quinta-feira, dezembro 20, 2007

MINHA MENSAGEM DE FIM DE ANO


O ano está chegando ao fim. Como sucede a cada giro de 365 dias, as pessoas costumam tirar alguns dias de folga e enviar mensagens a seus amigos e familiares com os melhores votos de paz, felicidade, saúde - e dinheiro também, claro, pois ninguém é de ferro. Fiel a essa tradição, também estou saindo de férias, motivo pelo qual deixarei de colocar aqui textos novos por algumas semanas. Também pensei em escrever algo, digamos, edificante, bem de acordo com o espírito natalino, para deixar todos felizes, enquanto trocam presentes e comem panetone na ceia de Natal, ou estouram seus espumantes e jogam flores para Iemanjá na noite do reveillón, desejando boas festas.
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Mas confesso. Não sou bom nisso. Nunca fui e, desconfio, jamais serei. O fim do ano é uma época que provoca, em mim, sentimentos contraditórios. Por um lado, fico feliz porque o ano finalmente está acabando e poderei, após meses intensos de trabalho estafante, descansar alguns dias e rever a família (este ano, inclusive, terei a oportunidade de renovar a fidelidade à tribo, pois, apesar de ser a pessoa mais improvável para tal função, fui escolhido como padrinho no batismo de minha sobrinha...). Por outro lado, a proximidade de outro ano me enche de uma sensação de tédio quase insuportável, intensificado pelas costumeiras e previsíveis mensagens de esperança para o ano que se inicia, e pela circunstância de que o período de Natal coincide com meu aniversário - 33 anos, a idade do crucificado -, o que, não é difícil imaginar, causava-me bastante frustração quando criança (em vez de dois, ganhava sempre apenas um presente, "para as duas datas", me diziam com um sorriso meio amarelo...). O tédio que neste período costuma se apossar de mim reforça-se ainda mais diante da perspectiva, quase sempre certeira, de que, em vez de renovação, no próximo ano assistiremos a um pouco mais do mesmo, à repetição de velhos erros e ilusões, que insistem em desafiar qualquer experiência e qualquer ensinamento. Pois assim é a natureza humana: passam-se os anos, as décadas, os séculos, os milênios, e a humanidade continua a mesma, está sempre correndo atrás do próprio rabo, como cachorro louco, em busca de sonhos de grandeza e de redenção da espécie que, em vez de resolver, apenas agravam nossas falhas.

Por esse motivo, não vou desejar nada para 2008. Espero apenas que o ano que se inicia traga, mais do que paz, saúde, grana e felicidade, menos assuntos sobre os quais escrever neste blog do que 2007, que foi realmente um ano cheio. Que haja menos demagogia, menos criminalidade, menos ingenuidade, menos banditismo travestido de bom-mocismo. E que haja um pouco mais de senso crítico, tolerância verdadeira (e não afetações relativistas), inteligência e, acima de tudo, lucidez. Sei que isso é quase uma utopia, talvez um sonho impossível. Mas, se há algo que eu gostaria de pedir a Papai Noel, seria isso: que em 2008, eu tenha muito mais tempo para cultivar meu jardim, e muito menos razão para incomodar dizendo o que penso - e não só o que a maioria gosta de ler - na tela do computador.

Até mais. Vejo vocês em 2008 (com menos textos, espero).

terça-feira, dezembro 18, 2007

COMO DESTRUIR UM PAÍS


Diante da atual situação política de Nuestra América, resolvi elaborar uma pequena receita que, creio, será útil aos candidatos a ditadores e demagogos de todos os tipos, cores e ideologias, que sonham em, um dia, alcançar o Paraíso na terra. Para eles próprios, evidentemente. Tomem nota:

Refundar a nação - A primeira lição que um bom caudilho populista deve aprender, talvez a mais importante de todas, é não ser modesto. Nada de reformazinhas cosmésticas aqui e ali, que logo serão superadas e esquecidas. O bom demagogo deve buscar sempre deixar sua marca na história, de forma inesquecível e indelével. E que maneira melhor de fazer isso do que "refundando" o país? Em outras palavras: nada de reconhecer avanços positivos nos governos anteriores; trata-se agora de romper radicalmente com o passado, fazendo dele tábula rasa. Todos os governantes que o antecederam não fizeram mais que destruir a nação; é hora de reconstruí-la das cinzas. Para fixar essa idéia-força na cabeça da população, não se furte a apelar para a história, condenando, por exemplo, as "elites" (ou "oligarquias") que "dominam este país há quinhentos anos". Mudar o nome oficial do país, inserindo um "bolivariano" no meio, é aconselhável. Aproveite e recubra qualquer iniciativa de seu governo, mesmo que seja a inauguração de cemitério de cachorro em Passa-Quatro do Norte, com ares de Moisés abrindo o Mar Vermelho ou de conquista da Lua, afirmando que "nunca na história deste país" se fez coisa semelhante. Finalmente, sempre que algum engraçadinho resolver botar água na sua fervura, apele para a "herança maldita" deixada pelo governo anterior como a raiz de todos os problemas atuais. Ainda que essa tal herança seja o que sustenta sua demagogia.

Apresente-se como representante das camadas populares - Essa é uma lição importantíssima. O bom demagogo deve esforçar-se sempre para trombetear, ante seu eleitorado e os visitantes estrangeiros, sua imagem de legítimo filho do povo, de autêntico rebento dos setores mais desfavorecidos. Se for mestiço, descendente de índios e semi-analfabeto, melhor ainda, pois sempre poderá usar sua origem e sua própria ignorância como moeda política, aproximando-se assim do povo, que o verá como um dos seus. Mesmo que essa ignorância seja voluntária e cuidadosamente estudada para provocar esse efeito, bastante impactante, curiosamente, também nas camadas mais abastadas, que gostam de coisas exóticas e costumam ser acometidas por um forte sentimento de culpa. Assim, tendo você conquistado a condescendência do conjunto da população, e inclusive das "elites", qualquer um que tiver a ousadia de apontar para sua manipulação de suas origens étnico-sociais por razões eleitoreiras será rapidamente tachado de "elitista" e "preconceituoso", ainda que aponte para fatos, nada mais que fatos.

Concentre todos os poderes - Este é o caminho das pedras. Tenha sempre em mente que o verdadeiro objetivo, a finalidade última, do demagogo é ter todo o poder em suas mãos. Mas aqui é preciso cuidado: não se trata de tomar o poder do Estado à força, num golpe ou quartelada. Esse método está ultrapassado. Nos dias de hoje, os caudilhos tratam de se apossar do poder de forma mais suave e dissimulada, usando os próprios meios legais da democracia. Lembre-se de Hitler e Mussolini, ditadores que conseguiram chegar lá pelo voto. Uma vez na cadeira presidencial, entretanto, não se contente com as restrições constitucionais à concentração dos poderes. De preferência, faça sua própria Constituição, após conseguir maioria parlamentar. Use e abuse de plebiscitos e referendos, pois, ainda que manipulados, você poderá dizer que seu governo é democrático e tem apoio popular e muitos acreditarão nisso. Faça questão de falar em democracia, mas sempre coloque um adjetivo depois, como "participativa" e "protagônica", para diferenciá-la da democracia verdadeira, que não precisa de adjetivos. Aproveite e nomeie os juízes da Suprema Corte, e também a Justiça Eleitoral. Se isso ainda não for suficiente, tente reformar a Constituição que você mesmo fez, a fim de conseguir ser reeleito quantas vezes quiser. Trocando em miúdos: use a democracia para destruí-la. Caso não tenha a sorte de encontrar um país em frangalhos, com a população ansiosa para se livrar dos velhos políticos, nem detenha maioria no Congresso, não tem importância: uma mesadinha para os deputados, digamos uns 30 mil caraminguás por mês, são o suficiente para garantir a fidelidade deles. Mas cuidado para que nenhum deputado da base aliada, não querendo servir de boi de piranha em algum escandalozinho qualquer, resolva botar a boca no trombone e chutar o pau da barraca. Aí o caldo entorna.

Cale a imprensa - O bom candidato a ditador deve sempre ter em mente que a imprensa, tirando a oficial, é sempre sua inimiga, e que notícia boa é sempre notícia a favor. Para garantir essa visão cor-de-rosa, não hesite em maquiar a realidade. Pode começar por uma repaginada no visual, por exemplo, trocando um macacão surrado de operário por ternos bem cortados (ou, se preferir, pode criar sua própria persona, usando símbolos como uma boina militar ou uma roupa com motivos indígenas, fique à vontade). Não esqueça de contratar um bom marqueteiro, a fim de passar uma imagem simpática, e cuidar da aparência (você vai perceber que, nesse jogo da política, aparência é tudo que há). Quanto à imprensa não-tutelada, não vá com muita sede ao pote. Nada de sair por aí mandando de cara empastelar jornais e espancar jornalistas atrevidos. Comece devagarinho, usando os próprios meios legais, como processos por injúria e difamação. Expulsar um jornalista estrangeiro que ousou escrever sobre seus hábitos etílicos, juntando assim censura e patriotada, é uma boa pedida, embora possa pegar mal no início. Idem para tentar tutelar o que se passa na TV, de preferência com nomes pomposos e aparentemente anódinos como Conselho Federal de Jornalismo. Ameaçar sutilmente cortar o fornecimento de papel aos jornais ou cancelar a concessão para funcionar, também é útil. Sem falar no método mais infalível de todos: grana. Com o tempo, você verá como parte da imprensa vai ficar mansinha, vendo como você é maravilhoso e dizendo amém para o seu governo. Logo, logo, você poderá alçar vôos mais altos, fechando, por exemplo, aquela emissora de TV que lhe incomodava. Lembre-se: o que você quer não é debate, não é honestidade. É aplauso.

Distribua assistencialismo - Demagogo que se preze não pode descuidar do bom e velho panen et circensis. Sobretudo porque isso é o que costuma lhe garantir apoio entre as massas populares, e simpatia em setores da intelligentsia nacional e internacional. Aproveite que há idiotas no mundo que sempre vão confundir populismo com justiça social, e faça farto uso de verbas oficiais para distribuir dinheiro e outros benefícios aos mais pobres. Se seu país for rico em recursos naturais, como petróleo, não pense duas vezes antes de torrar os petrodólares com "missões" assistencialistas nas favelas das principais cidades, ainda que tal assistencialismo não se traduza em melhorias efetivas da qualidade de vida da população. Se os alimentos começarem a sumir das prateleiras e a inflação disparar, não se preocupe: basta culpar a ganância dos especuladores, e pronto. O paternalismo estatal, seja na forma de misiones ou de Bolsa-Família, é item indispensável no kit de qualquer demagogo, pois ajuda a manter a população dócil e sob cabresto, criando uma clientela dependente e fiel. Mesmo se o seu maior beneficiário - ou seja, você, candidato a ditador - tenha passado metade da vida vociferando contra a esmola dos ricos, pois esta só fazia promover o conformismo e adiar a tão necessária revolução. Não importa: você está no governo agora, não é mais tempo de bravatas. Lembre-se: você gosta dos pobres; quanto mais deles houver, melhor.

Aparelhe a máquina estatal - É muito importante, para garantir o poder, cercar-se de companheiros leais. Essa lição elementar da política se aplica com muito mais intensidade no caso de líderes populistas e caudilhescos. No seu caso, não se trata apenas de encher a máquina estatal com companheiros de partido ou de campanha, em geral sem nenhuma outra qualificação para exercer o cargo para o qual acabaram de ser nomeados que não o fato de serem companheiros de partido ou de campanha. Trata-se de garantir o controle efetivo da máquina do Estado, sem o qual o projeto populista-totalitário não pode ser implantado. O fato de os que ocupam os altos cargos públicos não terem nenhum compromisso com estes ou capacitação técnica para exercê-los não deve ser um óbice para você: saiba que o Estado deve estar a seu serviço, e não da população. Se tal aparelhamento ideológico do Estado resultar em tragédias, como, por exemplo, a queda de um avião por causa de má administração do sistema aéreo, acione a outra máquina, a da propaganda, e é grande a chance de todos aceitarem a esparrela de que foi tudo uma fatalidade.

