, mantém-se fiel ao livro de Frei Betto em outros aspectos importantes - o que, nesse caso, depõe contra sua credibilidade como obra de referência para se entender um período crucial da história nacional. Assim como o livro, o filme se exime de uma visão mais crítica e menos romantizada da opção dos dominicanos pela violência revolucionária, na forma do envolvimento com a ALN, uma delirante organização terrorista apoiada por Cuba, responsável por dezenas de mortes e assaltos a bancos e supermercados. Em nenhum momento de seus 110 minutos, o filme faz qualquer referência às idéias extremistas de Mariguella, que em seus escritos da época chegou a justificar abertamente o terrorismo como forma de luta, tornando-se após sua morte uma espécie de ideólogo do terror, cuja obra mais conhecida, o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, tornou-se referência indispensável para grupos terroristas europeus como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão ocidental. Também não há nenhuma referência crítica, por menor que seja, aos objetivos dos terroristas, que, como bem observaram Daniel Aarão Reis Filho e Elio Gaspari, não tinham nada a ver com democracia, mas com a implantação no Brasil, em última instância, de uma ditadura revolucionária, nos moldes da de Cuba ou da Coréia do Norte.

Tal abordagem maniqueísta acaba prejudicando a composição dos personagens, transformando-os em meros estereótipos em vez de seres de carne e osso. Assim, os dominicanos, estudantes e militantes da luta armada, sem falar no próprio Mariguella, são apresentados como figuras heróicas e idealistas, quase angelicais, enquanto os agentes da repressão, como o delegado Fleury, são interpretados de forma histérica e caricatural. Tudo denota uma clara e indisfarçável simpatia pelos padres-guerrilheiros, armados da Bíblia e de O Capital nas mãos, como na cena, que beira o piegas, em que os dominicanos celebram um arremedo de missa na prisão com suco de uva e biscoitos de maizena.

Como cinema, Batismo de Sangue tem algumas qualidades - as cenas de tortura, por exemplo, são as mais realistas e angustiantes já mostradas em um filme nacional - mas, como registro de um pedaço da história recente do Brasil, está a anos-luz da verdade dos fatos. Algo ainda mais grave diante dos incentivos financeiros à produção recebidos de empresas estatais, como a PETROBRAS e o BNDES, o que significa que o imposto do contribuinte está financiando uma versão falsa de acontecimentos históricos.

A segunda metade do filme, a exemplo do livro, descreve o longo calvário de Frei Tito de Alencar Lima, que enlouquece nas torturas e termina se suicidando no exílio na França. Ao final do filme, porém, fica-se com a impressão de que as vítimas da tortura não foram apenas os presos políticos nas celas do DOPS e do DOI-CODI - A exemplo de outros filmes apologéticos da luta armada e do comunismo, como o chatíssimo Cabra-Cega e o insuportável Olga, a principal vítima, aqui, é a própria História.

HUGO CHÁVEZ, OU O TOTALITARISMO DO SÉCULO XXI*


É triste o destino das esquerdas. Depois de mergulharem de cabeça na ilusão marxista, que intoxicou milhões de corações e mentes no mundo todo após a Revolução de outubro de 1917 na Rússia - tornando-se portanto cúmplices dos milhões de mortos gerados pelo comunismo no século XX -, estas se deixaram enganar por ditaduras como a de Fidel Castro em Cuba e por empulhações como o "pós-modernismo" e outras idiotices semelhantes, que geraram o discurso "politicamente correto". Agora, nossos esquerdistas, órfãos de qualquer referência após a queda do Muro de Berlim e o colapso da URSS, encontraram outro ícone da revolução mundial para idolatrar, outro "líder de novo tipo"(como gosta de dizer o editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet). Enfim, outro guia genial dos povos, o herói dos fracos e oprimidos. Quem? Ele, o Presidente da República Bolivariana da Venezuela, o Coronel Hugo Rafael Chávez Frías.

Tendo estagiado na Embaixada do Brasil em Caracas de 2004 a 2005, tive a oportunidade de ver de perto a tal "revolução bolivariana" que o Comandante - é assim que ele é chamado por seus seguidores - Hugo Chávez vem implantando na Venezuela. Pude constatar até que ponto vai a manipulação da História e da vida política da nação, em favor de um projeto pessoal e narcisista de poder, chancelado pelo plebiscito de 15/08/2004, que confirmou a permanência de Chávez na presidência da República. Pude verificar, também, o grau de ingenuidade e ignorância (para ser caridoso) com que muitos dos intelectuais brazucas enxergam nosso vizinho problemático. Para se ter uma idéia do que digo, vou contar apenas uma história, que mais parece uma anedota.

