terça-feira, novembro 10, 2009

O MAIOR DE TODOS OS CLICHÊS


Cartaz soviético da NEP (Nova Política Econômica, 1921):
o capitalismo a serviço do... comunismo

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Acabei de ler um texto de um certo Vinicius Torres Freire, intitulado "Muros e mumunhas da história", na Folha de S. Paulo de hoje. Segue em vermelho, com meus comentários em preto. Confesso que não sei de quem se trata, mas isso é o que menos importa. O que vale é o que está escrito. Vamos lá.

É TEMPORADA de disparates históricos. É o aniversário do fim do Muro de Berlim. É a estação da nostalgia rançosa da propaganda, mais liberaloide que esquerdoide, pois os comunistas desapareceram quase como os hare krishna que vendiam incenso nas esquinas.
Deixando de lado a referência à "nostalgia rançosa da propaganda", ainda por cima "liberalóide" (?!), vou me debruçar sobre a afirmação de que os comunistas "desapareceram como os hare krishna". Será mesmo? Na minha terra, costuma-se dizer que, quando fulano está há muito tempo sem aprontar, não é que tenha desaparecido, mas que está na moita, de tocaia, esperando para dar o bote. Lula esteve no fim de semana em um evento do PCdoB, partido que tem "comunista" no nome, e que ostenta orgulhosamente a foice e o martelo como seu símbolo. Não por coincidência, no dia 7 de novembro, aniversário da "gloriosa" Revolução bolchevique de 1917 na Rússia, a data máxima dos comunistas do mundo todo. O PCdoB tem presença garantida no governo Lula. Os hare krishna, até onde eu sei, não.
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Recordam-se tolices que a queda do Muro ensejou, a começar pela frase que se tornou então uma espécie de logoceia histórica, uma explicação do mundo pós-89. Muito texto começava assim: "Com a globalização e a queda do Muro de Berlim...". Daí decorriam o destino inelutável do capitalismo, reformas, a moda do paletó de três botões, dietas novas ou a privatização da atmosfera. Do economista Ph.D ao diretor da associação comercial de Santo Antão de Pitangas, passando pelo deputado do PFL e Francis Fukuyama, o clichê era um "must". O filho temporão dessa família de tolices é a frase "o mundo jamais viveu tanto crescimento econômico", no pós-Muro ou neste milênio.
Olha, também acho uma besteira e um clichê idiota isso que o autor aponta. Acho, aliás, que a onda de triunfalismo liberalóide após 1989 não corresponde à realidade. É sobre isso que falarei mais adiante.
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O chavão pretendeu justificar até o desastre financeiro de 2008. Nesta efeméride, foi ressuscitado para comemorar a "liberação das forças produtivas" antes presas pelo Muro. Trata-se de mentira ou ignorância. Apenas quase China e cia. cresceram mais no período recente que nos anos ditos "gloriosos de 1947-73".
Sem entrar em minúcias sobre a questão da crise financeira de 2008, que muita gente, repetindo outro clichê, enxergou como o começo do fim do capitalismo em escala global, é bom lembrar que esse tipo de previsão não se concretizou. Aliás, é bom lembrar que, ao contrário do que profetizaram muitas cassandras do estatismo, que passaram a alardear, desde então, que o tempo do livre mercado acabou e que, a partir daí, o Estado iria tomar conta de tudo, foi o próprio capitalismo - o próprio mercado, enfim - que salvou a si mesmo e tratou de regular-se após a explosão da crise. Ou vai me dizer que os US$ 800 bilhões que o governo Obama aplicou para salvar o setor bancário nos EUA saíram não dos impostos coletados junto às empresas privadas, mas, sei lá, do próprio governo, que não produz um parafuso? Se a crise de 2008, assim como a de 1929, provam alguma coisa, é que o capitalismo salva-se das próprias crises que produz, renova-se constantemente, e a vida continua. Já o socialismo, comunismo, dirigismo ou o que seja... Bem, já sabemos como isso acaba.
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Outra coisa: "apenas" a "China e cia" cresceram mais nos últimos anos do que no chamado período aúreo do capitalismo, de 1947 a 1973? "Apenas"?