Coloque pobres contra ricos - Item da mais alta importância. O velho discurso marxista da luta de classes, verdadeiro catecismo das esquerdas, é sempre bem-vindo. Como bom adepto da arte da demagogia, você sabe perfeitamente que nenhum ditador, desde o século XIX, conseguiu impor sua tirania sem apelar para esse tipo de chavão. Tendo-se atribuído a missão messiânica de "refundar" o país, e apresentando-se como o representante iluminado dos anseios populares, você precisa coroar essa sua missão atiçando os pobres contra os ricos, os sem-terra contra os latifundiários, o proletariado contra a burguesia. Nesse quesito o apoio das esquerdas, em especial dos comunistas, ser-lhe-á de extrema relevância. Consciente que o comunismo soviético já foi para as cucuias faz tempo, e que o socialismo fracassou onde quer que tenha sido implantado, trate de rebatizá-lo, acrescentando-lhe um "democrático" ou um "do século 21". Tenha o cuidado, porém, de não deixar muito claro o que isso significa, deixando aberto o caminho para as mais diversas interpretações. É recomendável, aliás, cultivar a imprecisão. Por exemplo, caso lhe perguntem qual sua ideologia, responda que não é nem capitalista nem comunista, nem de direita nem de esquerda, apenas um "torneiro mecânico". Diante de uma platéia de empresários, é bom fingir compromisso com a estabilidade econômica, a disciplina fiscal, a democracia etc. Para a companheirada, porém, pode soltar o verbo, prometendo a revolução. Desse modo, você vai deixar seus adversários da oposição atordoados, enquanto implementa seu projeto de poder quase na surdina. Deixe os bobocas esquentarem a cabeça para descobrir qual é a sua. Afinal, quando descobrirem - se descobrirem -, já será tarde demais. Com essa aparente indefinição e ambigüidade, você conquistará de imediato o respeito da burguesia e a simpatia e apoio entusiastas de grande parte da intelligentsia européia e continental, órfã da utopia comunista e ansiosa por se deixar enganar novamente. Também não se importe com o fato de, sob seu governo socialista, ter surgido uma elite de burocratas e novos-ricos empoleirados nas tetas estatais. Assim como ocorria na ex-URSS e continua a ocorrer em Cuba, eles ganham dinheiro e bebem seu Romané-Conti a R$ 11 mil a garrafa para servir à causa dos trabalhadores. Além disso, junte à luta de classes uma pitada de chauvinismo nacionalista. Faça como Mussolini, transferindo a dicotomia ricos versus pobres para o cenário internacional. Esta é a próxima dica.

Invente um inimigo externo - Seguindo esse último conselho, não deixe de condenar, em seus discursos, o "imperialismo", escolhendo um país - de preferência, os EUA - para demonizar como responsável por todos os males do mundo. Aproveite que esse é um tipo de discurso que, não importa a época, sempre terá uma audiência atenta e fiéis seguidores. Além de servir para unir a nação em torno de sua figura e desviar a atenção dos problemas internos, a retórica antiimperialista serve também para projetá-lo no exterior, como líder dos povos oprimidos, mesmo que seu país seja um dos maiores exportadores para o "império". Busque aproximar-se de outros inimigos jurados da Casa Branca, em geral países democráticos como o Irã e a Coréia do Norte, a fim de formar um eixo contra as ambições imperiais de Bush e cia. Tal discurso será sempre popular, e tem o bônus de ser de fácil assimilação pelas massas incultas e analfabetas: estas sempre vão querer alguém para culpar pelos seus próprios infortúnios, causados, em grande medida, por você mesmo. Se esse inimigo externo a condenar for os EUA, aí sim a coisa fica perfeita. Sobretudo se o país estiver envolvido em duas guerras impopulares no Oriente Médio, e que, ainda por cima, resultaram na derrubada de duas das piores tiranias dos últimos cinqüenta anos. Nesse caso, é aconselhável, mesmo a título de propaganda, explorar o temor de uma invasão ianque, tal como Fidel Castro faz em Cuba há quase meio século, e armar-se até os dentes. Você dirá que as armas são para enfrentar a invasão iminente, mas é claro que o verdadeiro inimigo é interno: o próprio povo, cada vez mais vigiado.

Reescreva a história - "Quem controla o passado, controla o presente", já dizia George Orwell. "E quem controla o presente, controla o futuro". Isso significa que, para assegurar a posse do poder, é indispensável ter o controle também da educação pública, instituindo um eficiente sistema de doutrinação político-ideológica nas escolas. Não somente através de ameaças abertas ou veladas às instituições de ensino privado, mas principalmente mediante um amplo esquema gramsciano de lavagem cerebral, existente há décadas, no qual militantes disfarçados de professores procuram doutrinar, com cartilhas marxistas, crianças de 13 e 14 anos de idade contra o perverso sistema capitalista e em favor de grandes humanistas como Stálin e Mao Tsé-Tung. Nesse sentido, não hesite em comparar-se a figuras proeminentes da história pátria, e até mesmo mundial, como Bolívar ou Jesus Cristo, atribuindo-lhes supostas características socialistas. Some a isso uma boa dose de revisionismo histórico, pedindo desculpas aos países africanos, por exemplo, pela escravidão negra no passado (ainda que os próprios africanos tenham feito largo uso também do trabalho escravo), ou concedendo a torto e a direito indenizações milionárias a famílias de militantes que lutaram pela democracia (ainda que esses militantes quisessem transformar o país numa Cuba). Com esse tipo de manipulação da História, não duvide, você terá as portas abertas para seu projeto populista de poder.

Desqualifique seus críticos, não os argumentos - Outra dica importante: jamais responda as críticas que lhe fizerem. Apele para a desqualificação de quem as fez, usando e abusando do velho método de argumentação ad hominem, que consiste em atacar o mensageiro, não a mensagem. Assim, você poderá unir o útil ao mais últil ainda, impedindo o debate e desviando o foco para a pessoa que o iniciou, somando, de quebra, mais alguns pontinhos. Por exemplo, alguém mencionou que o governo está gastando demais com o aparelhamento dos Ministérios e projetos sociais assistencialistas de caráter puramente eleitoral? São neoliberais, querem um Estado para os ricos somente. Alguém protesta contra os freqüentes atentados à liberdade de expressão e outras garantias constitucionais? É um reacionário, um defensor da velha ordem oligárquica. Alguém cogitou de seu impeachment por causa da roubalheira oficial, fartamente documentada para quem quiser ver? É um golpista, um saudoso dos anos de chumbo da ditadura. Alguma voz se ergueu para criticar o sistema de cotas raciais nas universidades, que apenas oficializa o racismo, sob pretexto de combatê-lo? É um racista, neto de senhores de escravos e membro da Ku-Klux Klan. Alguém criticou a proposta de prorrogar pela eternidade um imposto que nasceu provisório? São sonegadores, ainda que o imposto em questão penalizasse ricos e pobres. E assim por diante.
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Tenha amigos no exterior - A experiência demonstra que um demagogo legítimo não dura muito tempo sem amigos importantes, não somente nos governos de outros países, mas também nos meios acadêmicos e artísticos em geral. Assim como Mao Tsé-Tung teve um Edgar Snow e Fidel Castro teve um Herbert L. Matthews, o bom caudilho de hoje não pode sobreviver sem um Ignacio Ramonet ou um Noam Chomsky. Não se acanhe, se você for um pouquinho inclinado à leitura, em brandir um livro desses gênios quando estiver discursando, sobretudo se for no maior palco de todos, a Assembléia Geral da ONU. Não esqueça também de chamar esses amigos preciosos para conversar de vez em quando, de preferência com tudo pago pelo governo que você preside. Dá visibilidade, e também ajuda a inflar-lhes os egos.
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Conte com a ignorância alheia - Finalmente, nenhum desses conselhos elencados acima teria alguma serventia se não fosse por essa deusa suprema, a verdadeira guia da vida dos mortais: a ignorância. Jamais subestime a capacidade humana de iludir-se. É ela o verdadeiro motor da História.

Seguida à risca essa receita, asseguro que estarão criadas as bases para mais um governo populista e personalista, messiânico e autoritário. Garanto que o resultado será, em pouco tempo, um país destroçado, uma economia arrasada ou estagnada, as divisões sociais e raciais exacerbadas, a insegurança galopante, as instituições em frangalhos, um povo imbecilizado, uma intelectualidade vendida ou estupidificada. O verdadeiro caminho para a reedição dos piores pesadelos do século que passou. A humanidade não aprende com seus erros; apenas espera a oportunidade de repeti-los. Como tragédia ou como farsa. Ou como ambas.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

O QUE ELES QUEREM


"Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvarguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começa a me compreender?"

Toda vez que eu leio isso, fico arrepiado. O parágrafo acima é, pode-se dizer, o clímax do romance de George Orwell, 1984, e descreve um diálogo (na verdade, um monólogo) entre o torturador, O'Brien, e sua vítima, Winston. Enquanto Winston está sendo torturado até ser reduzido a um esqueleto vivo no Ministério do Amor, O'Brien lhe explica didaticamente os princípios do Ingsoc, o Partido, como a novilíngua e o duplipensar, e a amar o Grande Irmão (o "Big Brother", que tudo sabe e tudo vê, e que é mais conhecido hoje em dia por causa daquele programa de TV idiota). Tendo passado pelas mais cruéis formas de tortura, Winston, que fora preso juntamente com sua amante, Júlia, já passara pelo estágio de aprender: agora precisava compreender para, depois, aceitar. Nesse estágio final, onde deveria tomar para si que dois mais dois são cinco, seria encaminhado à temida sala 101, onde seria colocado diante de seus piores medos.

A leitura de Orwell é, certamente, o melhor caminho para entender o que se está passando na América Latina de hoje, e no Brasil em particular. Mais que isso: é uma das melhores formas de compreender os mecanismos do poder. Há, no diálogo entre O'Brien e Winston, mais ensinamento do que na maioria dos tratados de ciência política. Não há, em toda a literatura ocidental, trecho mais forte a dissecar o verdadeiro motivo que leva as pessoas, sobretudo aquelas imbuídas de uma fé messiânica na redenção da humanidade, a buscar o poder. O poder, diz Orwell, não tem outro compromisso senão com o próprio poder, é um fim em si mesmo. Ao contrário do que nos acostumamos a pensar mecanicamente - por inércia, por preguiça, por medo, ou por tudo isso junto -, é o poder, o poder puro, e não qualquer objetivo altruísta, o que move e conduz os políticos. Todos os políticos, indistintamente. Os de esquerda, defensores de soluções totalitárias - como as denunciadas por Orwell em seus livros -, mais que os outros.

Estando eu em Brasília já há alguns anos, convivo quase diariamente com essa realidade de um mirante, digamos, privilegiado. Por causa da minha profissão, vez ou outra tenho contato com ministros e parlamentares. Percebo, então, como é vazia essa gente, como são ocos seus discursos. É sempre a mesma ladainha, a mesma lengalenga sobre a importância de servir os interesses do "povo" etc. etc. É claro que é tudo falso, que ninguém no Congresso, ou nos Ministérios, ou em qualquer outra instância governamental, leva essa discurseira demagógica a sério, nem está nem aí para os desejos do "povo", ou seja lá o que isso for. É óbvio que a briga por verbas para seus currais eleitorais, a eterna barganha política, não atende a outro propósito senão a manutenção de seus cargos e privilégios corporativos, e nada mais. É o desejo de poder, às vezes da simples proximidade com o poder, o que está por trás de todas as suas ações.

Diariamente, somos bombardeados com informações de como o governo está se empenhando em melhorar a vida da população, em como o Bolsa-Família e a CPMF irão beneficar milhões de pessoas (no caso da CPMF, devemos colocar a sentença no condicional, pois a prorrogação da mesma acaba de ser derrubada no Senado), de como, enfim, o Estado existe para atender os anseios e necessidades do povo. Esqueçam essa balela. É tudo falso, é tudo mentira. Nem Lula, nem a "oposição", nem quem quer que seja, têm outra finalidade, pensam em outra coisa senão em conquistar e conservar o poder. Como sabe perfeitamente quem já leu Maquiavel, é essa a única finalidade da política. Poder. Mais poder. Sempre. Simples assim.