Às vésperas do plebiscito que confirmou a permanência de Chávez no Palácio de Miraflores, um grupo de intelectuais brasileiros (dos quais fazia parte, ao lado de figurinhas carimbadas do esquerdismo tupiniquim, nomes como o de Chico Buarque de Holanda, certamente sem nada melhor para fazer no momento) resolveu publicar um manifesto, em que enaltecia a "iniciativa" do Presidente Hugo Chávez de "se submeter, voluntariamente" ao escrutínio popular em um referendo, coisa inédita na história mundial. Desse modo, buscavam apresentá-lo como um governante magnânimo e um verdadeiro democrata, que estaria colocando seu próprio cargo em jogo em favor da livre manifestação da vontade do povo.

Acontece que a tal iniciativa a que o manifesto se referia não partiu de Chávez coisa nenhuma. Partiu, isto sim, da oposição a ele que, utilizando-se de um dispositivo constitucional, durante mais de um ano lutou na Justiça para conseguir validar os milhares de assinaturas que pediam a convocação do plebiscito. Enquanto isso, Chávez e sua tropa de choque fizeram literalmente de tudo para impedir a realização da consulta popular! (E como, mesmo assim, ele se saiu vitorioso? A resposta a esta pergunta deve ser buscada nos estranhos mecanismos que comandaram o processo eleitoral... mas isso é outra história). Assim, os autores do manifesto, ao louvarem a realização do plebiscito, estavam, na realidade, enaltecendo a oposição a Chávez, e não o próprio.

Isso é apenas uma pequena mostra, embora significativa, do nível de confusão e de auto-engano a que se submeteram os defensores do Coronel fora da Venezuela. Dentro do país, por sua vez, o que existe é uma situação de crise permanente, provocada pelo desmoronamento das instituições republicanas, em função da ação de Chávez e de seus asseclas. A Venezuela de hoje, se não é ainda uma ditadura com todas as letras, está muito longe de ser uma democracia. Chávez recebeu carta-branca do Parlamento - controlado por ele - para governar do jeito que quiser, como quiser, e até quando quiser. A clássica separação de poderes, condição sine qua non do Estado de Direito Democrático, há muito deixou de existir. Existem hoje na Venezuela não três, mas cinco - cinco! - poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário, Cidadão e Eleitoral), todos meras fachadas para garantir o poder do "Comandante". Para dar um lustre, digamos, popular à sua ditadura de facto, o coronel venezuelano apela constantemente à máquina política do Estado, mediante a ação de seus seguidores do Movimento Quinta República (MVR) e dos "círculos bolivarianos" espalhados nos bairros pobres, e chama isso de "democracia participativa e protagônica". Pior: tudo isso a serviço de um modelo ideológico falido, uma mistura de nacionalismo, estatismo e militarismo que, à falta de uma definição clara e precisa, foi apelidado pomposamente de "socialismo do século XXI" - na verdade um simples rótulo para classificar o velho populismo e o caudilhismo latino-americanos. É o totalitarismo do século XXI, que não ousa dizer o nome.

Por toda parte a que se vá no país, sente-se um clima de déjà vu, de paródia; respira-se um ar de tapeação, como na célebre frase de Marx sobre a História repetindo-se primeiro como tragédia, depois como farsa. Cartazes com o rosto de Chávez, sozinho ou ao lado de ditadores como Fidel Castro - seu mentor político - ou de heróis nacionais como o onipresente Simón Bolívar são vistos em vários lugares de Caracas, no melhor figurino totalitário, como um Stálin ou um Mussolini tropical. Hábil comunicador, Chávez costuma desfilar seus impropérios contra Bush e o "império" em linguagem de cortiço. Para tanto, ele tem até um programa dominical de TV, no qual anuncia as decisões de seu governo, entre um e outro interminável monólogo contra os EUA, o imperialismo, a globalização etc., para o delírio de claques especialmente selecionadas de perfeitos idiotas latino-americanos.

