Está na minha mesa, colocado por um colega meu (que acredita, talvez, que irá assim me provocar), um texto de José Celso Martinez Corrêa, "Tropicália, sob o signo de escorpião", publicado um dia desses no Estadão. Tenho ganas de ignorar, mas, por pura teimosia, curiosidade ou sei lá o quê (tédio? morbidez?), resolvo sacrificar alguns neurônios e ler o troço. Pelo que eu entendi, Zé Celso critica o coleguinha Caetano Veloso, que, ao declarar seu voto na ex-petista e hoje verde Marina Silva, chamou Lula de analfabeto e cafona. Um pecado mortal, verdadeiro sacrilégio e crime de lesa-santidade, segundo nossos intelequituais e esquerdóides de botequim.
O nível da política no Brasil é tão baixo e o de babaquice é tão alto que é preciso que Caetano Veloso chame um analfabeto cafona de analfabeto cafona para que haja algo parecido com um debate. É mais um sintoma de nosso entranhado subdesenvolvimento, de nossa miséria cultural e intelectual. Coisas da Era Lula, essa quadra particularmente sombria de nossa História, sobretudo para a inteligência. Caetano, ao chamar Lula do que ele, Lula, é, está sendo apenas Caetano, ou seja, está, caetanamente, exercendo o papel que o catapultou para o Olimpo da "cultura" brasileira, mais do que suas músicas: o de provocador, de agitador cultural. É seu, digamos assim, marketing pessoal. Politicamente, todos sabem, Caetano é do partido do Chacrinha: veio para confundir, não para explicar. Ele é tão claro e compreensível quanto uma aula de física quântica ou de sânscrito para uma turma de surdos-mudos. Tanto que, se acerta na mosca em sua definição do Apedeuta, ele se desdiz logo em seguida, tal qual uma metamorfose ambulante, derramando-se em elogios a Marina Silva, que nada mais é do que um Lula antes de Lula, de saias e com um português melhorzinho. Mesmo isso, porém, é suficiente para atiçar a fúria da turma do Oba!, os petralhas da cultura. Quem diria: falar mal de Lula virou uma transgressão, uma ousadia comportamental. Ou não.
Zé Celso é uma dessas invenções típicas de épocas como a Era Lula: o bobo da corte, ou o maluco-beleza chapa-branca. É difícil concorrer com o rei, eu sei. Mas Zé Celso se esforça em superar o mestre no quesito animador de auditório. Ler um texto dele é mesmo uma experiência, como direi?, antropofágica. Se é sobre Lula, então, é uma verdadeira feijoada humana, uma geléia geral. Mal comparando, é algo assim como assistir a uma de suas peças: depois de se aborrecer na cadeira por quatro ou cinco horas, temendo ser arrastado para o palco e ter as roupas arrancadas, ou receber um fígado de boi ensangüentado na cara, você sai sem ter entendido nada, mas, para não fazer papel de idiota e manter uma pose de inteligente, finge que entendeu e diz que assistiu a uma obra-prima da dramaturgia universal, muito profunda e revolucionária, verdadeiramente desafiadora das convenções teatrais... Mas vamos tentar destrinchar esse angu de caroço.
Nosso Pirandello começa seu texto-manifesto-ato-performance elogiando (como haveria de ser de outra forma?) um texto "extraordinariamente bem escrito" do ministro da Cultura, um tal Juca Ferreira, que elogia (ele também) a decisão do primeiro governo Lula de nomear "corajosa e muito sabiamente" Gilberto Gil para a mesma Pasta, de modo que temos hoje, pela primeira vez (só faltou o "nunca antes neste país"), um "corpo concreto de potencialização da cultura brazyleira" etc.
Logo em seguida aos rapapés iniciais, o malucão chapa-branca e profissional do oba-oba entra na questão principal do texto, dizendo-se surpreso com a declaração de Caetano sobre o analfabetismo e a cafonice de Lula. Ele faz questão de dizer, porém, que acha "caetanamente bonito", nestes tempos, segundo ele, de "invenção da democracia brazyleira" - tudo o que veio antes, entenda-se, deve ter sido o vazio -, que surjam perspectivas opostas, dentro do mesmo movimento que é a Tropicália etc. e tal.. Traduzindo: ele acha isso tudo lindo, divino e maravilhso, mas discorda de Caetano por criticar seu ídolo.
Para Zé Celso, Lula não é um político analfabeto e cafona, que transformou a própria ignorância e o próprio despreparo em objetos de culto e que presta com isso um enorme desserviço à inteligência brasileira, mas é, isso sim, "o primeiro presidente antropófago brazyleiro" (assim mesmo, com "z" e "y"). Isso porque Lula, tendo nascido em Caetés, "nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha", encarnaria um, sei lá, "espírito" de brasilidade maior do que, digamos, José Serra ou FHC. Lula seria a encarnação da Antropofagia, é isso que Zé Celso quer dizer.