É difícil abrir os olhos para essa verdade tão simples, tão óbvia. Um dos mitos mais fortes, sobretudo entre a esquerda do Primeiro Mundo, é que políticos populistas como Lula e Chávez estão interessados em promover a justiça social. Nada poderia ser mais distante da realidade. Assim como as ditaduras totalitárias do século XX, como o nazismo e o comunismo, os populismos latino-americanos, ao prometerem o céu para as massas, apenas preparam o caminho para o inferno. Nem Lula, nem Chávez, nem Fidel Castro, nem Stálin, nem o Grande Irmão dão a mínima para justiça social e outras coisas do tipo. A única coisa que realmente lhes interessa, a única razão por que se lançaram à política, é o poder, nada mais, nada menos. No caso de Lula e dos companheiros petistas, o poder nunca foi um instrumento para alcançar nenhum objetivo mais elevado, mas o próprio objetivo perseguido, assim como uma forma de ascensão social. É isso que explica seus ziguezagues políticos, suas alianças espúrias, seus mensalões e valeriodutos, suas bravatas, sua proposital indefinição e vagueza ideológica. O poder pelo poder.

Não que todos os políticos sejam vagabundos e safados. Nada disso. Acredito que, em meio à imensa maioria de salafrários, sempre haverá um ou dois idealistas. Mas isso não faz a menor diferença. Idealistas, creio eu, também eram muitos nazistas e comunistas. Provavelmente o personagem do livro de Orwell, O'Brien, o torturador a serviço do Partido, seja um arquétipo do idealismo. Por isso sempre desconfiei de quem se mostra muito idealista em política. Pior que um político sem princípios, só um político com princípios. Principalmente, se for de esquerda.
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Durante muito tempo, acreditei na cantilena marxista de que o Estado, longe de ser um instrumento a serviço do bem comun, nada mais é do que uma máquina para garantir a opressão de uma classe por outra, ou, no dizer de Marx, "um comitê para gerir os negócios comuns da burguesia". Como em tudo o mais, Marx estava redondamente enganado. O Estado não é nada disso. É, sim, um instrumento de opressão, mas a serviço de si mesmo. É para sustentar essa formidável máquina, e não para transformar a terra num paraíso, que existem as leis, os exércitos e os impostos. É por isso que, quanto menor for essa máquina, quanto menor for sua burocracia e quanto menos funcionários tiver, quanto menor for sua ingerência na economia e nos assuntos privados dos cidadãos, melhor para a sociedade. Não por acaso, o animal que simboliza a receita federal, entre nós, é o leão. Não sendo possível nos livrarmos em definitivo desse monstro voraz, cumpre serrar seus dentes e aparar suas unhas, para que fique o mais manso possível.
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Se lêssemos um pouco Orwell, talvez percebêssemos que, de tudo o que o governo nos diz, 99% são mentiras, e o 1% restante é pura propaganda, o que dá quase no mesmo. Seríamos capazes, certamente, de enxergar o que sempre esteve diante de nossos olhos o tempo todo, mas que nunca tivemos a disposição, ou a coragem, de enxergar: que ninguém entra na política pensando no bem alheio, mas unicamente, exclusivamente, simplesmente, no poder, o eterno e inexorável poder. Poder não para distribuir justiça, para dar comida aos pobres e lar às criancinhas, mas para ter mais e mais poder. Não é à toa que os livros de Orwell são até hoje proibidos em países como Cuba. Não é à toa que elegemos e reelegemos Lula para presidente do Brasil.
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Enquanto não abrirmos os olhos para essa dura e fria realidade do poder, deixando de lado definitivamente as ilusões de justiça social brandidas pelos totalitarismos e populismos de todo tipo, correremos o risco de acabar como Winston, que, após ser reduzido a um farrapo humano, aprende a amar o Grande Irmão. "Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre", diz O'Brien no livro de Orwell. 1984 foi escrito há mais de cinqüenta anos. O futuro chegou.

terça-feira, dezembro 11, 2007

A ARTE DE CULTIVAR O PRÓPRIO JARDIM

Confesso. Sou um egoísta. Sempre fui. Desde criancinha. Claro, de acordo com a teologia cristã, eu vou para o inferno. Mas não me importo, até porque não creio em Deus, nem em Diabo, nem em boitatá ou curupira. Isso significa também que, de acordo com a ideologia oficial do Estado brasileiro atualmente, eu sou um canalha, um reacionário, um burguês desprezível. Nem precisa dizer que não dou a mínima para isso também.

É óbvio que, para afirmar tal coisa a respeito de mim mesmo, eu teria que ter uma forte argumentação a favor do egoísmo, tido entre nós como um dos vícios mais funestos, um dos pecados mais terríveis que alguém possa cometer. Teria que ter uma base muito sólida, ou ser muito cara-de-pau, ou as duas coisas, para provar que é bem melhor ser egoísta e se importar apenas com a própria vida do que ser um militante de causas altruístas como a luta contra a extinção dos ursos panda chineses ou o aquecimento global. Devo dizer que a tarefa não é das mais difíceis. Nem precisei ler Ayn Rand ou Milton Friedman para descobrir a delícia e a virtude que estão por trás dessa minha opção consciente. Bastou um pouco de Voltaire.
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François-Marie Arouet, o Voltaire (1694-1778), como quem já leu a Barsa deve saber, foi o principal filósofo do Iluminismo na França. E foi também um grande cínico. Em um século, o XVIII, pontuado por mentes brilhantes e detestáveis, ele foi talvez a mais brilhante de todas, e pessoalmente a mais detestável. Fortemente anticlerical (chamava a Igreja católica de "A Infame"), embora acreditasse na possibilidade de Deus (mas e daí?, perguntava; pois se há mesmo um Deus bondoso e todo-poderoso, por que existem terremotos?) e inimigo de toda forma de obscurantismo, cortejava, porém, algumas cabeças coroadas da Europa, como o Rei da Prússia, Frederico II, em cuja corte chegou a viver por alguns anos. Adversário implacável do absolutismo, desprezava, no entanto, o povo, a quem chamava de "a canalha". Era bastante esperto também, e, quando se tratava de ganhar dinheiro, tinha poucos escrúpulos. Certa vez, aproveitando-se de uma loteria mal organizada, comprou todos os bilhetes e embolsou o prêmio. Escritor, romancista e teatrólogo, desdenhava o público, que considerava uma fera terrível, que precisava ser domada. Era o que se poderia chamar de um esnobe, um aristocrata do pensamento.
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O contraponto perfeito de Voltaire é seu contemporâneo, o filósofo suiço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de O Contrato Social. Ao contrário de Voltaire, Rousseau acreditava na virtude pessoal e na bondade natural dos homens, e fazia mesmo dessa crença uma obsessão e a base de sua filosofia. Diferentemente de Voltaire, Rousseau rejeitava a ciência e o progresso, assim como as desigualdades sociais decorrentes do capitalismo, e advogava, em lugar da sociedade industrial, um retorno à natureza. Em nome da "vontade geral", opunha-se à monarquia constitucional defendida por Voltaire, defendendo o que chamou de "soberania popular". Foi em nome de seus ideais de igualdade e justiça que a ala mais radical da Revolução Francesa, os jacobinos, tendo à frente Robespierre, o "Incorruptível" - tão incorruptível que, dizem, morreu virgem -, desencadeou o Terror na França, cortando milhares de cabeças dos que se opunham ao "Reino da Virtude" e lançando as sementes dos totalitarismos do século XX, como o nazismo e o comunismo. Paradigma da Virtude, Rousseau acreditava que o Estado, como encarnação da vontade geral, poderia substituir o indivíduo e a família. Coerente com essa crença, entregou seus filhos a um orfanato estatal e foi passear à beira do Lago Genebra, onde costumava sonhar com a redenção da humanidade, sustentado por uma rica viúva. Rousseau, o romântico, acreditava que os homens nascem bons e livres, apenas a sociedade é que os corrompia. Voltaire, o racionalista, acreditava que a sociedade poderia até ser algo bom, mas os homens, não. Durante um período, Voltaire e Rousseau trocaram uma rica correspondência. Certa feita, diante da insistência de Rousseau em condenar o progresso e em louvar as virtudes de uma vida pastoril, Voltaire, fiel a seu estilo sarcástico, não titubeou: sugeriu-lhe ficar de quatro e comer capim.
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Ao contrário de seu colega genebrino, Voltaire não dava a mínima para as assim chamadas causas sociais, esse fetiche das esquerdas. A coisa mais importante que um homem poderia fazer na vida, a única realmente de algum valor, dizia, era cuidar do próprio jardim. Somente uma vez Voltaire deixou suas roseiras de lado e entrou de cabeça na defesa de uma causa. Foi quando um morador de Toulouse, no sul da França, Jean Calas, protestante, foi acusado falsamente de planejar o assassinato de um filho que se havia convertido ao catolicismo. Voltaire sentiu, corretamente, cheiro de Inquisição no ar. O resultado foi uma das páginas mais corajosas e uma das defesas mais brilhantes da liberdade religiosa já escritas na história humana, seu Tratado sobre a Tolerância.
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Mesmo nesse caso, porém, Voltaire foi coerente com sua opção individualista. Ele não defendeu Jean Calas porque simpatizasse pessoalmente com ele, ou porque gostasse dos protestantes, ou porque queria mostrar ao mundo que era capaz de gestos altruístas e que não era tão individualista assim, afinal. Nada disso. O que estava em jogo para ele, naquele momento, era o mesmo sentimento que o levava a cultivar seu jardim: a defesa da liberdade individual. Em nome desta, ele estava disposto a servir de advogado em um obscuro caso de intolerância religiosa, em pleno "Século das Luzes", numa distante vila no interior da França. Ao fazê-lo, ele afrontou, assim como faria depois Émile Zola no caso Dreyfus - outro caso de intolerância religiosa, travestido de patriotada militarista -, um país inteiro, uma época inteira.
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Voltaire foi um dos maiores egoístas que já andaram sobre a terra. E um dos maiores benfeitores da humanidade, em todos os tempos. Seu cinismo legou-nos coisas como a liberdade de pensamento e a busca da felicidade individual, artigos até hoje considerados de luxo em muitas partes do planeta ainda submersas no obscurantismo. "Não concordo com uma palavra do que você diz, mas, enquanto viver, lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizer o que pensa", é certamente sua frase mais citada. Pode-se dizer que ele é mesmo o modelo do célebre paradoxo formulado por Adam Smith, o pai da economia clássica, segundo o qual vícios individuais, como a cobiça e a avareza, geram benefícios coletivos.
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Entre nós, brasileiros, as idéias de Voltaire nunca foram muito populares. Em vez de seu saudável ceticismo e de sua mordacidade política, bem presente em sátiras como Cândido, preferimos Rousseau, com seu igualitarismo meio histérico. Este sempre teve, por estas bandas, discípulos devotos. É fácil encontrá-los: no governo, em ONGs, nas redações dos jornais e revistas. Alguns vestem batina. Outros, estão aboletados em algum Ministério. Todos preocupam-se com o próximo, com a humanidade, exalando virtude por todos os poros, arrotando altruísmo e compromisso com a coletividade, ansiosos por "fazer a diferença". Querem revolucionar o mundo, mudá-lo de alto a baixo para restaurar o império da virtude, assim como Rousseau e Robespierre. Em nome desse objetivo abstrato e de um futuro hipotético, no qual imperaria o bem absoluto, estão dispostos a tudo, não se importando em fazer o mal aqui mesmo, de forma concreta, no presente. A perfeita definição do revolucionário, pode-se dizer.
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Costuma-se afirmar, a título de boutade, que quem não foi de esquerda na juventude não tem coração, e quem continua a sê-lo na maturidade não tem cérebro. Eu discordo em parte. Como demonstram os 100 milhões de mortos produzidos no século XX pelo Reino da Virtude, quem é de esquerda, seja que idade tiver, não tem nem cérebro nem coração. Agora com licença, que eu vou cuidar do meu jardim.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

AS VIVANDEIRAS DO DESARMAMENTISMO


A cena é conhecida: nos EUA, um maluco entra em um lugar público e, sem nenhum motivo aparente ou racional, saca uma pistola ou submetralhadora e começa a disparar indiscriminadamente. No final do tiroteio, várias pessoas jazem mortas no chão, crivadas de balas, e outras saem feridas, enquanto o atirador, acuado pela polícia, é abatido a tiros ou se suicida.

O episódio mais recente dessa triste rotina ocorreu há dois dias, no estado de Nebraska. Um adolescente de 19 anos entrou num shopping-center armado até os dentes e começou a fuzilar as pessoas em volta. Oito morreram, além do atirador. Depressivo, este deixara uma carta em que relatava sua intenção de se matar "com estilo". Provavelmente ansiava, com esse gesto tresloucado, alcançar postumamente a celebridade, como os dois adolescentes que massacraram os colegas de escola em Columbine, oito anos atrás.