A utilização da mídia, aliás, tem lugar de destaque na chamada "revolução" chavista. Além da farta propaganda oficial, ultimamente Chávez vem investindo pesado contra as redes e jornais que lhe fazem oposição, mandando fechar, por exemplo, a mais antiga rede de TV do país, acusada por ele de "golpista". Além disso, o governo já baixou um decreto de censura aos meios de comunicação - apelidado de "Lei Mordaça" -, impondo uma série de limites à liberdade de expressão. Em lugar de uma imprensa livre, Chávez resolveu patrocinar, juntamente com a Bolívia, o Brasil, a Argentina e o Uruguai, a criação de um canal de TV chapa-branca, a Telesul, para fazer concorrência, segundo ele, às grandes redes norte-americanas como a CNN e a Fox News e divulgar a "verdadeira" versão dos fatos. Desnecessário dizer que se trata, na verdade, de mais um veículo de propaganda ideológica oficial a serviço do chavismo.

A ASCENSÃO DO CAUDILHO

Mas como um indivíduo tão escancaradamente desqualificado, com um discurso tão anacrônico e intenções claramente autoritárias, para não dizer totalitárias, conseguiu alçar-se à condição de principal fator de instabilidade na América Latina? A resposta para essa indagação, evidentemente, deve ser buscada na trajetória de Chávez, que se confunde com a da própria Venezuela em anos recentes. País rico em petróleo - é o quinto maior produtor mundial do produto -, com uma tradição de quarenta anos de democracia e estabilidade política de 1958 a 1998 (quando, tirando algumas tentativas de guerrilha patrocinadas por Cuba nos anos 60, predominou um sistema na prática bipartidário), a Venezuela era, até meados dos anos 80, uma exceção na América Latina dominada por ditaduras militares e líderes populistas. A "Venezuela saudita", como se dizia então, ostentava alguns dos melhores índices econômicos e sociais do continente, graças à fartura do ouro negro. A vida política, dominada por dois partidos que se alternavam no governo - a AD e a COPEI -, transcorria com previsibilidade e monotonia quase suíças.

Entretanto, como sói acontecer com países que dependem de um único produto de exportação, não foi dada a devida atenção ao desenvolvimento de uma base industrial sólida. Assim, quando o boom do petróleo, que atingiu seu auge nos anos 70, chegou ao fim, o resultado foi uma explosão de descontentamento social. Este se refletiu de maneira trágica no famoso Caracazo de 1989, quando centenas de pessoas morreram em protestos nas ruas da capital contra um aumento do preço da gasolina, durante o segundo governo de Carlos Andrés Pérez (1989-1992).

Com os partidos e os políticos tradicionais desacreditados, estavam criadas as condições para o surgimento de líderes demagógicos e de um salvador da pátria. Este veio, finalmente, da única instituição que ainda não era considerada contaminada pelo descrédito e pela corrupção reinantes, as Forças Armadas, na forma de uma tentativa sangrenta de golpe militar, em fevereiro de 1992 (seguida de outra, igualmente sangrenta, alguns meses depois). À frente dessa primeira intentona putschista, estava um até então desconhecido tenente-coronel do Exército, vindo de um lugar obscuro no interior. Seu nome: Hugo Chávez.

Desde então, Chávez apenas colheu os frutos do esfacelamento do sistema político venezuelano, à medida que a crise econômica e social se agravava. Precisava apenas de um referencial histórico (Bolívar, certamente se revirando no túmulo) e de um suporte ideológico. Este veio, finalmente, de outro regime cambaleante, o de Fidel Castro em Cuba, com quem Chávez foi buscar conselhos e inspiração logo após sair da prisão, em 1994. Ao contrário do moribundo regime democrático de Caracas, porém, o de Fidel Castro tinha algo a oferecer ao recém-libertado coronel golpista venezuelano: uma fórmula para conquistar e - principalmente - manter o poder, um projeto político de caráter ditatorial - e os meios para isso.