Deixando de lado o fato de que Lula nasceu no Agreste de Pernambuco e o Bispo Sardinha virou jantar no litoral de Alagoas (terra de Collor e de Renan Calheiros), tendo sido devorado pelos índios caetés (daí talvez a confusão), acredito ser importante esclarecer algumas coisas. Em sua prosopopéia lulista, o teatrólogo parece obcecado em exaltar as "conquistas, vitórias e avanços" do governo Lula, sem dizer quais exatamente. Ao analisar o exercício do "poder-phoder" (principalmente este último) humano dos atuais ocupantes do Planalto, enaltece a capacidade de Lula de sambar para "driblar a máquina perversa oligárquica, podre, do Estado brasileiro" e afirma que "Lula não pára de carnavalizar, de antropofagiar, pro país não parar de sambar, usando as próprias oligarquias". Imagino que ele esteja falando de gente como Sarney, Collor e Jader Barbalho. Nesse caso, Lula realmente carnavalizou, tendo mostrado grande jogo de cintura. Carnavalizou tanto que virou avacalhação, um ninguém-é-de-ninguém em que não se sabe quem é preto, branco ou amarelo, e tudo vira uma massa amorfa só: Lula estaria "usando as próprias oligarquias", diz Zé Celso, ao se aliar aos coronéis. Já FHC, o almofadinha da USP, estava traindo mesmo seu passado quando se aliou a Antônio Carlos Magalhães. Entendo.
Deixemos que o próprio Zé Celso nos explique o porquê de o que antes era ruim ter se tornado bom com Lula: "Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o senso comum do rebanho. Por exemplo, quando convoca os jornalistas da Folha de S. Paulo a desobedecer seus editores e ouvir, transmitindo ao vivo a phala do povo. A interpretação da editoria é a do jornal e não a da liberdade do jornalista. Aí , quando liberta o jornalista da submissão ao dono do jornal, é acusado de ser contra a liberdade de expressão. Brilha Maquiavel, quando aceita aliança com Judas, como Dionísios que casa-se com a própria responsável por seu assassinato como Minotauro, Ariadne. É realmente um transformador do Tabu em Totem e de uma eloquência amor-humor tão bela quanto a do próprio Caetano."
Que maravilha! Esse Lula é mesmo do balacobaco. Sua "sabedoria carnavalesca" o faz dar "entrevistas maravilhosas" onde a carnavalização e a inversão do senso comum (de qualquer sentido lógico, na verdade) correm soltas. Mais que isso: as entrevistas de Lula são uma oportunidade, segundo diz Zé Celso, de os jornalistas terem uma aula do que é o verdadeiro jornalismo! Não aquele jornalismo das redações ou das editorias, mas o que se aprende bebendo da fonte das sábias palavras do Guia Genial e Mestre Iluminado, que transmite para eles a "phala do povo". E isso é uma libertação!... Joãozinho Trinta - ou Goebbels - não faria melhor.
Em outras palavras: quando Lula tenta explicar o mensalão dizendo que foi "traído" mas não diz por quem, ou quando se recusa a dar qualquer explicação plausível sobre um apagão que deixou metade do País às escuras, isso é a fala (ou phala) do povo em estado puro. É isso que os jornalistas devem ouvir e reproduzir, como disse aliás um dia desses o próprio Lula, segundo o qual "imprensa é pra informar, não fiscalizar". E o jornalista que ousar contrariar o Big Brother e dizer que o dever da imprensa é, sim, fiscalizar, será acusado de golpista ou coisa que o valha. Quem enxergar nas falas de Lula algum ranço autoritário e contrário à liberdade de expressão só pode ser, claro, um inimigo do povo.
Zé Celso não se cansa de elogiar o "pragmatismo" de Lula, seu maquiavelismo brilhante ao aceitar aliança com Judas etc., assim como sua capacidade macunaímica de transformar o Tabu em Totem etc. etc. Vivemos tempos realmente sombrios. FHC quase foi crucificado pelos mesmos intelectuais que hoje babam por Lula por ter aceito alianças com forças bem menos explicitamente oligárquicas e atrasadas do que Sarney ou Collor. Agora, os mesmos intelectuais vêm a público louvar Lula pela brilhante sacada de ter se aliado com Judas ou com Satã em pessoa, e acham isso o máximo. Não contentes, enaltecem sua capacidade tropicalista-freudiana de transformar o Tabu - a corrupção, o nepotismo, o fisiologismo, o clientelismo etc. - em Totem, ou seja, em regra. Em outras palavras: tudo o que antes era sujo, corrupto e nojento passa a ser limpo, probo e atraente com e sob Lula. Deve ser essa a "nova hegemonia moral e cultural" de que andou falando por aí um dia desses um político da base governista, leitor de Gramsci.