No Brasil, país que, felizmente, como se sabe, não tem dessas coisas - as batalhas campais entre narcotraficantes e polícia nas favelas cariocas ou as chacinas nos bares da periferia paulistana já nos bastam -, grande parte da imprensa, horrorizada, aproveita e martela a velha tecla: se esses gringos idiotas fizessem uma campanha de desarmamento, do tipo "sou da paz", vestindo branco e abraçando a Lagoa, certamente tragédias como essas não ocorreriam. Se resolvessem deixar de lado esse culto machista das armas e fizessem um referendo, como o que se fez no Brasil dois anos atrás em favor do desarmamento, não estaríamos vendo cenas semelhantes se repetindo. E etc. etc. etc.

As vivandeiras do desarmamento estão de volta. Vivandeiras, para quem não sabe, eram as mulheres que seguiam as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai. Desde então, a palavra passou a ser sinônimo de quem cerca as autoridades - civis e militares - solicitando "providências urgentes" sempre que uma crise se avizinha. Dois anos atrás, elas sofreram uma derrota, quando 64% da população rejeitou - mais por medo da bandidagem do que por amor à liberdade de escolha, é verdade - sua proposta de "desarmar" a sociedade. Mas elas não desistem assim tão fácil. A cada massacre em alguma cidadezinha dos EUA, elas se manifestam com força redobrada. "Viram só? Mais um banho de sangue nos EUA. A culpa é do lobby pró-armas, que impede o governo norte-americano de exercer um controle efetivo sobre os milhões de armas em circulação no país", proclamam aos quatro ventos, certas de que sempre haverá espíritos pouco críticos ou simplórios o suficiente para cair nessa esparrela.

A idéia de que tragédias como a de Nebraska ou de Columbine poderiam ser evitadas se houvesse um maior controle governamental sobre as armas é um desses mitos que a esquerda politicamente correta daqui e de alhures adora cultivar. É uma maneira muito esperta de manipular a verdade. Serve para desviar a atenção do fato de que crimes como esses acontecem não porque há uma arma na mão de alguém, mas porque há uma mente doentia por trás do gatilho. Se fosse uma faca de cozinha ou um canivete, em vez de uma pistola 45 ou uma escopeta 12, haveria mortes também, como demonstraram os atentados suicidas de 11 de setembro de 2001 (aliás, é curioso como os mesmos que advogam o fim da liberdade de escolha em nome do desarmamento no Brasil se mostram tão indignados quanto às rígidas regras de segurança adotadas nos aeroportos dos EUA após os ataques às Torres Gêmeas...). A questão não é a quantidade de armas em circulação, mas quem as porta, assim como o que importa não é quantos carros há nas estradas, mas se o motorista sabe ou não dirigir. Além disso, já está mais que comprovado que a fórmula "menos armas, mais segurança" não funciona na prática. Há atualmente, nos EUA, muito mais armas de fogo nas mãos de cidadãos comuns do que no Brasil, onde vigora uma legislação duríssima e um "Estatuto do Desarmamento" que praticamente proíbe o indivíduo de comprar legalmente um revóver 38. E, no entanto, o que predomina lá é a fórmula inversa, ou seja, "mais armas, menos crimes". Façam uma pesquisa, se quiserem, e vocês vão ver.

Na verdade, não há nada, rigorosamente nada, que permita dizer que um controle maior do Estado sobre as armas nas mãos da população - ou, inversamente, a ausência desse controle - influi, de forma decisiva, nos índices de criminalidade. Basta ver exemplos como o do Japão e da Jamaica, países onde portar armas, mesmo em casa, é ilegal e que têm níveis de violência muito diferentes - quase nulos no Japão, assustadores na Jamaica. Por sua vez, a Suiça convive muito bem com uma legislação que permite a um cidadão guardar um fuzil militar no armário, e nem por isso se vêem os suíços se matando como se estivessem em guerra.

Sabe-se que os EUA possuem uma tradição de o indivíduo possuir armas e portá-las. Mais que uma tradição, é um direito assegurado pela Constituição. Suas origens estão na própria formação histórica do país, a partir de comunidades na prática independentes, em que a posse de um rifle ou de uma pistola sempre foi vista como uma garantia de segurança contra índios e de liberdade contra qualquer ingerência estatal. Durante a Guerra de Independência (1775-1781), foram as milícias de cidadãos, os minutemen, que estiveram à frente da luta contra as forças coloniais britânicas. Ao contrário dos países da América Latina, colonizados manu militari por Espanha e Portugal, ter ou não uma arma, para os norte-americanos, passou a ser, desde então, mais que uma questão de segurança, um símbolo de resistência à opressão e de liberdade individual.

Daí a resistência dos norte-americanos a qualquer projeto de lei que busque tolher esse direito. É difícil para nós, brasileiros, compreendermos isso. Nossa mentalidade, herdada do colonialismo português, sempre colocou a liberdade individual, o direito de escolha do indivíduo, em segundo lugar. Como demonstram os vários períodos ditatoriais da História do País, sempre vigorou, entre nós, uma postura favorável e simpática ao intervencionismo estatal, ao Estado-Leviatã, em vez do Estado liberal clássico. Este continua a ser, para nós, um anátema, geralmente confundido com práticas anárquicas e nepotistas ou com o funesto e incompreendido "neoliberalismo" (a culpa de todos os nossos males, segundo a visão esquerdista, assim como a "globalização" e o Fernando Henrique...).
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A simples noção de liberdade individual, bem como a responsabilidade que lhe é inerente, nos é algo completamente estranho. Um exemplo demonstra isso de forma bastante didática: quando era criança, o piloto norte-americano Chuck Yeager, o primeiro homem a romper a barreira do som, matou acidentalmente seu irmão com um tiro de espingarda. Apesar do trauma, seu pai o pôs no colo e ensinou-o a manejar corretamente a arma, para que acidentes do tipo não se repetissem. Pode-se imaginar situação semelhante no Brasil? Há alguns dias, uma parte da arquibancada do Estádio da Fonte Nova, em Salvador, desabou, matando sete pessoas. Em vez de apurar responsabilidades, o governo estadual do petista Jaques Wagner resolveu demolir o estádio. Do mesmo modo agiu o governo do Pará, da também petista Ana Júlia Carepa, diante da denúncia de que uma menina de 15 anos havia ficado quase um mês trancafiada numa cela com mais de 20 homens, onde teria sido sistematicamente estuprada: mandou demolir a cadeia. Nos EUA, diante de uma tragédia como a relatada acima, busca-se acertar, corrigir o erro. No Brasil, manda-se demolir - ou desarmar. Cada povo encara - ou não - seus demônios de forma diferente.
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A associação entre desarmamentismo e totalitarismo é inegável. Não por acaso, uma das primeiras medidas que regimes totalitários como o de Hitler e Stálin tomaram foi proibir todos os cidadãos de portar armas. Somente as Forças Armadas e os órgãos de segurança - inclusive a polícia política - tinham esse direito. E o resultado não foi nenhum aumento da segurança para a população. Muito pelo contrário. A julgar pelas simpatias ideológicas de partidos como o PT, que defende o desarmamento, por regimes como o de Cuba e pelos narcoterroristas das FARC, é lícito desconfiar de medidas desse tipo.

Ao contrário do que nos dizem diariamente as ONGs "da paz" e a Rede Globo, armas são, sim, uma proteção. Sempre me perguntei por que os tarados e malucos que resolvem se matar e levar uns dez junto consigo nos EUA escolhem lugares como escolas ou jardins-de-infância para cometer seus massacres. Por que não atacam, por exemplo, uma convenção de caçadores ou um clube de tiro? Há dezenas de motivos para tragédias sangrentas como as de Columbine ou Nebraska. Inclusive, e principalmente, motivos de ordem psicológica. A posse de armas por cidadãos comuns, porém, não é um deles.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

"HÉRCULES 56": A HISTÓRIA SEQÜESTRADA


Tudo bem que o cinema brasileiro nunca foi lá essas coisas. Tudo bem que alguns gêneros específicos, como o documentário, costumam trair um claro viés ideológico de esquerda. Tudo bem que nossos cineastas não são assim uns Fellinis ou Antonionis, apesar de pretensão não lhes ser artigo escasso. Tudo bem até que eles sejam quase todos uns comunas enrustidos e que não possam viver sem mamar nas gordas tetas estatais, sonhando com o dia em que irão competir de igual para igual com Hollywood. Tudo isso eu posso entender, e até tolerar. O problema é quando resolvem "reescrever" a história, na tentativa de impingir-nos uma versão mitificada e falsificada de eventos ocorridos há nem tanto tempo assim. Quando isso ocorre, o que fazem não merece nem ser chamado de cinema. É melhor chamar de propaganda ideológica pura e simples.

Hércules 56, documentário dirigido por Sílvio Da-Rin, se encaixa exatamente nesse perfil. Assisti ao filme há alguns dias. O assunto é o destino dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Elbrick, seqüestrado por duas organizações da esquerda armada em setembro de 1969, na primeira ação do gênero bem-sucedida da História.

Basicamente, Hércules 56 - o nome do filme é uma referência ao avião militar em que os prisioneiros embarcaram para o México e o exílio - é uma série de depoimentos dos ex-militantes de esquerda (alguns, como Zé Dirceu, nem tão "ex" assim) sobreviventes, entremeada por imagens de arquivo e por uma conversa informal entre os participantes da ação, hoje senhores grisalhos, em volta de uma mesa de bar. Enquanto os que foram libertados em troca da vida do embaixador desfiam suas reminiscências diante da câmera, lembrando passo a passo os momentos de tensão que precederam o embarque no avião e a chegada ao México e a Cuba - aonde a maioria se dirigiu, alguns para receber treinamento em guerrilhas -, os que tomaram parte direta no seqüestro relembram, em conversa bastante animada, os detalhes da operação espetacular. Em certo momento, confessam, às gargalhadas, que, caso o governo dos generais não atendesse suas reivindicações - a soltura dos 15 prisioneiros e a divulgação de um manifesto na imprensa - estavam, sim, dispostos a executar o embaixador. À certa altura, chegam mesmo a esboçar uma autocrítica sobre os erros da operação, que não foram poucos, e discutem se ela própria foi ou não um erro. Quanto a isso, as opiniões são discordantes - o próprio Zé Dirceu, além de Vladimir Palmeira e Flávio Tavares, três dos libertados no seqüestro, admitem que a ação foi equivocada desde o início, tendo contribuído para intensificar a repressão.

Dos que estão reunidos na mesa de bar, o atual Ministro da Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, é o mais falante. Ele teve papel de destaque, como integrante da Dissidência Estudantil da Guanabara (que daria origem ao MR-8) no episódio do seqüestro, tendo sido um dos redatores do manifesto dos sequëstradores (que muitos até hoje acreditam erroneamente, por causa do filme de Bruno Barreto, O Que é Isso, Companheiro?, ter sido obra do Fernando Gabeira). O filme termina com uma frase dele. Ao discutir a questão de se o seqüestro foi ou não um erro, Franklin Martins afirma mais ou menos o seguinte (escrevo de memória): o seqüestro não pode ser considerado uma ação errada, assim como a própria luta armada, pois tanto esta como aquele contribuíram significativamente para a derrota da ditadura e o restabelecimento da democracia no Brasil. Como fica claro pelos extras do DVD, o diretor do filme, Sílvio Da-Rin, tem opinião semelhante.

Foi aqui que me convenci daquilo que coloquei nos dois primeiros parágrafos deste texto. A tese da luta armada "democrática", de resistência à ditadura, é uma das mais presentes na literatura e na produção cinematográfica sobre o período do regime militar no Brasil. E é também uma das falsificações mais grosseiras e escandalosas de que se tem notícia. Não se pode sequer alegar falta de informações sobre o assunto: há uma vasta bibliografia que trata do tema, dentre a qual a série de quatro livros de Elio Gaspari, por exemplo, que não deixa qualquer dúvida sobre os verdadeiros objetivos dos revolucionários brasileiros. Ao contrário do que reza a lenda, estes não queriam saber de democracia, eleições livres e outras "formalidades burguesas", mas, sim, substituir um regime autoritário por outro, totalitário e comunista, transformando o Brasil não numa Suécia ou numa Finlândia, mas num "Cubão". Um dos que participaram do seqüestro de Elbrick, o hoje professor universitário Daniel Aarão Reis, também está presente no filme, ao lado de Franklin Martins. Ao contrário deste, Aarão Reis é um crítico honesto da luta armada dos anos 60 e 70, já tendo afirmado, em diversas ocasiões, seu caráter totalitário e não-democrático, inspirado em ditaduras comunistas como a de Cuba. Estranhamente, ele fala muito pouco no documentário. Deve ter sentido que estava em minoria. Ou que não estava no script.