Outra fonte de inspiração, menos conhecida, para as parlapatices chavistas foram os escritos de Norberto Ceresole, idéologo fascista argentino, já falecido, que entre suas façanhas contava a de ter assessorado a ditadura militar do general Viola na Argentina nos anos 70, e para o qual a derrota das forças de Hitler e Mussolini na 2a Guerra "foi uma tragédia para a América Latina". De Ceresole - que foi mesmo, ao lado do ditador de Cuba, o guru de Chávez nos anos que se seguiram à sua soltura da prisão -, o coronel venezuelano aproveitou a tese do "Exército-Caudilho-Povo", segundo a qual estas três forças juntas deveriam constituir a base da "revolução" pretendida - ou seja, uma mistura de militarismo, caudilhismo e populismo, com uma pitada de fascismo e de anti-semitismo. Dele extraiu também o antiamericanismo visceral, base da idéia de criar um eixo latino-americano de oposição aos EUA - usando, para tanto, a arma do petróleo. Daí os modelos políticos adotados por Chávez serem todos ditaduras - a de Fidel Castro em Cuba, a de Velasco Alvarado no Peru, a do coronel Muamar Kadafi na Líbia etc -, o que faz dele um personagem que está muito mais para Mussolini do que para Marx. Ao que parece, a multidão de idiotas úteis esquerdistas que ora idolatra o histrião de Caracas desconhece esse detalhe ou, então, prefere ignorá-lo.

Chávez não perdeu tempo. Ancorado no partido por ele criado, o MVR, e em sua crescente popularidade, principalmente - mas não exclusivamente - entre os setores mais pobres da população, foi fácil para ele chegar à presidência, em 1998. Na ocasião, ele tinha um discurso anódino, certamente inspirado na experiência de Fidel Castro em Cuba antes de impor sua ditadura, quando este jurava de pés juntos que era um democrata e anticomunista. Assim que botou os pés no palácio presidencial, porém, Chávez deu início a seu plano autoritário. O primeiro passo foi convocar uma Assembléia Constituinte para estabelecer uma nova Constituição, que lhe deu poderes ampliados. Em seguida, a composição do Supremo Tribunal também foi modificada, com a nomeação de juízes sintonizados com o novo governante. E, como que para marcar definitivamente uma ruptura com o passado, mudou-se o nome oficial do país, agora rebatizado de República Bolivariana da Venezuela (algo tão significativo quanto rebatizar o Brasil de República Tiradentina ou coisa que o valha). Com isso, o novo Presidente tratou de consolidar seu poder, sobretudo após os acontecimentos de abril de 2002, quando chegou a ser deposto (ou renunciou, não se sabe) por dois dias, antes de ser reconduzido ao governo por obra dos mesmos militares que o haviam apeado do cargo, em um episódio ainda hoje não esclarecido - e cuja versão oficial, claro, vem sendo desde então explorada ad nauseam pelo governo para fins de propaganda.

Ao mesmo tempo em que montava o aparato institucional necessário à sua perpetuação no poder, o "Comandante" tratou de ampliar sua base de sustentação política entre as camadas mais desfavorecidas da sociedade, mediante as chamadas misiones - programas improvisados de cunho assistencialista, como a Misión Robinson (de alfabetização) e a Misión Barrio Adentro (saúde), ambas levadas a cabo, respectivamente, por professores e médicos cubanos. Como em política não há vácuo, as comunidades assistidas por esses programas, agradecidas, passaram a fornecer o grosso da militância chavista, e tais programas, a despeito de sua eficiência bastante duvidosa, tornaram-se um importante instrumento para garantir a lealdade política ao chavismo: aqueles que assinaram a petição a favor do referendo contra Chávez, por exemplo, tiveram seus nomes incluídos numa lista e ficam de fora dos supostos ou reais benefícios desses programas. Como se vê, uma democracia verdadeiramente "participativa e protagônica".

OS BONS COMPANHEIROS

De todos os regimes com os quais o coronel venezuelano se identifica, o principal é a ditadura comunista de Fidel Castro em Cuba. A "revolução" de Chávez, aliás, não seria possível se não fosse pela candura e condescendência com que até hoje é tratada por muitos governos da região a ditadura castrista. É dela que Chávez retira a inspiração diária para impor sua ditadura pessoal, acumulando poderes, calando a oposição, estabelecendo aos poucos seu próprio culto à personalidade.

É patente a influência cubana nas medidas adotadas pelo regime de Chávez. Um exemplo: em 2005, os governos de Caracas e de Havana assinaram um acordo de cooperação policial que praticamente concede a agentes cubanos o privilégio da extraterritorialidade, ao permitir-lhes deter qualquer pessoa de nacionalidade cubana que viva na Venezuela e extraditá-la para Cuba, por delitos só existentes na legislação cubana (por exemplo: falar mal de Fidel Castro). Como a Venezuela tem uma população de exilados cubanos relativamente grande, tal medida tem um caráter claramente unilateral.

