terça-feira, novembro 03, 2009

UM VERMELHO-E-PRETO COM UMA ZELAYSTA ACADÊMICA (OU: DEIXEM AS CONSTITUIÇÕES DOS OUTROS EM PAZ!)


Caiu em minhas mãos um artigo de autoria de Deisy Ventura, professora de Relações Internacionais na USP. Saiu na Folha de S. Paulo de hoje, com o título "Brasil, Honduras e a nossa política externa". Vocês verão que as idéias que ela coloca já foram discutidas à exaustão aqui. Verão também que os defensores do golpismo bolivariano vestem inúmeros disfarces. Inclusive o de professor de Relações Internacionais da USP.

Deisy Ventura, Deisy Ventura... Esse nome não me é estranho. Onde foi que eu o vi antes? Já sei: vasculhando meus posts mais antigos, descobri um, de 19/11/2008, quase um ano atrás, em que eu rebato, parágrafo a parágrafo, outro texto da doutora Deisy, publicado na mesma Folha, dessa vez sobre a questão da luta armada e a tentativa patética de Tarso Genro et caterva de mudar a Lei de Anistia para punir apenas um lado dos "anos de chumbo"(http://gustavo-livrexpressao.blogspot.com/2008/11/eles-no-desistem-mais-falcias-dos.html). Como se vê, a doutora Deisy é reincidente. Vamos ao texto dela em vermelho. Meus comentários vão em preto.

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BRASIL, HONDURAS E A NOSSA POLÍTICA EXTERNA

Deisy Ventura

O precário e tardio desfecho da crise política em Honduras suscita numerosas questões sobre o papel da comunidade internacional em casos de ruptura do Estado de Direito e, particularmente, sobre o inegável, mas mutante, protagonismo dos Estados Unidos na América Latina. Permite, ainda, corrigir o lastimável tom do debate local sobre a guarida ao presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada brasileira em Tegucigalpa.

Desde 28 de junho, quando Zelaya foi deposto e expulso ilegalmente do país, o governo putschista de Roberto Micheletti, apesar da débil máscara de legalidade obtida com a ratificação a posteriori do golpe pela Corte Suprema e pelo Parlamento hondurenhos, sofre intensa pressão internacional: a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) pedem a restituição do chefe de Estado, a Organização dos Estados Americanos (OEA) mantém um esforço constante de negociação e nenhum país reconheceu o governo "interino".
Prestem atenção na frase: "deposto e expulso ilegalmente do país". A ambigüidade, talvez proposital, decorre do emprego meio esquisito do advérbio: afinal, em 28 de junho Zelaya foi "ilegalmente" deposto ou expulso? Ou foi "ilegalmente" as duas coisas? O pensamento não está claro.

Mas OK, vamos admitir, por um momento, que a autora quis dizer que Zelaya foi ilegalmente deposto e ilegalmente expulso do país. No último caso, ela deve estar se referindo ao Artigo 102 da Constituição de Honduras, que de fato proíbe a extradição de cidadãos hondurenhos. Já escrevi a respeito, e disse que sim, os militares erraram, e erraram feio, ao terem expulsado Zelaya do país, e que isso foi, sim, ilegal. Como também já escrevi que não é isso que caracteriza golpe de Estado.

Aqui é que entra outro Artigo da Constituição de Honduras, o 239, que a autora, infelizmente, ignora em todo seu texto. O Artigo 239 estabelece que quem propuser a reforma da Constituição visando à reeleição, própria ou não, perde imediatamente o mandato e fica inabilitado a exercer qualquer cargo público por dez anos. Foi exatamente isso que Zelaya tentou fazer, e que motivou sua deposição em 28/06. Deposto "ilegalmente"? Com base em que Lei?
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Em tempo: a "débil máscara de legalidade" do governo "interino" de que fala a autora não foi obtida "a posteriori" pela Corte Suprema e pelo Parlamento hondurenhos. Foram precisamente estes que deram o "golpe" e destituíram Zelaya, para fazer cumprir a Lei e instalar o governo "interino" - que é, na verdade, o governo CONSTITUCIONAL de Honduras.
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A reação mundial ao golpe torna econômica a crise política. Num orçamento público que depende em 20% da ajuda externa, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento interromperam os seus aportes, assim como os Estados Unidos e a Venezuela.
Nada a comentar. Adiante.

Com a brusca queda dos índices de investimento, é certeira a redução do PIB, que já é um dos mais modestos do continente. Enquanto digladiam-se os líderes políticos, aprofunda-se a desigualdade social, eis que a instabilidade atinge com maior vigor a parcela mais pobre da população.
Idem. Ibidem.

Contudo, a pressão econômica não impediu a persistência da crise por longos quatro meses.