Durante as últimas três décadas, a versão fantasiosa dos guerrilheiros como heróicos combatentes da liberdade contra os cruéis torturadores militares foi repetida à exaustão nos livros didáticos. Agora, com filmes como Hércules 56 e Batismo de Sangue, essa versão adquire enfim um formato cinematográfico, com apoio oficial (um dos patrocinadores do filme é a onipresente PETROBRAS). Que os militares foram cruéis e torturadores, não resta dúvida. Agora, que os guerrilheiros-terroristas foram heróicos combatentes da liberdade, e que sua luta visava a restaurar a democracia no Brasil, como sugere o filme de Sílvio Da-Rin, são outros quinhentos.

Um dia, num futuro distante, os que pegaram em armas contra o regime militar no Brasil vão admitir, finalmente, que sua luta não era por democracia coisa nenhuma. Que estavam lutando para instaurar aqui um regime muito mais brutal e sanguinário do que o que queriam derrubar e que, caso fossem vitoriosos, teríamos não três centenas de mortos em vinte anos de arbítrio, mas milhares ou milhões de cadáveres. Um dia, também, quem sabe, algum cineasta brasileiro fará um filme honesto sobre os "anos de chumbo" no Brasil. Desconfio, porém, que isso só ocorrerá quando for descoberta a cura para o mau-caratismo e a idiotice, três anos depois de fundarmos nossa primeira colônia na terceira lua de Júpiter.
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P.S.: Na foto acima, os presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano sendo recebidos em Havana, embevecidos, pelo grande democrata e humanista, "El Comandante" Fidel Castro. A prova viva de que o objetivo dos guerrilheiros ("terroristas" é a palavra, mas o bom-tom não permite) era mesmo a democracia, os direitos humanos, a liberdade, eleições livres e pluralismo...

terça-feira, dezembro 04, 2007

OS VENEZUELANOS MANDARAM CHÁVEZ CALAR-SE

Em 1988, o então ditador do Chile, general Augusto Pinochet, convocou um plebiscito para decidir sobre sua permanência ou não no poder, que tomara à força num sangrento golpe de estado em 1973. Com isso, pretendia cobrir de legitimidade seu regime, uma das ditaduras militares mais brutais da história da América Latina, garantindo para si mais alguns anos de desmandos à frente do Estado. Para sua frustração, a grande maioria da população chilena, cansada de tanta arbitrariedade, votou em peso pelo "Não", manifestando seu descontentamento com o regime e seu anseio pelo retorno à democracia. Dois anos depois, a ditadura militar chilena chegava ao fim.

Em 2 de dezembro de 2007, situação semelhante ocorreu na Venezuela, com o plebiscito que decidiu, por uma pequena margem de diferença (51% a 49%), em favor do "Não" à pretensão do ditador de facto do país, coronel Hugo Chávez Frías, de ver aprovada a reforma constitucional que lhe permitiria manter-se indefinidamente na cadeira presidencial. No poder desde 1999, Chávez está à frente de um dos governos mais populistas da história da América Latina, caracterizado pelo personalismo caudilhesco e pela demagogia, sustentado pelos dólares do petróleo.

As duas situações são muito parecidas. Mudam apenas a época e os países, além dos personagens principais. No entanto, há claramente uma grande diferença, desta feita de percepção, entre os dois fatos. Em 1988, a esquerda chilena e latino-americana, brasileira inclusive, exultou como nunca com a derrota de Pinochet. Em 2007, a esquerda brasileira, com Lula e o PT à frente, recolheram-se a um acabrunhado e entristecido silêncio, sentindo o baque. Estão pianinho, como se diz.

Não faltará quem, dentre as hostes esquerdistas, procure racionalizar a derrota de Chávez, afirmando que tal fato é a prova de que o regime chavista é, afinal, democrático, e que todas as afirmações em contrário são, portanto, nada mais do que acusações levianas da ultra-direita e do Departamento de Estado. O mesmo poderia ser dito do regime de Pinochet, por ter permitido o plebiscito que decidiu pelo fim da ditadura. Por aí se vê o nível e a honestidade dos argumentos da tropa de choque pró-Chávez.

É o fim do Socialismo do Século XXI? Não creio. Aliás, essa é justamente, a meu ver, a principal diferença entre as situações do Chile em 1988 e da Venezuela de hoje. Ao contrário da ditadura de Pinochet, o regime chavista está longe de ter queimado seu último cartucho. Quando da realização do plebiscito, o regime dos generais chileno só sobrevivia por inércia, há muito arrastando-se para o fim e dando mostras claras de esgotamento. O autoritarismo militar estava em crise no continente, com os processos de redemocratização avançando a pleno vapor no Brasil, Argentina e Uruguai, dentre outros países. O fascismo bolivariano de Chávez, Morales, Correa et caterva, por sua vez, somente agora começa a dar os primeiros sinais de cansaço. Além disso, as reservas do combustível de que ele se nutre - o petróleo, por um lado, e a demagogia populista e antiamericana, de outro - são, pelo menos no último caso, inesgotáveis. Como demonstra o comportamento de seus cúmplices brasileiros e as tentativas bolivarianas na Bolívia e no Equador, sempre haverá quem esteja disposto a defender com unhas e dentes seu regime. Se têm alguma dúvida, leiam a Carta Capital, que nesta semana publicou uma capa em que, ao mesmo tempo em que reconhece a derrota de Chávez no plebiscit0, louva o caudilho bolivariano por dar comida e educação (!) aos pobres da Venezuela. Enquanto houver idiotas desse naipe, o Napoleão de circo venezuelano poderá ficar sossegado, pois as probabilidades de ele não seguir o caminho de Pinochet ou de Idi Amin continuarão sendo altas.

Pinochet é justamente execrado como um dos ditadores mais cruéis e sanguinários do século XX. Quando morreu, há um ano, milhares de esquerdistas fizeram festa nas ruas. Com todas as barbaridades cometidas por seu regime em 17 anos de autoritarismo, ele aceitou o resultado do plebiscito que rejeitou seu governo e devolveu o Chile à democracia. Receio que o mesmo não possa ser dito de Chávez, que, apesar da derrota do último domingo, ainda não abandonou seu projeto totalitário e militarista. E muito menos de seu mentor, Fidel Castro, que, alérgico a qualquer coisa que lembre remotamente democracia, continua a dar as cartas na ilha-prisão do Caribe. Quando esses dois saírem de cena, será que nossos esquerdistas também farão festa?

A rejeição dos venezuelanos ao projeto de reforma constitucional continuísta de Chávez não deve ser vista como o fim do chavismo. Basta lembrar as palavras do próprio fanfarrão bolivariano, logo após reconhecer a derrota no plebiscito: "por enquanto..." (não por acaso, as mesmas palavras por ele pronunciadas quando do fracasso de sua primeita tentativa - sangrenta - de tomada do poder, numa quartelada mal-sucedida em 1992). Também não se pode deixar de lado o fato (coincidência?) de o plebiscito ter-se realizado em coordenação com tentativas semelhantes de reforma constitucional na Bolívia e no Equador, sem falar na campanha subterrânea pelo terceiro mandato do Grande Molusco no Brasil. Assim como o Rei da Espanha, os venezuelanos mandaram Chávez calar a boca. Mas é improvável que esse Mussolini tropical mantenha a matraca fechada por muito tempo. Que ninguém se iluda com vitórias momentâneas. A fascistização da América Latina está só no começo.

sexta-feira, novembro 30, 2007

ISLÃ: RELIGIÃO DE PAZ OU DA BARBÁRIE?


No Sudão, uma professora inglesa é condenada a vários dias de prisão por blasfêmia, por ter permitido a seus alunos batizarem com o nome de Maomé um ursinho de pelúcia. O Sudão é um país muçulmano, onde vigora a sharia, a lei islâmica.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

No começo de 2006, uma onda de ódio varreu o mundo muçulmano. Embaixadas ocidentais foram incendiadas. Diplomatas foram atacados e apedrejados. Multidões furiosas gritaram morte ao Ocidente! Motivo: algumas caricaturas do profeta Maomé, consideradas ofensivas, publicadas num jornal dinamarquês.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Um escritor indiano de origem muçulmana escreve um livro em que ousa humanizar a figura de Maomé, atribuindo-lhe características não-divinas. Os líderes religiosos do Irã decretam então uma fatwa em que o condenam à morte, e prometem o Paraíso como recompensa a qualquer muçulmano que o despachar para o além. Há vinte anos, o escritor vive escondido, por razões de segurança.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Na Nigéria, uma mulher é condenada a morrer apedrejada por ter feito sexo fora do casamento, mesmo separada do primeiro marido, que não havia ainda lhe concedido o divórcio (pela lei corânica, se o marido não concede o divórcio, o casal ainda não está separado).

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

No Afeganistão, membros do Talibã - que governa o país de 1996 a 2001 - impõem uma interpretação literal da lei islâmica, e implodem, por "idólatras", estátuas de Buda de milhares de anos e valor histórico inestimável.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Em setembro de 2001, dezenove jovens muçulmanos seqüestram e atiram aviões civis contra as torres do WTC e o prédio do Pentágono nos EUA. Esperavam, com isso, alcançar o Paraíso, onde lhes havia sido dito que 72 virgens de olhos negros serviriam a cada um deles por toda a eternidade. Mais de 3 mil pessoas morrem.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Em março de 2004, explosões no metrô de Madri matam 190 pessoas. Os autores são militantes islâmicos.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Em dezembro de 2004, o cineasta holandês Theo Van Gogh é assassinado por um imigrante marroquino. Depois de atingi-lo com vários tiros à queima-roupa, o assassino o degola com uma faca de cozinha, e crava-lhe a faca no peito com uma carta em que o condenava por blasfêmia. Van Gogh havia dirigido um filme em que critica o tratamento dispensado às mulheres nos países muçulmanos. Antes de morrer, sua última frase foi "Será que não podemos conversar?".

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Também na Holanda, uma imigrante da Somália rompe com a religião de sua família e escreve um livro denunciando os abusos que sofrera em seu país de origem, como a mutilação genital (prática anterior ao Islã, mas tolerada e até incentivada por ele). Hoje, vive escondida, sob permanente ameaça de morte.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância.

Em julho de 2005, mais de 50 pessoas são mortas em atentados à bomba em Londres, praticados por membros da comunidade muçulmana local.

Mas o Islã é uma religião de paz e tolerância...

Nenhum dos episódios narrados acima é um fato isolado. Casos semelhantes ocorrem todos os dias, aos milhares, em todos os países e comunidades em que o islamismo é a religião oficial ou predominante. A lista é interminável, e seria extremamente tedioso narrá-los todos aqui. Do mesmo modo, a cada fato do tipo, a cada atentado terrorista no Iraque ou na Palestina, a resposta das autoridades ocidentais, não-muçulmanas e seculares, é sempre a mesma, não varia nunca: o Islã é uma religião de paz e tolerância, os que cometem essas atrocidades não são verdadeiros muçulmanos, são apenas um bando de fanáticos, cuja interpretação do Islã é completamente deturpada etc. Para tanto, citam algum líder muçulmano "moderado", e pinçam esta ou aquela passagem do Corão, em que se defende a paz e tolerância com outros credos.

Até quando vai durar essa cegueira voluntária? Quantos ataques e quantas mortes mais serão necessários para que todos percebam o que é óbvio, e que, justamente por isso, quase ninguém ousa admitir? Até quando o "politicamente correto" vai nos impedir de ver o que está diante de nossos olhos, e que os inimigos da civilização e da humanidade fazem questão de reafirmar todos os dias: ou seja, que o Islã não é uma religião de paz e tolerância coisa nenhuma. Assim como todas as religiões, é bom que se diga.