Também no terreno econômico o Comandante venezuelano parece ter buscado inspiração na ilha do Caribe: de 1999 para cá, o PIB da Venezuela vem despencando ladeira abaixo, o nível de vida da população só caiu, e os índices de criminalidade e de inflação crescem sem parar. (Exemplo quase cômico do descalabro do país sob Chávez foi a queda do viaduto que liga o aeroporto de Caracas à capital. É quase uma metáfora da situação do país desde que ele assumiu o poder). Mesmo assim, a Venezuela veio em socorro à ditadura cubana, tendo assumido hoje o papel que um dia já foi da ex-URSS, na forma de 100 mil barris diários de petróleo fornecidos praticamente de graça à ilha, em troca dos tais professores e médicos para as misiones.

Em todas as suas ações, é clara a intenção de Chávez de fazer da Venezuela uma cópia xerox de Cuba, assim como, em épocas passadas, Fidel Castro tentou transformar Cuba em um papel carbono da ex-URSS. Em consonância com esse fim, Chávez já anunciou, de uma penada, uma reforma agrária tão pirotécnica quanto fajuta e a criação de uma nova doutrina militar, baseada no conceito de "guerra assimétrica" - recentemente, ele comprou um lote de caças supersônicos russos e instalou uma fábrica de fuzis AK-103 no país. Além disso, ele já anunciou sua intenção de formar uma milícia com 2 milhões de cidadãos armados. Para quê? Para resistir à "invasão imperialista ianque", claro, no que fica evidente mais uma vez a inspiração cubana (assim como seu ídolo Fidel, Chávez não cansa de denunciar conspirações dos EUA e da CIA para invadir o país e assassiná-lo, o que demonstra uma clara tendência paranóica-esquizóide). Inclusive os famigerados "Comitês de Defesa da Revolução" (CDRs) - cuja função é espionar a vida dos indivíduos em cada quarteirão de Cuba para garantir a fidelidade ao regime - ele vem emulando, criando suas próprias "Unidades de Defesa da Revolução" (UDRs).

Esse outro traço comum com o regime comunista cubano, a militarização da sociedade, caminha de mãos dadas com a exportação da "revolução bolivariana". Assim como Fidel Castro tentou exportar sua revolução, apoiando abertamente grupos guerrilheiros e subversivos na América Latina nos anos 60 - e não só contra regimes ditatoriais, como se tornou um lugar-comum afirmar desde então -, Chávez vem usando os petrodólares para interferir nos países da região e promover a instabilidade no continente. Nos últimos anos, utilizando o dinheiro advindo dos lucros do petróleo, Chávez imiscuiu-se descaradamente nos assuntos internos de vários países vizinhos, tendo apoiado, por exemplo, uma tentativa de golpe militar no Peru em 2005 e comprado briga com o Chile, ao declarar que adoraria molhar os pés "no mar da Bolívia". Chávez já entrou em bate-bocas públicos com os presidentes da Colômbia (Álvaro Uribe), do Peru (Alan García) e do México (o ex Vicente Fox), além de ter sido, como sabemos, o verdadeiro cérebro por trás da decisão recente do governo de Evo Morales de encampar as refinarias da PETROBRAS na Bolívia. Suas fanfarronices já começaram a fazer escola, tendo surgido êmulos seus na Bolívia (Evo Morales) e Equador (Rafael Correa), todos regiamente apoiados pelos petrodólares bolivarianos, generosamente depositados em seus cofres de campanha. Pelo visto, a defesa da soberania nacional, no jargão chavista, vale apenas para criticar os EUA.