A ausência de sanções automáticas de maior impacto na Carta Democrática Interamericana faz da OEA uma organização "sem dentes". O governo norte-americano, por sua vez, tardou a agir pela importância marginal de Honduras, porque ainda se encontra em transição e diante do apoio explícito de alguns parlamentares republicanos ao golpe de Micheletti, homem de confiança dos conservadores.
Vejam que a doutora Deisy fala em "golpe", "golpe de Micheletti", "governo putschista" etc. Ela ignora, ou finge ignorar, quem são os verdadeiros golpistas na história. Quem deu o "golpe" em Honduras, minha senhora, foram as instituições de Honduras, a Corte Suprema, o Congresso, que simplesmente aplicaram o que está na Lei. As Forças Armadas foram apenas os executores da ordem legal emanada do Judiciário e do Legislativo. Golpe? De quem?

A influência dos Estados Unidos está, aliás, na origem da crise.
Errado. O que está na origem da crise é a influência de Hugo Chávez. Como a própria autora admite, meio obliquamente, logo em seguida.

Por um lado, Zelaya perdeu o apoio de seu partido ao afastar-se do histórico alinhamento automático com os norte-americanos, em benefício da temida aproximação com o chavismo.
Exatamente. E lembremos: Zelaya não apenas afastou-se do "alinhamento automático" com os EUA e aproximou-se do chavismo, como o abraçou com fervor, aderindo de cabeça, chapéu e botas ao golpismo bolivariano, que já engoliu a Venezuela, a Bolívia e o Equador, e agora ameaça a Nicarágua. Daí porque ele tentou dar um golpe civil, rasgando a Constituição do país para eternizar-se no poder.

De outra parte, a Constituição hondurenha, elaborada em 1982 com o beneplácito do governo Reagan, expressa uma curiosa obsessão quanto à possibilidade de reforma, a ponto de punir com a "perda da qualidade de cidadão" todo aquele que "incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente da República" (artigo 42, 5), criminalizando de modo esdrúxulo uma eventual convicção política.
Entendi. O cerne do problema é a Constituição hondurenha, que pune até com a perda da cidadania quem ousar reformá-la. O problema todo está nessa Constituição reacionária, ainda por cima elaborada na época do Reagan, que não deixa um caudilho bolivariano ficar o tempo que quiser no poder, criminalizando, assim, "de modo esdrúxulo uma eventual convicção política"... (como se mudar as regras do jogo para impor uma ditadura pessoal fosse uma questão, digamos, de convicção política). Vejam só que coisa! Os hondurenhos, esse povinho atrevido, têm uma Constituição. Ainda por cima, uma Constituição que não é do agrado da doutora Deisy e de Zelaya. Esse é o grande "crime" deles!
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Sem querer, a profa. Deisy matou a charada: é isso mesmo, doutora! A Constituição de Honduras, quer a senhora queira ou não, proíbe a reeleição, considerando isso uma cláusula pétrea. Os Artigos 42 e o 239, que a senhora não cita, são claríssimos a esse respeito. A senhora pode achar que isso é uma estupidez, pode discordar totalmente desse dispositivo, mas pode, francamente, querer que os hondurenhos mandem a Constituição deles para a lata de lixo? Mais: isso dá o direito de alguém querer mudá-la na marra, desrespeitando uma decisão da Suprema Corte do país e tentando reduzir o Exército a um bando de bate-paus a seu serviço? Pois foi isso que Zelaya fez.

Por conseguinte, o cerne do chamado Acordo de Guaymures, firmado pelos contendores em 29 de outubro último, é a renúncia, por Zelaya, a qualquer proposta de reforma constitucional em troca de seu retorno litúrgico ao poder até o mês de janeiro.

Embora dependa de um parecer da Corte Suprema e de aprovação no Parlamento, ambos francamente hostis ao presidente deposto, o sucesso do pacto é provável, na medida em que está em jogo o reconhecimento pela comunidade internacional do resultado das eleições presidenciais de 29 de novembro.
Única parte do texto com a qual concordo inteiramente. O Acordo de Guaymures significa, na prática, a derrota de Zelaya, que ficará simbolicamente na presidência até janeiro - um retorno litúrgico ao poder, como diz a doutora Deisy. Ele não terá controle sobre as Forças Armadas, que passará para o Judiciário, nem poderá convocar a tal "consulta popular" que levou à sua deposição legal em 28/06. Enfim, terá menos poderes do que tem agora na embaixada do Brasil em Tegucigalpa. Além do mais, as eleições de 29/11 foram mantidas. Por isso é que os bolivarianos, inclusive o governo Lula, sofreram uma dura derrota em Honduras. Algo bem diferente da propaganda triunfalista vigarista que querem nos impingir.

Independentemente do seu cumprimento, o Acordo de Guaymures reconduz a discussão ao seu eixo, qual seja, a solução efetiva do impasse, e não o que ocorre na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
O eixo da discussão, ou seja, a solução do impasse, passa necessariamente também pelo que ocorre na embaixada brasileira desde 21 de setembro. Não devemos esquecer: o impasse foi criado por causa da ocupação da embaixada por Zelaya e seus partidários, que a transformaram num escritório de agitação política e de pregação insurrecional. Isso criou uma situação esdrúxula, não prevista em qualquer tratado ou convênio internacional, uma vez que o governo brasileiro se recusou a conceder o status de asilado político a Zelaya, que passou a usar o território brasileiro para fazer até comício - uma clara violação da soberania hondurenha por parte do governo Lula.