Para cada verso do Corão que fala de paz, há pelo menos uns dez que insuflam os fiéis a matar e exterminar sem piedade seus inimigos. Sendo que, por "inimigos", o Islã entende todos aqueles que não cumprem a Lei do Profeta nem oram cinco vezes ao dia voltados para Meca. Ou seja: todos os que não são muçulmanos. A esses, o Corão reserva um lugar particularmente quente no inferno, assim como aos crentes muçulmanos que não levem sua religião suficientemente a sério, deixando de cumprir os cinco deveres sagrados da fé islâmica - entre os quais a guerra santa, a jihad, que, ao contrário do que querem fazer-nos crer os políticos "moderados" e os adeptos do multiculturalismo - até mesmo Bush, como se viu nos dias imediatamente seguintes ao 11 de setembro de 2001 -, não se restringe a uma luta interior, no coração (ou mente) de cada indivíduo, mas constitui, isto sim, uma guerra de morte, literalmente falando, contra os kufrs, os infiéis, os não-muçulmanos.

Até o momento, qualquer afirmação nesse sentido continua a ser rotulada como "eurocêntrica" ou "preconceituosa", do mesmo modo que chamar o banditismo nas favelas brasileiras pelo nome ainda é considerado, pela esquerda festiva, "reacionarismo" e mesmo "fascismo". Contaminados, durante décadas, de relativismo cultural, os ocidentais fecharam voluntariamente os olhos para a realidade, encarando o fascismo islâmico e os atentados terroristas da Al-Qaeda e do Hamas não como o que de fato são - atos de barbárie cometidos contra a civilização, crimes contra a humanidade -, mas ora como "desvios" da "verdadeira" fé islâmica, supostamente tolerante e pacífica, ora como manifestações de protesto contra agravos passados do "imperialismo" ocidental no Oriente Médio. Leiam os livros de Edward Said ou de Tariq Ali e vocês terão uma mostra disso.

O que se tem observado é não uma tentativa de garantir a paz e a coexistência com o Islã, mas de justificar e até mesmo enobrecer os desatinos cometidos em seu nome. Ao contrário dos muçulmanos, que nas últimas décadas se acostumaram a ostentar sua fé de forma explícita e desafiante, com as mulheres chegando mesmo a requerer o "direito" de portar véus em escolas laicas na França, os cidadãos do Ocidente - e nisso incluo também essa margem sul chamada Brasil - parece que se recolheram a um temor reverencial diante da onda crescente islãmica. No caso das caricaturas de Maomé e de algumas declarações do papa, também consideradas ofensivas ao Islã, os governos ocidentais e a própria Igreja católica chegaram mesmo a pedir desculpas aos muçulmanos. Ninguém lembrou de pedir que os muçulmanos se desculpassem por terem ateado fogo a embaixadas e ameaçado cidadãos ocidentais. É que, nessa visão, intolerantes somos nós, nunca eles. Quiseram até que o papa se desculpasse por ter reafirmado, em suas encíclicas, que a fé cristã é o único caminho para a salvação. Queriam o quê? Que o Supremo Pontífice tirasse a batina e orasse cinco vezes em direção a Meca, entoando cânticos a Alá?

A fim de desviar a atenção das barbaridades cometidas em nome do Islã, muitos historiadores, bem ou mal intencionados, vez ou outra falam da "convivência pacífica" entre muçulmanos, judeus e cristãos na Península Ibérica, durante o período da ocupação muçulmana (séculos VIII-XV). Lembram, a propósito, de filósofos muçulmanos importantes da Idade Média, como Avicena e Averróis, que, ao traduzirem antigos textos gregos, ajudaram a preservar a filosofia clássica de Platão e Aristóteles, legando-nos uma rica herança cultural que, de outro modo, estaria perdida para sempre. Trata-se de um mito, decorrente de uma visão anacrônica da História. Não há nada que ateste a suposta "tolerância" dos muçulmanos em relação aos cristãos e judeus ibéricos - pelo contrário, estes eram em geral segregados e obrigados a pagar um imposto se quisessem cultuar sua fé. Do contrário, seriam convertidos à força, do mesmo modo que ocorreria depois com os judeus em Portugal, e muitos foram escravizados. Quanto à preservação dos textos filosóficos gregos, durante séculos os monges católicos se especializaram em copiar textos da Antigüidade clássica greco-romana, e nem por isso a religião católica deixou de conclamar as Cruzadas e de implantar a Inquisição. Aliás, coube a um dos santos da Igreja, o filósofo S. Tomás de Aquino, a tarefa de fazer uma síntese de todo o pensamento filosófico aristotélico com a fé cristã, resultando na filosofia escolástica medieval, até hoje a base do pensamento católico ensinado nos seminários. A idéia da "convivência pacífica e harmoniosa" entre muçulmanos, cristãos e judeus durante essa "era de ouro" idílica na Península Ibérica não passa da transposição de uma aspiração atual para um passado idealizado.

As demonstrações de histeria e irracionalidade em nome de Deus não são, claro, exclusividade do Islã e seus seguidores. Esta é uma característica de todas as religiões, sem exceção. Não conheço nada mais falso do que a idéia de convivência pacífica e respeitosa entre as religiões. É algo quase tão falso e hipócrita quanto a "convivência pacífica" entre EUA e URSS, nos tempos da Guerra Fria. Assim como ocorria na disputa entre capitalismo e comunismo, as religiões sempre estiveram em guerra umas com as outras, às vezes abertamente, às vezes de forma dissimulada. E, assim como a Guerra Fria, essa disputa não chegará ao fim com nenhum tratado de paz, mas apenas com a vitória total de um lado sobre o outro - ou com a destruição de todos.

O simples fato de alguém se declarar muçulmano, ou católico, ou judeu, já significa, por si só, uma postura excludente e preconceituosa. Por mais que professe uma religiosidade light ou moderada, e proclame aos quatro ventos o respeito e a necessidade de diálogo com outros credos, o indivíduo professará uma fé que considera erradas as demais, pois do contrário não teria adotado uma delas. Nos últimos tempos, autores polêmicos, como Christopher Hitchens e Sam Harris, tem-se dedicado a tocar nessa ferida, um verdadeiro tabu. Como afirmam Hitchens e Harris, não há religião de paz e tolerância. Mesmo o budismo, com sua aparente bondade aos olhos ocidentais, tem seus esqueletos no armário. No Sri Lanka, por exemplo, budistas e hindus se massacram há décadas. Na Tailândia, ocorre o mesmo entre budistas e muçulmanos. Onde quer que haja alguém proclamando a verdade de sua fé, onde quer que haja alguém fazendo oferenda a seus deuses, estará sempre presente a semente da intolerância.

Por que, então, não se vêem atualmente católicos ou protestantes cometendo os mesmos atos de barbárie e assassinatos em massa em nome de sua fé? (Em termos: na Irlanda do Norte, por exemplo, os conflitos e massacres entre católicos e protestantes mancharam a região nos últimos quarenta anos). A resposta não deve ser buscada na religião, em cada credo particular, mas no secularismo, algo que, até o momento, continua a ser - infelizmente - uma característica ocidental. Nós nos esquecemos, mas todo o progresso alcançado até hoje no campo da democracia e dos direitos humanos - e na ciência também, vide Galileu - não ocorreu por causa da religião, mas apesar dela e contra ela. Este foi um processo longo e doloroso, que custou milhões de vidas em incontáveis conflitos, como a Guerra dos Trinta Anos na atual Alemanha (1618-1648) e as guerras religiosas na França (1562-1589). Basta lembrar que a Igreja Católica, até o final do século XIX, era um Estado poderoso, dono de vastíssimas possessões de terra e de um bem-armado exército. Se católicos e protestantes não se engalfinham hoje em lutas sangrentas nas ruas, reproduzindo a Noite de S. Bartolomeu (vide a imagem que ilustra este texto), não é porque eles foram tocados pela pomba da paz e pelo espírito de tolerância e fraternidade entre os homens, mas somente porque o Estado, há uns duzentos anos, deixou de ser o instrumento de opressão de uma fé sobre outra. Do mesmo modo, se posso hoje escrever este texto sem medo de ser atirado numa masmorra, torturado e obrigado a abjurar sob pena de ser queimado vivo na fogueira, é porque vivemos numa sociedade laica e secular, com separação entre a religião e o Estado (claro, isso não impede que algum fanático resolva me assassinar, mas é para impedir que isso ocorra que existem as leis). No mundo democrático (ou seja, quase totalmente, ocidental), a religião deixou há muito de ser uma questão de Estado para se tornar um assunto de foro íntimo, de consciência individual. Não é o que ocorre atualmente em países como o Irã ou a Arábia Saudita, que não conheceram nem a Reforma, nem o Iluminismo.

Qualquer interpretação literal de um texto religioso só pode resultar em fanatismo e morte. Não somente o Corão, mas a Bíblia - tanto o Antigo quanto o Novo testamento - estão recheados de passagens em que um homossexual ou uma mulher adúltera, por exemplo, devem ser apedrejados até a morte. Todos conhecem a passagem bíblica em que Abrãao é instado por Deus a sacrificar seu único filho, Isaac, sendo demovido de cometer esse assassinato pela mão de um anjo, quando estava prestes a cortar-lhe a garganta. É em nome desse mesmo deus que Bin Laden e os militantes da Al-Qaeda sacrificam a outros e a si mesmos hoje em dia.

Os crimes cometidos por causa da, ou motivados de alguma maneira, pela religião, estão entre os mais numerosos que se praticaram e praticam hoje. E, no entanto, não há crime com álibi maior e mais tolerado. Sobretudo se for praticado em nome do Islã. Por causa de nossa sociedade secular, paradoxalmente tendemos a rejeitar muito mais firmemente a intolerância dos evangélicos contra homossexuais ou a intolerância católica contra o aborto ou o uso de preservativos - sem falar no escarcéu de bispos e padres por causa de filmes "blasfemos" como Je Vous Salue Marie e A Última Tentação de Cristo (até hoje proibido no Chile, um país democrático) - do que a intolerância muito mais letal e mortífera dos mulás e aiatolás muçulmanos. Em outras palavras: condenamos com bastante vigor o cisco no nosso olho, mas não vemos a trave no olho do vizinho. Uma das melhores frases já ditas até hoje sobre intolerância religiosa é a de Pascal: "Nunca se cometeram tantos crimes quanto os cometidos em nome da Cruz". Eu acrescentaria: e do Crescente, e da Estrela de Davi...

Em São Paulo, há alguns meses, um homem matou toda a família a marteladas, antes de ser abatido pela polícia. Evangélico, o pastor da igreja que freqüentava lhe recomendara deixar de tomar os remédios controlados de que fazia uso regularmente contra a esquizofrenia. Sua fé bastaria para que alcançasse a cura, foi-lhe dito. Sem tomar o remédio há dias, o homem entrou em surto psicótico. A religião é mesmo um caminho de verdade e luz.

terça-feira, novembro 27, 2007

DOIS TABUS


Ontem à noite saí para beber e conversar com alguns amigos. A conversa estava animada, a caipirinha estava boa, a cerveja estava gelada. Lá pelas tantas, após as costumeiras piadas e fofocas sobre os colegas de trabalho, o papo descambou para uma acalorada discussão sobre o filme Tropa de Elite, sobre o qual já escrevi aqui.

Ao elogiar o filme, que pela primeira vez mostra algo parecido com a realidade do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, mostrando bandido como bandido, e não como uma espécie de herói romântico ou rebelde social, fui surpreendido pela afirmação de um dos presentes, segundo a qual eu teria comprado a tese do filme, com ele (na verdade, ela) exclamando, com veemência, que "o BOPE é a polícia mais corrupta que existe!". Em seguida, algumas doses a mais, a conversa já era sobre pena de morte e legalização das drogas. O resto vocês podem imaginar.

Como sempre, fiquei sozinho em minhas opiniões. Um dos presentes à mesa apenas balançava a cabeça, e me lembro de tê-lo ouvido dizer algo como "não concordo com uma palavra que esse cara está dizendo, portanto não vou nem entrar na discussão". Outra pessoa também não escondia a indignação com minhas palavras, lamentando que alguém tão jovem como eu pudesse ter idéias tão "de direita"... No auge do debate, quando esperava desenvolver um pouco mais meu ponto de vista, eliminando os malentendidos e incompreensões que inevitavelmente surgem nessas horas, alguém perguntou sobre o último jogo do Flamengo e aí voltamos às piadas de praxe.

É claro que a mesa de bar não é exatamente o lugar mais adequado para discutir essas questões, e peço desculpas se estraguei a noite de alguém. Só posso dizer que acho estimulante esse tipo de debate. É algo muito mais interessante, certamente, do que as discussões sobre o Flamengo. Mesmo que, no final, eu sempre saia frustrado, porque geralmente não me faço entender direito (até por culpa da caipirinha) e acabe até ganhando um desafeto a mais por causa disso. Mas, paciência. Afinal, fazer o quê? Sou do tipo que perde o amigo, mas não a oportunidade de debater. Daí porque não pude deixar de ficar pensando sobre a discussão quando voltei para casa.