Tamanha "sabedoria filosófica" de Lula, claro, não poderia deixar de refletir-se também na arena internacional. Aqui a babação de ovo antropofágica de Zé Celso atinge os píncaros da adoração, quando ele aplaude a "revolução cultural internacional" de Lula e Celso Amorim. "O Brasil inaugurou uma política de solidariedade internacional", trombeteia Zé Celso, isso porque não aceita "a lógica da vendetta, da ameaça, da retaliação". Pelo contrário: "Propõe o diálogo com todos os diabos, santos, mortais". Posso estar errado, mas desconfio que, quando fala de "diabos", Zé Celso está falando de Hugo Chávez, Raúl Castro, Evo Morales ou Manuel Zelaya, políticos com os quais o governo Lula, de fato, inaugurou uma política de solidariedade internacional. Política tão solidária, aliás, que leva o governo a ignorar todos os atentados à democracia realizados por esses caudilhos autoritários, e a colecionar vexames como ter apoiado - e ver ser derrotado - um antissemita e queimador de livros para a direção da UNESCO (para ficar somente na área da cultura, afeita a Zé Celso). É a mesma política de solidariedade com tiranos e genocidas que faz Lula negligenciar o genocídio em Darfur e minimizar a repressão no Irã como um arranca-rabo entre vascaínos e flamenguistas. Dentro de alguns dias, aliás, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, estará no Brasil. Querem apostar como Lula irá se negar a falar em democracia ou em reconhecimento de Israel com o maluco de Teerã? Aliás, Lula já disse à imprensa que, no Oriente Médio, é preciso negociar "até com quem NÃO quer a paz". Lula não fez apenas uma revolução cultural internacional, como diz Zé Celso: revolucionou também a lógica e o bom-senso, mandando-os para as cucuias.
O fascínio de Zé Celso por Lula e pelo lulismo parece mesmo ilimitado. "Adoro ouvir Lula falar, principalmente em direto com o público como num teatro grego. É um de nossos maiores atores", afirma, e quase se vê o brilho em seus olhos de tanto êxtase. Já escrevi aqui que dificlmente chamar um político de ator pode ser considerado um elogio, pois atores, e isso acredito que Zé Celso saiba muito bem, são mestres na arte de mentir, de enganar. Quanto mais mentiroso, melhor o ator. Nesse ponto concordo plenamente com Zé Celso: Lula é mesmo um excelente ator. Um mestre da interpretação.
"Mais que alfabetizado na batucada da vida, lula é um intérprete dela: a vida, o que é muito mais importante que o letrismo. Quantos eruditos analfabetos não sabem ler os fenômenos da escrita viva do mundo diante de seus olhos?" Ah, a vida, essa grande escola... Muito mais importante que o letrismo, certamente, sobretudo o letrismo que teima em ver em antigos manuais esquerdistas que enaltecem o "povo" a chave para a felicidade humana. Lula foi alfabetizado na batucada da vida, é verdade, assim como foram Hitler e, quero crer, até Zé Celso Martinez Corrêa. Ao contrário deste último, quero crer também, ele não só deixou de se alfabetizar, como bate no peito e se orgulha de seu próprio analfabetismo. O que seria de Lula sem esse apedeutismo, sem esse culto quase religioso da própria ignorância e falta de luzes? Não seria Lula, certamente.
Zé Celso abre seu voto para a linha que vem de Getúlio, de Brizola, de Lula, dizendo que vai de Dilma nas próximas eleições. Faz sentido. Todos esses foram ou são grandes atores. Acredito que não fariam feio em alguma encenação ousada de O Rei da Vela, dirigida por Zé Celso. Getúlio, de certa forma, encarnou Macunaíma até mais do que Lula, instalando uma ditadura pessoal que durou sete anos e que varreu todas as liberdades democráticas, transmudando-se, depois, em mártir democrata. Brizola, como seu discípulo, não chegou ao mesmo nível do mestre, mas fez um belo estrago no Rio de Janeiro. E Lula... Bem, Lula é isso que está aí.