A China é "capitalista"? Na China, a terra não é uma mercadoria (posse e venda ainda são muito reguladas), nem o trabalho (uns 500 milhões de chineses não podem migrar do campo e ganhar a vida onde bem entendem); o grosso da decisão de investimento é estatal. Etc. etc. No Ocidente, há mercados mais ou menos desde o século 13, mas limitações ditas "feudais" aos negócios existiam até na Inglaterra do século 19, que dirá no resto da Europa.
Tenho um ponto de concordância com o autor do texto, o que me afasta, aliás, de muitos liberais: também não considero a China um país capitalista. Não a considero, ao contrário do que faz o governo Lula, uma "economia de mercado". Pelos motivos apontados acima e por outros: a China é dominada por um regime ditatorial, com partido e ideologia dominantes, censura e presos políticos. E isso é incompatível, senão com o capitalismo, pelo menos com seu corolário necessário, a liberdade. O livre mercado é apenas um aspecto do capitalismo, não o capitalismo todo. Os próprios burocratas chineses do Partido Comunista, que manda e desmanda na economia do país, sabem disso, tanto é que batizaram seu sistema com o rótulo contraditório de "socialismo de mercado", um oxímoro. Para muitos economistas liberais, que vêem apenas os números da economia, a China é a oitava maravilha do mundo. Para mim, é uma farsa grotesca.

A China é quase tão "capitalista" quanto a França de Colbert (século 17); de resto, começou a mudar 15 anos antes do fim da URSS. Melhor dizer que existem economias de mercado, tão diferentes como Suécia, EUA, França, Japão, Brasil, Rússia e Holanda, e isso está longe de explicar sucessos, fracassos e acordos políticos desses países. É uma vergonha intelectual e moral usar o horror do comunismo para justificar o vulgar mercadismo.
Existem economias de mercado, no plural, mas isso não significa que o "mercadismo", seja lá o que isso for, seja inferior ao que havia na ex-URSS ou no lado de lá do Muro antes de 1989. Se por "mercadismo" o autor está se referindo a uma visão economicista, que ignora as características ditatoriais ou totalitárias de um regime desde que ele promova a eficiência econômica, estou de acordo, considero isso um embuste. De nada adianta a liberdade econômica sem a liberdade política; de nada vale poder escolher no mercado se não se pode expressar livremente o que se pensa. É essa a lição, aliás, que o horror do comunismo deve deixar: não nos esqueçamos que os regimes comunistas foram implantados com base em teorias econômicas do século XIX, prometendo um mundo de eficiência econômica e abundância, e que foi essa promessa - aliás, não cumprida - que serviu para justificar, aos olhos de muitos, o Gulag e a falta de liberdade, e que até hoje é usada para dar legitimidade à ditadura comunista chinesa.

É um erro terrível, fruto de ignorância histórica, enxergar comunismo e capitalismo como sistemas absolutamente incompatíveis. O comunismo não é incompatível com o capitalismo, mas com a liberdade e a democracia. Foi o próprio Lênin quem reconheceu isso, em 1921, quando chamou de volta os empresários russos que haviam fugido após a revolução, para ajudarem a implantar a infra-estrutura industrial da URSS na NEP, Nova Política Econômica. Os comunistas chineses aprenderam a lição direitinho, a ponto de haverem transformado a associação com o capital no pilar do regime comunista. Perceberam, enfim, que precisam do capitalismo para se manterem no poder e perpetuar a ditadura. Quando Lula fala mal dos tucanos numa reunião com os companheiros do PCdoB e, logo depois, faz piada num discurso para os empresários da FIESP, ele não está fazendo nada mais do que reproduzir, por estas plagas, a tática comunóide-esquerdista inaugurada por Lênin noventa anos atrás.