Se a chamada "revolução" de Chávez se limitasse à Venezuela, talvez seu governo não passasse de uma excentricidade, um exotismo inofensivo, colorido pelo caráter folclórico de seu líder. Certamente, esta é a visão de muitos no Brasil, que o vêem como um paladino do orgulho terceiromundista ou que, pelo menos, divertem-se com suas palhaçadas. No entanto, por suas próprias características, o regime chavista só pode sobreviver estendendo seus tentáculos aos países vizinhos. Chávez não faz segredo de suas intenções expansionistas, baseadas na idéia megalomaníaca de recriar o sonho de Bolívar. Seu objetivo, na verdade sua obsessão, é a formação de um eixo latino-americano, que, além da Venezuela, já abrangeria Cuba, Bolívia, Equador, Argentina e Nicarágua, além de, relutantemente, Brasil e Uruguai, com ele, Chávez, obviamente como guia e líder. A finalidade de tal eixo político é uma só: enfrentar os EUA. Para tanto, Chávez comemorou a não-implementação da ALCA - o que ele se vangloria de ser um de seus maiores triunfos -, propondo, em lugar desta, uma certa "Alternativa Bolivariana das Américas" (ALBA), e conseguiu, com a complacência do governo brasileiro, transformar o MERCOSUL num palco para suas arengas antiamericanas.

Nesse quesito, aliás, ele perde para poucos, fazendo questão de aparecer como o campeão do antiamericanismo no continente. Basta dizer que ele já chegou a afirmar que a Secretária de Estado norte-americana Condoleeza Rice é apaixonada por ele, e, num célebre discurso na Assembléia Geral da ONU - o palco por excelência de todos os déspostas e carniceiros do mundo, de Yasser Arafat a Idi Amim - chamou o Presidente George W. Bush de "diabo", em um gesto teatralmente ensaiado. Chávez fez questão de ser o último governante a visitar Saddam Hussein antes de sua queda pela invasão anglo-americana de 2003, e foi um dos poucos a defender os testes nucleares norte-coreanos ano passado. Entre seus amigos, figura um louco, o Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e o venezuelano Illich Ramírez Sánchez, mais conhecido como "Carlos, o Chacal", antiga estrela do terrorismo internacional, atualmente preso e condenado à prisão perpétua na França, que compartilha com Chávez o gosto narcísico pela publicidade e com quem costuma trocar calorosas mensagens de fim de ano. Como se não bastasse, ele tomou de assalto o Fórum Social Mundial, transformando-o num palanque para destilar suas platitudes anti-EUA, e muita gente no Brasil acha o máximo.

O antiamericanismo de Chávez provoca às vezes situações esdrúxulas. Até pouco tempo atrás, por exemplo, o governo da Venezuela era um firme defensor da pesquisa e produção de combustíveis alternativos, como o etanol. Bastou que Bush se interessasse pela idéia, realizando uma visita ao Brasil em março passado, e o mandatário venezuelano mudou radicalmente seu discurso. Para tanto, valeu-se de seu amigão do peito Fidel Castro, que, do leito de morte, publicou um artigo no jornal oficial cubano condenando o etanol, pois este iria "provocar mais fome no mundo"...

Tudo isso torna imperativo não se deixar iludir pela retórica chavista, falsamente integracionista. Tudo que Chávez faz ou diz, todas as suas iniciativas de "integração" com os países vizinhos, seja no terreno econômico ou energético, obedecem tão-somente a um cálculo político, são um instrumento a serviço de seu projeto populista de poder continental. Governar, para ele, é polemizar, é buscar o confronto: com os EUA, com a oposição interna, com quem quer que se coloque no caminho de seu objetivo narcisista de poder absoluto e de liderança continental. Contemporizar, aqui, significa apenas reforçar as ambições de um dirigente autoritário e megalomaníaco, que em nada favorecem a integração latino-americana. Muito pelo contrário.

RUMO À DITADURA

Este é um fato a que alguns governos sul-americanos, como o do Brasil, infelizmente ainda parecem não terem se dado conta. O governo Lula insiste em tratar Chávez, assim como Morales na Bolívia, como um amigo e aliado (Chávez é um "aliado excepcional", declarou recentemente Lula), quando este já deu mostras mais que suficientes de seu caráter funesto e pernicioso. Isso mostra que Chávez, além de tudo, é um político de sorte: para construir sua base de poder, ele contou não apenas com sua própria esperteza e com a incompetência e mediocridade da oposição venezuelana - até hoje incapaz de apresentar uma alternativa viável ao Coronel -, mas também com a cumplicidade dos governos dos países vizinhos, que insistem em fechar os olhos ou em minimizar a ameaça que ele representa para o continente.