Sobre o filme de José Padilha, não vou falar muito aqui. O que eu tinha para dizer, já coloquei em meu texto postado neste blog em 24/10 passado. Vou dizer apenas que não se deve esperar de um filme nenhuma "tese", mas entretenimento e um pouco de reflexão, coisa que Tropa de Elite faz muito bem, por sinal. Também não vou falar sobre o BOPE, se é corrupto ou não. Pode ser até que seja, e até mais do que a polícia convencional. Mas o ponto não é esse. A questão da pena de morte e a da legalização das drogas, que vez ou outra é retomada como uma espécie de panacéia para a questão do narcotráfico, é que exigem uma abordagem mais serena e equilibrada.

Falar sobre pena de morte e narcotráfico sem apelar para velhos chavões esquerdistas é algo difícil de fazer no Brasil. Na verdade, trata-se de duas não-questões, dois verdadeiros tabus. Em ambos os assuntos, ainda se sente o peso sufocante das duas décadas de ditadura militar, com qualquer argumento a favor da pena capital ou de uma maior ação repressiva contra os narcotraficantes sendo automaticamente rotulado como "autoritário" e até mesmo "fascista". O resultado é que o debate sobre esses dois temas ficou totalmente truncado, sendo hoje algo praticamente inexistente, com a troca de argumentos sendo substituída em geral por acusações de reacionarismo e por muita histeria e irracionalidade. Como se quem quer que ouse levantar o debate fosse um Amaral Netto ou um nostálgico da época em que os milicos prendiam e arrebentavam.

Comecemos pela pena de morte. Antes que alguém me chame, pela enésima vez, de "direitista" e "reacionário", quero deixar claro que minha opinião sobre o assunto está baseada na idéia de responsabilidade do indivíduo. Quero dizer o seguinte: se o sujeito tortura e mata friamente uma família inteira, ou arrasta intencionalmente o corpo de um garotinho por vários quilômetros, está cruzando uma linha, está rompendo completamente qualquer possibilidade de convivência com a humanidade. Mais que um assassinato brutal, ele está expressando seu total desprezo pela vida humana e pela sociedade. Não importa se ele teve uma infância difícil, se seus pais o batiam, se ele veio da miséria etc. (muita gente tem uma infância difícil, é espancada pelos pais e vem da miséria, e nem por isso se transforma num serial-killer). Como indivíduo adulto e consciente, em pleno domínio de suas faculdades mentais e dono de sua razão (daí porque excluo desse raciocínio os mentalmente insanos e incapazes), ele deve saber perfeitamente que seus atos têm conseqüências, e que ele é responsável perante a sociedade. No momento em que entra na vida social, o indivíduo se compromete a respeitar suas regras e a vida alheia, a maior regra de todas. Se ele descumpre essa regra de forma bárbara, se está clara sua incapacidade de conter seus instintos homicidas, ele está se excluindo do convívio com seus semelhantes. Por que a sociedade então deveria manter algum compromisso com ele? Por que deveria sustentá-lo durante anos - ou a vida toda - na cadeia?

A ojeriza dos brasileiros pela pena de morte - pela simples discussão do assunto, na verdade - demonstra um claro vício de formação cultural de nossa parte. Queremos que a sociedade garanta e proteja nossos direitos, mas não queremos cumprir nossos deveres para com a sociedade. É somente essa visão paternalista que explica, a meu ver, o fato de crianças de 16 anos poderem votar, mas não ir para a cadeia (outra explicação, claro, é a demagogia eleitoreira que enxertou esse absurdo na Constituição de 1988). A cidadania, para nós, é uma via de mão única, onde existiriam apenas direitos, e não deveres. Daí o surgimento de uma geração de adolescentes mimados e maleducados, moralmente deformados, que têm tudo do bom e do melhor, mas, sem conhecerem limites, divertem-se despejando extintores em travestis e espancando prostitutas, pois sabem que sempre haverá quem passe a mão em suas cabecinhas-de-vento.

A própria idéia de responsabilidade individual, um dos pilares da civilização contemporânea, é algo estranho à nossa índole. É sobretudo isso, mais do que a morte em si, que nos causa horror na execução de um prisioneiro numa cadeia norte-americana. Não nos horrorizamos com a morte em si, até porque no Brasil se mata muito mais do que em qualquer lugar nos EUA, e todos os dias somos bombardeados com notícias sanguinolentas de chacinas e matanças nas periferias das grandes cidades. O que nos provoca arrepios, na verdade, é a idéia de alguém ser executado por algo que fez, é a própria noção de responsabilidade do indivíduo. Por nossa própria formação cultural e religiosa, marcada pelo catolicismo ibérico, sempre deixamos aberta uma brecha para o arrependimento, a redenção ("ressociabilização") do criminoso, esquecendo-nos, freqüentemente, que o indivíduo é responsável por seus atos e que há, sim, criminosos irrecuperáveis.

A vida é um direito, o primeiro direito de todos. Ninguém duvida disso. Tirar a vida de alguém com intencionalidade, de forma cruel e desumana, significa rasgar o contrato que regulariza esse direito. E quem rasga um contrato deve estar ciente que sofrerá uma penalidade por causa disso. No caso, trata-se de assegurar que a pena será compatível e proporcional ao delito cometido. É justo deixar 20 ou 30 anos preso alguém que devastou uma família inteira, com requintes de crueldade e sadismo? Não seria mais justo e proporcional privá-lo daquilo que ele retirou de sua(s) vítima(s)?

Não se trata, evidentemente, de defender o retorno a algum tipo de justiça primitiva e tribal, a uma lei do talião, do "olho por olho, dente por dente". Nada disso. Não se trata, por exemplo, de torturar um prisioneiro, caso ele tenha feito o mesmo com suas vítimas. Não se trata de arrastá-lo por quilômetros, ou decepar suas mãos, ou castrá-lo, ou furar seus olhos, ou quebrar seus ossos. Nem de queimá-lo vivo, esfolá-lo ou esquartejá-lo. Isso seria bárbaro e desumano. Trata-se de aplicar uma pena que compense o dano causado a outros e à sociedade. Se as leis e o Estado existem para preservar a vida, e não para tirá-la - outro argumento usado pelos que se opõem à pena de morte, esquecendo-se que esse é um compromisso assumido por todos -, então não há razão para que quem não cumpre essa regra básica espere alguma condescendência das leis e do Estado. Pode esperar, isto sim, que o Estado respeite e preserve sua integridade física, mesmo com ele não tendo tido essa preocupação com suas vítimas. É assim nos EUA, onde em alguns Estados se aplica a pena capital. Lá, não há lugar para contemporizações: aqui se faz, aqui se paga. Cruel? Talvez. Mas certamente muito mais honesto.

Outro argumento geralmente utilizado pelos adversários da pena de morte é que esta só penalizaria os mais pobres, servindo como um instrumento de "dominação social" dos ricos e poderosos. É curioso como as esquerdas se atribuíram o papel de legítimos porta-vozes das aspirações populares, quando estão totalmente fora de sintonia com elas. Se há um setor em que a idéia da pena capital é forte, é entre os mais pobres da sociedade, que mais sofrem com a violência e a criminalidade. Vá a qualquer comunidade pobre, favela ou periferia de qualquer cidade brasileira e pergunte a seus moradores o que eles fariam com alguém pego em flagrante roubando ou estuprando. Como demonstram os linchamentos de pequenos delinqüentes por multidões furiosas, não é preciso pensar muito para saber a resposta. Em termos de punição a criminosos, os pobres são até mais "direitistas" e "reacionários" do que os que defendem, com argumentos, a pena de morte, pois, em vez dessa - que pelo menos preserva a integridade física do prisioneiro, até a hora da execução -, defendem o linchamento puro e simples, no local, mesmo sem provas. Ao contrário do que diz a lenda esquerdista, pobre não gosta de bandido. Quem gosta são os intelectuais de esquerda.

Por falar em esquerda, é importante desmascarar o discurso de algumas ONGs e partidos esquerdistas sobre direitos humanos. Com poucas exceções, tal discurso serve apenas para justificar a criminalidade ("fruto da sociedade") e eliminar o conceito de responsabilidade individual. Sem falar que, se partidos como o PT e outros que sempre levantaram essa bandeira estivessem realmente interessados em direitos humanos, não sairiam em defesa de regimes ditatoriais como o de Cuba - onde a pena de morte por fuzilamento existe há tempos, principalmente para adversários políticos do regime. Acabo de saber que um deputado do PT quer apresentar uma moção de censura contra Tropa de Elite, pois, segundo ele, o filme "estimula a tortura e as violações dos direitos humanos". Casa de ferreiro, espeto de pau.

Finalmente, sobra o argumento religioso - "só Deus pode tirar a vida". Sinceramente, sempre achei esse argumento fraco, fraquíssimo. E não somente porque sou ateu e não considero a religião - nenhuma religião - como uma fonte ideal de virtude (basta lembrar as guerras religiosas do passado e do presente entre cristãos e muçulmanos, os atentados terroristas dos fundamentalistas islamitas e por aí vai). Mas principalmente porque tal noção de exclusividade divina serve apenas para encobrir com um véu de espiritualidade sentimental uma questão bem terrena, bem prática. Sem falar que executar os criminosos de guerra nazistas, nessa concepção, seria não um ato de justiça, mas um pecado.

Noves fora todos esses argumentos, resta um, que a meu ver é a principal razão para não querer ver implantada a pena de morte no Brasil: a possibilidade de erro judicial. Este é, certamente, o maior argumento contra essa medida drástica, e se há um bom motivo para não ser a favor da pena capital, é esse. Afinal, ninguém em sã consciência gostaria de arriscar executar um inocente por causa de falhas no processo. E se isso já aconteceu até nos EUA, imagine no Brasil, com nosso Judiciário deficiente. Mesmo aqui, porém, eu me permito uma transgressão. Com o avanço das técnicas e métodos científicos que permitem descobrir a autoria de crimes, quem garante que em breve a possibilidade de erro judicial não seja próxima a zero? Basta lembrar que cinqüenta anos atrás, exame de DNA, por exemplo, era coisa de ficção científica.

***

Quanto à questão das drogas, também não vejo como ser "politicamente correto". A idéia da legalização, que é vendida por tanta gente descolada como uma espécie de solução mágica para o problema do tráfico e do próprio consumo, pois retiraria a sedução do proibido, é, para mim, uma falácia. Na verdade, é uma forma de desviar a atenção do cerne da questão. Não é o que é proibido que importa, se faz ou não mal à saúde, ou se é ou não uma questão de "liberdade individual", com a qual ninguém, muito menos o Estado, teria nada a ver. A questão é outra. O que realmente importa é o fato de que consumir e traficar drogas, no Brasil, é contra a lei. E ponto. Pouco me importa se o que é proibido é o consumo de maconha ou de fubá. É o respeito à lei, e não o fato de o sujeito encher os pulmões com fumaça de canabis ou de pó, o que está em jogo. E a lei é para todos, gostem ou não. Em outras palavras, a idéia da legalização (descriminalização) do porte e consumo de drogas, assim como de seu comércio, apenas atesta a existência de uma cultura da contravenção entre nós, algo também herdado de certa visão de esquerda, dos anos 60.

Vou dar um exemplo: a lei que obriga o uso do cinto de segurança nos automóveis, que existe desde algum tempo. No começo, achei essa lei um absurdo, pois, pelo menos no caso do carona e do motorista, é uma clara intromissão na vida privada do indivíduo. Não há dúvida de que usar o cinto de segurança é algo extremamente importante e recomendável, mas de modo algum, eu acreditava e continuo a acreditar, deveria ser algo obrigatório. O raciocínio por trás dessa medida é o mesmo de querer obrigar todo mundo a escovar os dentes ou tomar banho todos os dias, por exemplo. Malgrado as boas intenções que possam estar por trás de sua elaboração, essa lei é, portanto, bastante questionável. Até hoje penso assim, mas nem por isso deixo de usar o cinto. E não somente por medo de levar uma multa, mas sobretudo porque é lei. E lei se cumpre. Mesmo que seja uma lei discutível.