Árvore que esconde a floresta, o falso debate grassou nos meios de comunicação brasileiros e chegou até o Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia, por meio de uma natimorta demanda contra o Brasil interposta pelo governo golpista (portanto, desprovido de legitimidade para demandar).
O debate só é falso na medida em que se considera coisas como soberania nacional uma falsa questão. Ora, Zelaya transformou a embaixada do Brasil em seu QG político! Pregou abertamente, de lá, a guerra civil no país! O Brasil se recusou a considerá-lo asilado político, dando-lhe o tratamento de "hóspede". Com isso, violou abertamente o que está na Carta da OEA e na própria Constituição Federal de 1988, intervindo diretamente num assunto interno de outro país. Ponto.

Imaginem se Collor, depois de deposto em 1992, se abrigasse na embaixada da Argentina e passasse a defender, desde lá, a derrubada violenta do governo que o sucedeu, incitando seus partidários. Conseguem visualizar o escândalo? Agora troquem "Collor" por "Zelaya" e "Argentina" por "Brasil" e vocês terão uma idéia aproximada do que vem ocorrendo em Honduras desde 21/09, e do papelão do Brasil nessa palhaçada.

Essa é a questão: o governo brasileiro deu abrigo a um GOLPISTA que foi destituído por afrontar a Constituição do país, e que tentou retornar ao poder na marra, no muque. Tudo o mais é balela. Como o estéril e, aqui sim, inteiramente falso debate sobre o "golpe" que teria ocorrido por causa de um... pijama!

Outra coisa: a representação do governo CONSTITUCIONAL de Honduras contra o Brasil no Tribunal Internacional de Haia não tem nada de natimorta. Assim como o governo hondurenho não tem nada de golpista, exceto para quem ignora a Constituição de Honduras e enxerga Zelaya como um mártir da democracia.

Ora, ao retornar a Honduras, Zelaya evitou a morte política, mas arriscou a própria vida. Porém, para além da questão humanitária, garantir sua incômoda presença gerou as condições para que não voltássemos a falar de Honduras apenas nas eleições de novembro, assimilando, por omissão, mais um golpe de Estado em nosso continente.
Digamos que Zelaya, ao retornar clandestinamente a Honduras com o apoio explícito de Daniel Ortega e Hugo Chávez, e implícito de Lula, tenha arriscado a vida. O que isso quer dizer? Absolutamente nada!!! Ladrões de banco e sequestradores também arriscam seus pescoços, e isso não torna legal o que fazem. Ou será que torna?
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O abrigo a Zelaya na embaixada brasileira não teve nada de "humanitário": foi tão-somente uma manobra para que ele retornasse ao poder. Ele não bateu à porta da representação brasileira em busca de proteção, porque estivesse sendo perseguido ou o que valha, mas porque isso era parte de um plano para incendiar o país e recuperar os amplos poderes. Se o refúgio a Zelaya foi uma questão humanitária, então foi a primeira vez na história da humanidade que um sujeito se refugia em uma embaixada não para fugir, mas para entrar no país e retomar o poder, levando junto uma legião de partidários.

O custo com o qual arca o Brasil ao acolher Zelaya nada mais é do que a rara coerência entre o discurso das cláusulas democráticas e a sua política externa, além do ônus natural de uma liderança emergente.
De que "rara coerência entre o discurso das cláusulas democráticas e a sua política externa" a autora está falando? Qual cláusula democrática, minha senhora? Rasgar a Constituição de um país - por mais "conservadora" ou "oligárquica" que seja, não importa -, por acaso agora faz parte dessa cláusula democrática? Ou seria a mesma cláusula democrática do MERCOSUL, que acabou de ser jogada no lixo pelos senadores brasileiros, alinhados com a "coerência" da política externa lulista, que aprovaram a entrada da Venezuela chavista no bloco? Ou seria a claúsula democrática presente na Carta da OEA, também lançada às baratas depois que a organização cancelou a suspensão da tirania comunista de Cuba? Então agora é coerente com a cláusula democrática servir de cabo eleitoral de um político golpista? É isso que a autora quer dizer quando fala no "ônus natural de uma liderança emergente"? Aliás, que liderança emergente é essa, que se viu totalmente desmoralizada no desfecho da crise, durante a qual se viu reduzida a caudatária do golpismo chavista, e que não teve qualquer participação em sua solução, afinal alcançada por mediação dos EUA?

Como tal liderança será doravante exercida e quem participa da elaboração da política externa brasileira, este, sim, é o bom debate que estamos por travar.
O Brasil não pode reduzir sua política externa a um apêndice do golpismo bolivariano. Deve firmar posição em defesa da democracia e do respeito às instituições políticas, colocando-se sem ambigüidades contra quem tenta destruí-las. É esse o bom debate que se deve travar.

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