A Venezuela caminha para a ditadura. Não há dúvida quanto a isso. No início do ano, a Assembléia Nacional venezuelana, composta por 100% de deputados favoráveis a Chávez, concedeu-lhe poderes ditatoriais, e outra lei permitiu-lhe reeleger-se indefinidamente, quantas vezes quiser (ele já declarou para quem quiser ouvir que pretende ficar no poder, pelo menos, até 2030). É verdade que, na Venezuela atual, ainda não há fuzilamentos nem presos políticos em campos de concentração, ao contrário da ilha de Cuba ou da Coréia do Norte. Também é verdade que, diferentemente desses países, a imprensa, apesar das restrições crescentes à liberdade de expressão, ainda funciona livremente. Ainda. Pois, a julgar pelo andar da carruagem, é só uma questão de tempo até que o Coronel repita o gesto de seu mestre e mentor Fidel Castro, e, empoleirado no poder, proclame aos quatro ventos, com a cara mais lavada do mundo: "Eleições? Eleições para quê?". Se algo não for feito, tal dia, cedo ou tarde, vai chegar. Podem apostar.

Há muito de bufonaria e de chanchada, de caricatura, na tal "revolução" de Chávez e no "socialismo" por ele preconizado. Todavia, é um erro não lhe dar a devida atenção. Chávez certamente é um demagogo, um palhaço e um político primitivo em suas palavras e ações, mas está longe de ser inofensivo. Com seus petrodólares abundantes, suas incursões na política dos países vizinhos e suas armas recém-adquiridas, ele é um perigo para a saúde da democracia na América Latina.

Que o povão da Venezuela, há muito abandonado pelas elites do país, enxergue em Chávez uma espécie de Messias ou um herói vingador, assim como o povo alemão via Hitler na década de 20 como um redentor da nação humilhada e empobrecida, é algo até compreensível. Que tantas pessoas tidas por inteligentes, porém, deixem-se voluntariamente cair em mais esse conto-do-vigário, prestando-se ao papel de porta-vozes do fanfarrão de Caracas e de sua "revolução bolivariana", é um desses mistérios insondáveis da humanidade, que apenas comprovam aquilo que Raymond Aron chamou de "ópio dos intelectuais" e Jean-François Revel, de "tentação totalitária". É algo que desafia a razão, parecendo provar que uma certa categoria de seres humanos sente-se irremediavelmente atraída por políticos histriônicos e demagogos, que usam e abusam da retórica vazia e de gestos teatrais para atingir seus objetivos personalistas. Na América Latina, nos últimos cem anos, tivemos uma safra bastante prolífica desses tipos: Perón na Argentina, Vargas e Lula no Brasil, Fidel Castro em Cuba... Com a diferença de que estes, pelo menos, eram/são grandes atores. Ao contrário de Chávez, um deslavado canastrão. Mas atores canastrões, assim como os cantores bregas, sempre terão um público cativo. E, como este, os admiradores de Chávez, Fidel Castro, Morales et caterva são atraídos não pela qualidade do espetáculo, mas por sua escrachada histrionice, por seu caráter farsesco e absurdo. É triste, muito triste mesmo o destino das esquerdas.


* Texto publicado originalmente em 27/04/2007, e republicado por motivos de melhor editoração.

sábado, maio 05, 2007

MANGABEIRA UNGER, O PROFESSOR ALOPRADO*


Ex-brizolista, ex-mentor de Ciro Gomes e professor de Direito na Universidade Harvard, Roberto Mangabeira Unger é um dos intelectuais mais esquisitos que já apareceram debaixo do Equador. Com cara enfezada de poucos amigos, discurso pernóstico e um estranhíssimo sotaque gringo (embora seja brasileiro), ele era até há pouco tempo um dos críticos mais ferozes do governo petista. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 15/11/2005, sob o título "Pôr fim ao governo Lula", o professor Mangabeira Unger escreveu o seguinte:

"AFIRMO que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus desmandos.

Afirmo ser obrigação do Congresso Nacional declarar prontamente o impedimento do presidente. (...) Desde o primeiro dia de seu mandato o presidente desrespeitou as instituições republicanas.(...)

Afirmo que o presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo brasileiro lhe confiou. (...)"