Assim como já fui adversário visceral da pena de morte, já fui a favor da legalização (descriminalização) das drogas, inclusive das drogas mais pesadas, como cocaína e heroína. Não sou hipócrita: assim como Bill Clinton, também fumei em meus tempos de faculdade e, ao contrário dele, traguei, sim. Literalmente intoxicado de literatura esquerdista, eu acreditava, então, que a lei era autoritária e que drogar-se era, enfim, um ato de rebeldia, uma questão individual, quase como escolher esse ou aquele tipo de comida. Afinal, se o sujeito resolve cheirar ou se picar, o que eu tenho a ver com isso?, raciocinava. Cada um na sua, e ponto final. Também pensava que bastaria legalizar o comércio de entorpecentes para que o problema do narcotráfico acabasse, e assim viraríamos uma Holanda ou uma Suiça.

Hoje penso bem diferente. Descobri que as coisas não são tão simples como eu imaginava na minha época de bicho-grilo. Aquilo que eu via como demonstração de rebeldia e de liberdade, percebi logo, era apenas desprezo pela lei e arrogância. Do mesmo tipo do "sabe com quem você está falando?" e outras típicas manifestações de nossa cultura senhorial e escravocrata, de nossa incapacidade atávica de separar os interesses público e privado. O simples imperativo categórico kantiano - se vale para um, precisa valer para todos, sem exceção - é algo estranho à nossa formação social. Daí a nossa cultura do "jeitinho", da malandragem. A lei pode servir para os outros, para os pobres, os que não têm grana para comprar cocaína "da boa" ou uns pontos de LSD para curtir uma rave, jamais para nós, juventude dourada e descolada, herdeira da geração "paz e amor" dos anos 60... Não há nada de "moderno" no comportamento de um usuário de maconha ou de ecstasy. Pelo contrário: há apenas a reverberação de antigos vícios e taras nacionais. Além de muita vaidade, muito narcisismo e imaturidade.

Pode ser que um dia as drogas sejam todas legalizadas, e qualquer pessoa possa comprar uma trouxinha de maconha ou uma dose de cocaína no coffee-shop da esquina, tal como já ocorre, por exemplo, na Holanda. Pode ser que, nesse dia, fumar um baseado ou cheirar uma carreira de puro pó colombiano seja encarado como algo normal e socialmente aceitável, como é hoje tomar uma dose de uísque ou um gole de cerveja com os amigos. Até mesmo se picar na veia poderá um dia, quem sabe, ser visto apenas como um gosto pessoal, uma preferência sem maiores conseqüências para o usuário e a sociedade. Pode ser que esse dia chegue, e, com os avanços da ciência e da medicina, não duvido disso. Mas enquanto vivermos numa sociedade democrática, em que a lei proíba expressamente esses comportamentos, e enquanto o narcotráfico se aproveitar desses vícios para faturar e comprar armas, enrolar um baseado, por mais inocente que pareça esse gesto, estará longe de ser uma atitude individual. É e será um gesto de cumplicidade com a bandidagem. Conservador? Careta? Talvez. Mas é uma realidade que não dá para fingir que não existe.

No final do filme Os Intocáveis, de Briam De Palma, o personagem de Kevin Costner, que interpreta o inspetor do FBI e principal inimigo de Al Capone, Eliot Ness, é perguntado por um repórter o que faria quando a Lei Seca fosse revogada nos EUA."Vou tomar um drinque", é a resposta de Ness, e a última fala do filme. Talvez eu dê um tapinha ou uma fungada quando as drogas forem legalizadas. Mas, até lá, prefiro respeitar a lei e não compactuar com a bandidagem.

segunda-feira, novembro 26, 2007

PT-PSDB: O DUOPÓLIO ESQUERDISTA


"Nada mais conservador do que um liberal no poder, e vice-versa". A frase é famosa, e diz respeito à alternância no governo entre os dois principais partidos políticos do Brasil-Império. Durante mais de quarenta anos, "luzias" e "saquaremas" se revezaram no poder, sem que isso significasse qualquer mudança substancial de programa político do governo. Do mesmo modo que o fariam, depois, paulistas e mineiros na República Velha - e também fazem, desde 1994, tucanos e petistas.

Há alguns dias, o PSDB realizou sua convenção nacional, em que, aparentemente saindo do muro - sua marca registrada -, próceres do partido como Fernando Henrique Cardoso elevaram o tom e fizeram duros discursos contra o governo Lula. FHC, aliás, chegou mesmo a criticar - indiretamente, como convém a um legítimo tucano - a proverbial ignorância de nosso Guia Genial, questionando como alguém pode falar em melhorar a educação no País se sempre desprezou a sua própria (não é preciso dizer que ele não citou nenhum nome, como se isso fosse necessário). José Serra, Tasso Jereissati e o novo presidente da agremiação, Sérgio Guerra, também criticaram as articulações subterrâneas para garantir o terceiro mandato para Lula. Ao que parece, os tucanos estão saindo da defensiva. Aparentemente, estão se assumindo como oposição. Aparentemente. Pois, como o leitor atento facilmente perceberá, a realidade é bem diferente do que pode imaginar a dicotomia tucanos-petistas.

Não há nada mais falso, nada mais fingido, do que a suposta disputa entre PT e PSDB. Mais até do que entre conservadores e liberais no Império. As críticas do tucanato a Lula e seu governo, em especial ao terceiro mandato, são pura pirotecnia, fanfarronadas para inglês ver. Por debaixo dos panos, o que se está preparando é uma enorme farsa, uma maquinação política entre tucanos e petistas para garantir mais um ano a Lula, em troca de melhores chances do PSDB emplacar um candidato à sua sucessão. A jogada consiste em garantir que Lula fique no poder, pelo menos, até 2011, de modo a que os tucanos, afastada a re-reeleição, tenham o caminho aberto para voltarem ao Palácio do Planalto, talvez com Aécio Neves ou José Serra. A história toda, que é complexa e envolve muitos interesses políticos, está descrita na Veja desta semana. Eu sugiro dar uma espiadinha.

As manobras dos tucanos para beneficiar Lula não são nenhuma novidade. Em 2005, quando o escândalo do mensalão estava no auge e já se começava a falar em impeachment de Lula, os tucanos, juntamente com o DEM, acreditando que ele estava morto e acabado, trataram de salvá-lo, sepultando a idéia. No ano seguinte, quando da campanha presidencial, entre um candidato com chances de vitória (José Serra) e um ilustre desconhecido (Geraldo Alckmin), escolheram o segundo para concorrer com Lula, garantindo-lhe, assim, a reeleição. Durante a campanha, em vez de defenderem, como deveriam ter feito, a herança das privatizações, promovendo um amplo debate nacional sobre o tema, recolheram-se, envergonhados, recusando-se a defendê-las. O PSDB fez de tudo para perder as eleições em 2006. Lula pode dormir tranqüilo, pois sabe que, na hora do sufoco, sempre haverá um tucano pronto a salvar sua pele. Não sei como o PSDB não recebeu, em troca de seus serviços ao petismo, pelo menos um ministério no governo Lula.

Agora, as afinidades entre os dois partidos voltam a aparecer, com a denúncia do Procurador-Geral da República contra o chamado "mensalão mineiro", o esquema ilícito de arrecadação de dinheiro "não-contabilizado" capitaneado pelo publicitário Marcos Valério para a campanha do tucano Eduardo Azeredo ao governo de Minas Gerais, em 1998. Muitos petistas acreditam que tal escândalo irá fazer todos esquecerem da avalanche de 2005, deflagrada pelas denúncias de Roberto Jefferson. É assim que eles pensam: um escândalo faz esquecer o outro, e o outro, e o outro... Com isso, esperam enganar a todos novamente. Mas mesmo os petistas mais empedernidos têm de segurar a onda dessa vez. O motivo está na própria denúncia do Procurador-Geral, que classifica o esquema mineiro do PSDB como a "fonte e o laboratório" em que se gestou, nos anos seguintes, o mensalão petista. Além do mais, o ministro recém-demissionário dos Transportes do governo Lula, Walfrido Mares Guia, era em 1998 companheiro de Azeredo na campanha eleitoral em Minas. Adivinhe quem foi o principal financiador da campanha de 2002 de Lula à presidência? Ninguém menos do que - surpresa! - o irmão de Tasso Jeireissati, até a semana passada presidente do PSDB. O mensalão mineiro é mais uma prova de que, longe de serem adversários inconciliáveis, PT e PSDB estão juntos, desde o início. Quer atingir o PT e Lula? Mire nos tucanos.

Não são apenas as cifras das campanhas políticas e complexos cálculos eleitoreiros o que explica a cumplicidade de facto entre tucanos e petistas. O PSDB é incapaz de encabeçar um movimento de repúdio a Lula, assim como o PT é incapaz de liderar um movimento de repúdio a Hugo Chávez. Enquanto fingem brigar, ambos os partidos estão ligados desde o berço, como gêmeos xifópagos, partilhando a mesma concepção esquerdista, os mesmos dogmas, apenas um pouco mais atenuados no caso do PSDB. Estou exagerando? Então dêem uma olhada nas origens ideológicas de PT e PSDB. Até onde eu sei, não me consta que os tucanos nasceram, em 1988, como um contraponto às esquerdas brasileiras, mas como parte delas. Com a diferença de que, desde o início, o partido se assumiu como social-democrata - a começar pelo nome -, ao passo que os petistas, embora na prática caminhassem para a social-democracia, continuaram a salada de tendências e correntes ideológicas que sempre foram. No caso do PSDB, seus fundadores vinham de uma cisão do PMDB, que hoje é apenas uma reunião de interesses particulares (e fisiológicos), mas cujas origens são o MDB de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Muitos dos fundadores do PSDB - José Serra, Sérgio Motta etc. - vinham da esquerda católica dos anos 60, em especial da Ação Popular (AP). É preciso ser cego, surdo e louco para enxergar alguma rivalidade real entre o tosco esquerdismo petista e o esquerdismo cepalino e uspiano dos tucanos.

Na verdade, a divisão PT-PSDB não foge ao padrão verificado historicamente nas esquerdas. Desde pelo menos a política de "frente popular" defendida por Moscou em 1935, sempre foi uma tática das esquerdas cultivar duas caras, dois discursos diferentes, de acordo com a platéia, a fim de enganar o maior número possível de pessoas e garantir o predomínio (a "hegemonia", diria Gramsci) do discurso político. A partir de um certo momento, os comunistas perceberam que esse discurso não poderia triunfar de forma monolítica, com um partido apenas. Daí a necessidade de um partido "para as massas", abertamente radical e revolucionário, e outro, moderado, "para as camadas médias" ou os "setores progressistas da burguesia". Ou, para usar as palavras dos próprios comunistas, um "programa máximo" e um "programa mínimo", a fim de conquistar o apoio do povão, por um lado, e a respeitabilidade das camadas mais "instruídas", por outro. Em suma, a esquerda comunista e revolucionária se deu conta de que não poderia alcançar o poder sem a ajuda de companheiros de viagem. Foi assim no Brasil, com o PTB e o PCB nos anos 1945-1964, por exemplo, e, de certa forma, com o MDB durante o regime militar. E é assim hoje, com PT e PSDB.
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Desde os primórdios, tucanos e petistas caminharam juntos, como Lula e Chávez fazem hoje. O namoro foi interrompido com a ida de FHC para o Ministério da Fazenda, durante o governo Itamar Franco, e o Plano Real, que se tornou o grande trampolim de FHC para alcançar a presidência. Isso, claro, provocou ciúmes na petistada. De lá para cá, os antigos aliados vivem às turras, como um casal que resolveu dar um tempo depois de uma briga, mas que não descarta a possibilidade de uma reconciliação. Que a disputa no Brasil de hoje se resuma a uma querela PT versus PSDB, é algo que revela como estamos atrasados, como é baixo o nível do debate político no País. Na verdade, com o apoio do PSDB, os petistas e seus aliados da esquerda conseguiram implantar, há tempos, um verdadeiro monopólio da linguagem - um duopólio esquerdista.

Como demonstra o mensalão mineiro, as farpas entre FHC e Lula, entre tucanos e petistas, não passam de pura encenação para iludir os incautos. PT e PSDB estão no mesmo campo político-ideológico, tal como petistas e chavistas. Não foi por acaso que Lula no poder copiou grande parte dos programas de FHC, como gostam de lembrar os tucanos. Nada mais tucano do que um lulista no poder, e vice-versa.