Prossegue Zé Celso: "A própria pessoa de Lula é culta, apesar de não gostar, ainda, de ler. Acho que quando tiver férias da Presidência vai dedicar-se a estudar e apreender mais do que já sabe em muitas línguas". Acho difícil. Lula já teve uns bons vinte anos desde que deixou o sindicato para aprender a ler e a escrever, mas preferiu outro caminho. Se ele não estudou antes, porque faria isso após deixar a presidência? É mais provável ele continuar tomando sua cachacinha enquanto assiste aos jogos do Timão na TV. Essa tem sido, até agora, sua principal atividade intelectual, além de chorar diante das câmeras ao lembrar do passado sofrido e se gabar de não ter diploma. Um sujeito muito culto, como se vê.
Mas nada disso diminui o entusiasmo de Zé Celso pelo ator Lula. Tanto que até alimenta esperanças de que ele, um dia, se junte à sua trupe: "Até hoje ele [Lula] não pisou no Oficina. Desejo muito ter este maravilhoso ator vendo nossos espetáculos. Lula chega à hierarquia máxima do teatro, a que corresponde ao papa no catolicismo: o palhaço. Tem a extrema sabedoria de saber rir de si mesmo." Certamente! O palhaço, no circo, é um personagem feito para rir, um mestre do absurdo. Lula, porém, é levado a sério por gente como Zé Celso. Ele ri de si mesmo? Melhor perguntar a Larry Rohter, o jornalista americano que ele expulsou do País por ter escrito um artigo falando da predileção de Lula por uns gorós...
"Lula é um escândalo permanente para a mente moralista do rebanho. Um cultivador da vida, muito sabido, esperto. Não é à toa que Obama o considera o político mais popular do mundo." Vou concordar inteiramente com essa afirmação de Zé Celso. Um escândalo permanente, assim como um sujeito que cultiva a vida, sobretudo a boa-vida, sabido e esperto, é mesmo uma boa maneira de definir Lula. Eu poderia até topar uma cervejinha num domingo à tarde com ele. Só não sei se compraria dele um carro usado, ou se essas são características interessantes num presidente da República. Quanto a Obama, o que dizer? Os mesmos que entronizaram o Apedeuta endeusaram o "negro pós-racial" nos EUA. Aliás, Lula e Obama têm mesmo muito em comum: a mesma adulação sem limites da mídia, a mesma ambigüidade diante do mal etc.
Para Zé Celso, "Lula faz política culta e com arte". Eu sou menos prolixo, e digo que ele faz política. E só. A mesma velha política de sempre. Apenas com um toque assim, digamos, antropofágico. Macunaímico. Embalado em analfabetismo e cafonice, como disse Caetano Veloso.
3 comentários:
Seu texto é de reacionário do rebanho, ignorante e colonizado. Vc sabe bem seguir regras, como as do Português, mas te falta muita arte ainda para compreender o que não compreende. Quando você se orgulha da sua ignorância e baforeja a raiva que afinal deve ter de si mesmo, porque não há outra razão para tamanha necessidade de ser o juiz supremo, dá a maior bandeira de sua burrice. Mas ainda deve haver tempo para você nesse mundo, para livrar-se de si, libertar-se. Corra, pois tem de recuperar o tempo perdido!
Meu caro Anônimo, vc tem razão: sou um reacionário "de rebanho", além de ignorante e colonizado. Isso porque, como vc disse, eu sigo regras, como as de Português (ao contrário de Lula) e, sobretudo, da lógica (ao contrário do Zé Celso e outros aduladores do Apedeuta). Quem sabe vc não seja a pessoa que será capaz de sanar essa minha falta de "arte" para compreender o que não compreendo, como, por exemplo, o que leva alguém a escrever um texto bajulatório a um sujeito analfabeto e cafona que despreza a própria educação e que transformou esse desprezo pelas luzes em trunfo eleitoral... Devo mesmo ser alguém que se orgulha da própria ignorância e burrice (será que eou lulista e não sei?) e que baforeja a raiva que afinal devo ter de mim mesmo, pois sou incapaz de enxergar a auréola que muita gente jura ver em torno da cabeça de nosso Mestre Iluminado. Faço apenas uma pequena ressalva ao que vc disse: não pretendo arvorar-me em juiz supremo, pois esta posição, mesmo se eu a quisesse para mim, seria impotente diante do Deus-Pai-Todo-Poderoso-de-Caetés-filho-de-uma-mulher-que-nasceu-analfabeta. Mas, por via das dúvidas, vou seguir seu conselho. Vou tentar livrar-me de mim mesmo e libertar-me. Vou correr agora mesmo para o cinema para assistir e reassistir umas trinta vezes a hagiografia cinematográfica de Nosso Líder e Guia Genial, até que minhas lágrimas sequem e meu cérebro vire um maracujá. Quem sabe assim eu veja a luz e me torne petista. Amém.
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