Por falar em autoritarismos, a democracia era rara no "mundo livre" enquanto o comunismo esteve de pé. Na Alemanha, foi implantada à força, sob ocupação militar e protetorado americanos, nos anos 50. No Japão, sob ameaça de devastação nuclear. Até nos EUA se tornou completa apenas com o fim do apartheid nos Estados do sul, nos anos 60. Na América Latina das ditaduras filhas da Guerra Fria, era intermitente e precária. Espanha, Portugal e Grécia foram ditaduras a maior parte desse tempo.
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Mesmo a França viveu crises graves, sob ameaça de golpe militar no início dos anos 60 e risco de conflito civil, na revolta da esquerda até o início dos 70. África, Oriente Médio e sul da Ásia eram colônias ou ditaduras mais bárbaras que os colonizadores europeus.
Certo, certo. O autor só se esquece de um detalhe: se a democracia era rara nos países capitalistas, ela era INEXISTENTE no mundo socialista. A menos que você, que lê este texto, me mostre um país - um único país - que teve a má sorte de ter sido um dia um regime comunista que possa ser considerado, naqueles dias, uma democracia. Não falo, obviamente, das "democracias populares" do Leste Europeu, que eram "democracias" e "populares" apenas no nome, mas de regimes democráticos mesmo, com eleições livres, liberdade de imprensa e pluralismo político. Mostrem-me um país comunista que era ou é também democrático. Qualquer um. Eu espero. Sou um cara paciente.
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Por falar nisso, é bom atentar para o seguinte fato: na América Latina, todas as ditaduras militares ou oligárquicas anticomunistas estabelecidas sob a égide da Guerra Fria desapareceram. Já a ditadura comunista dos irmãos Castro em Cuba, estabelecida há cinqüenta anos, continua prendendo e mandando gente para o paredón. E governos como o da Venezuela, seguindo os seus passos, tratam de minar todos os dias as instituições do país para instalar um regime autocrático. Em nome do "socialismo do século XXI".
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"Com a globalização e a queda do Muro de Berlim", foi o mercadismo que se difundiu. O pensamento social degradou-se no economicismo, a democracia sofre de indiferença no mundo rico, e a eficiência dessa tecnologia social de criar riqueza, o mercado, nem de longe dá conta da iniquidade ainda universal.
Ainda estou curioso para saber o que é exatamente esse tal "mercadismo". Mas o autor dá umas pistas importantes. Vejamos: economicismo, indiferença pela democracia etc. Nesse caso, o mercadismo seria uma ideologia em voga em países como o Brasil ou a China, em que a crença no "pragmatismo" tomou o lugar do compromisso com valores democráticos. De fato, isso se difundiu bastante após a queda do Muro, o que é uma lástima. A idéia de que "o comunismo morreu", repetida ad nauseam nos últimos vinte anos, é o maior clichê a respaldar essa visão triunfalista e inconseqüente, que confunde mercado - inclusive o "mercado socialista" chinês - com ideais iluministas. Trata-se de uma visão tão míope quanto negar a importância do mercado para a criação de riqueza e a dominuição das iniqüidades sociais. (Somente na já citada China, foram cerca de 300 milhões de pessoas - quase dois brasis - retiradas da miséria extrema nos últimos trinta anos, graças ao pérfido mercado.)

É claro que o mercado não é tudo; a liberdade, sim. O mercado pode conviver com a opressão, e inclusive com a opressão do comunismo, o regime mais perverso já criado pela mente humana. Mas a liberdade e a democracia, essas conquistas da humanidade, não podem prescindir de um sistema de livre mercado, ou, pelo menos, da mínima interferência possível do Estado na economia (como em tudo o mais, aliás).

Não se trata de uma opção: capitalismo ou socialismo, livre mercado ou dirigismo estatal etc. Nada disso. Trata-se de uma questão básica da natureza humana. Até porque ser livre não é qualquer impedimento a ser bem alimentado e bem vestido, e vice-versa.

A queda do Muro de Berlim de fato engendrou muitas falsas esperanças, muitos clichês e tolices. A maior de todas, a meu ver, é dizer que o comunismo morreu e que podemos todos dormir tranqüilos, pois a democracia está assegurada. Como demonstram os exemplos da China e do governo Lula, isso está longe de ser verdade. Infelizmente.

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