Poucos dias atrás, o autor das linhas reproduzidas acima, o mesmo Roberto Mangabeira Unger que queria o impedimento de Lula, recebeu um convite para integrar o governo, como titular da recém-criada "Secretaria Especial de Ações a Longo Prazo" – já jocosamente apelidada de SEALOPRA –, com status de Ministro de Estado. Mangabeira Unger aceitou o convite na hora. Pouco depois, como que por encanto, seu artigo desapareceu de sua página de internet.

Qual a causa de tão súbita e radical transformação, verdadeiro giro de 180 graus? A resposta última para essa pergunta, claro, só pode ser encontrada na mente misteriosa desse estranho personagem. Uma coisa, porém, é certa: ao se lançar tão açodadamente para apanhar o rosbife atirado pelo governo que antes execrava com tanto furor, Mangabeira Unger provou pelo próprio exemplo pessoal aquilo que denunciava tão ferozmente em seu artigo de 2005: que o governo Lula é, de fato, o mais corrupto da história nacional, integrado por oportunistas e desonestos de todo tipo. Por isso, resolvi escrever o texto a seguir em sua homenagem:

AFIRMO que Mangabeira Unger aderiu ao governo mais corrupto de nossa história nacional. Adesão tanto mais nefasta por demonstrar a falta de honestidade, o oportunismo e a avacalhação de um intelectual que se pretendia sério e respeitado, mas que, no final, mostrou sua verdadeira face, abraçando aquilo que antes esconjurava em troca de uma parcela de poder.

Afirmo que, no artigo que publicou em 15/11/2005, no qual defendia o
impeachment de Lula, Mangabeira Unger não estava sendo sincero e que ele jogou no lixo todos seus anos de ensino e todos os livros que escreveu. De agora em diante, tudo que ele vier a dizer ou escrever não merece ser levado a sério.

Afirmo que Mangabeira Unger é um dos intelectuais mais desonestos que já apareceram no Brasil, o que não é coisa fácil, sendo capaz de sacrificar a própria reputação para usufruir as vantagens e benesses do poder.

Afirmo que Mangabeira Unger, ao deixar-se cooptar pelo lulismo, comprometeu-se para sempre com um presidente que, como ele mesmo afirmou, desde o primeiro dia de seu mandato desrespeitou as instituições republicanas.

Afirmo que Mangabeira Unger e seu partido, o PRB, não passam de instrumentos da avacalhação geral que tomou conta do país desde que o lulismo chegou ao poder.

Afirmo que, ao rejeitar tão descaradamente o que escreveu, Mangabeira Unger revelou-se não apenas desonesto e oportunista, mas leviano. Ele se mostrou o maior dos lulistas, pois segue à risca os ensinamentos do apedeuta, que confessou ter vivido de bravatas até sua chegada ao poder.

Afirmo que Mangabeira Unger deve desculpas não a Lula, por tê-lo definido, corretamente aliás, como um governante omisso e preguiçoso, mas ao povo brasileiro, que ele, Mangabeira Unger, tão desavergonhadamente enganou.

Afirmo que Mangabeira Unger, ao retirar seu artigo com ataques a Lula de sua página na internet, revelou não apenas oportunismo, mas covardia intelectual, repetindo o método stalinista de tentar "reescrever" a história, simplesmente fazendo desaparecer dos registros oficiais imagens ou textos considerados inconvenientes (infelizmente para ele, hoje existe a internet).

Afirmo que a repetição perseverante dessas verdades em todo o país acabará por acender, no coração dos brasileiros, uma chama que reduzirá a cinzas um sistema que hoje se julga intocável e perpétuo - e do qual Mangabeira Unger aceitou fazer parte, como mais um de seus aloprados.

Afirmo que, menos de dois anos depois de seu artigo na
Folha de S. Paulo, o dever de todos os cidadãos é negar o direito de Mangabeira Unger de querer engabelar a todos novamente, tentando justificar sua adesão aos que corromperam e esvaziaram as instituições republicanas, apelando para lugares-comuns como "a situação mudou" e "Lula não teve nada a ver com a crise". Tais alegações são um insulto à inteligência, um atentado contra a razão.

É coisa, enfim, de um verdadeiro aloprado.


P.S.: Se quiserem ler a íntegra do artigo de 15/11/2005 de Mangabeira Unger, acessem o site http://www.estadaocom.br/ultimas/nacional/noticias/2007/abr/24/347.htm.



* Texto publicado neste blog originalmente em 27/04/2007, e republicado por motivos de melhor editoração.