sexta-feira, novembro 20, 2009

É ASSIM QUE SE RECEBE UM DITADOR


A próxima segunda-feira, 23 de novembro, será uma data triste para a história da diplomacia brasileira. Melhor dizendo: será um dia triste para a Democracia. Para os Direitos Humanos. Para a Tolerância. Enfim, para a Humanidade.

O presidente Lula, que já disse, todo sério, que, "com democracia não se brinca" e que costuma se gabar de sua "resistência à ditadura" em terras tupiniquins, irá receber, com honras oficiais, batedores, tapete vermelho, salamaleques e tapinhas nas costas, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Os estrategistas da diplomacia lulista irão apresentar a decisão de convidar Ahmadinejad - ele foi convidado, ao contrário do presidente de Israel, Shimon Peres, que praticamente se convidou, e já esnobou um outro convite do Itamaraty em cima da hora - como mais uma mostra do "pragmatismo" do governo Lula, de sua infinita sabedoria e ausência de preconceitos ideológicos etc. Irão dizer também que o encontro será entre dois Estados, que será importante para o comércio bilateral, para o multilateralismo etc. Enfim, o de sempre.

É, pode ser. O comércio internacional, ou, como se diz, a realidade do poder, tem seus próprios critérios. Certamente, por exemplo, um acordo comercial ou de troca de tecnologia com a Alemanha de Hitler seria proveitoso para o Brasil. Mas isso justificaria uma visita de Hitler ao País? Mais: justificaria declarações do presidente da República minimizando os horrores do nazismo? É isso que se chama realidade do poder?

Uma coisa é certa como o nascer do sol no dia seguinte: durante a visita do iraniano, Lula não falará com ele sobre democracia, direitos humanos, liberdade para presos políticos, tolerância religiosa, reconhecimento do direito de Israel à existência, combate ao terrorismo etc. - essas coisas chatas que atrapalham o comércio entre os países. Ou, se falará, será para que Lula, usando todo seu charme e sapiência diplomática, aprendida na escola da vida e no sindicato, tente atrair o líder iraniano, como ele disse, a boas causas, convencendo-o, por exemplo, a não mais enforcar opositores, ou a reconhecer Israel, ou a desistir de seu programa nuclear... Lula já disse que é preciso negociar a paz até com quem se opõe à paz. Que só assim se pode atrair quem não quer negociar para as boas causas. Eis aí uma oportunidade de colocar isso em prática. Será que vai dar certo?

Sei que ninguém no Itamaraty, nesses tempos de apagão energético, mental e moral, vai dar a menor bola para este post, e ele não vai mudar um milímetro a política externa do Aiatolula, que comparou a repressão aos opositores no Irã a uma partida de futebol e reconheceu a vitória fraudulenta de Ahmadinejad nas urnas antes mesmo dos aiatolás iranianos. Mas não posso deixar de transcrever, aqui, um discurso que considero um dos melhores dos últimos tempos.

Em 24 de setembro de 2007, Ahmadinejad falou na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, num evento organizado pela Escola de Assuntos Públicos e Internacionais da instituição, como parte da programação acadêmica daquele ano, que foi dedicado às questões iranianas. Antes do discurso de Ahmadinejad, o reitor da universidade, Lee Bollinger, fez algumas considerações introdutórias. E passou uma descompostura histórica no delinqüente de Teerã.

No discurso, cujo vídeo pode ser encontrado no Youtube, ao agradecer os esforços dos coordenadores do evento, Bollinger lembra: “Ouvir idéias que nós deploramos não implica endossá-las nem é sinal de fraqueza ou ingenuidade diante dos perigos reais inerentes a essas idéias”. Em seguida, disse: “Uma das premissas cruciais da liberdade de expressão é que não tornamos honrada a desonra quando abrimos o debate para que ela se manifeste”. Ele afirmou compreender os motivos dos que se opuseram à presença de Ahmadinejad em Columbia e pede desculpas em nome da instituição àqueles que se sentiram ofendidos pela presença do genocida e negador do Holocausto. E afirma, enfaticamente: “Que fique claro de uma vez por todas: este evento não tem absolutamente nada a ver com o ‘direito’ de quem fala, mas apenas com o nosso direito de ouvir e falar. Fazemos isso por nós”.

Após exaltar os valores da liberdade e do entendimento do mundo, lembrando que a universidade não faz a paz nem a guerra, mas forma cérebros, ele se dirigiu diretamente a Ahmadinejad. Mencionou então diversos casos no Irã de perseguição a professores - um deles, formado em Columbia, afirma que a Anistia Internacional denunciou a execução de 210 pessoas (21 num único dia, 5 de setembro). Entre os mortos, crianças - sim, crianças! - e defensores dos direitos humanos. Lembrou a realização de execuções públicas, que constituem uma violação de convenções internacionais de direitos de que o Irã é signatário. Enfim, uma aula de tolerância e liberdade a alguém que desconhece o significado dessas palavras. Eis alguns trechos da fala do reitor (os grifos são meus):

“Essas e outras execuções coincidiram com a selvagem repressão contra ativistas estudantis e professores, acusados de fomentar a chamada ‘revolução suave’ (…) Como disse a doutora Esfrandiari numa entrevista, ela ficou presa numa solitária por 105 dias porque o governo acreditava que os EUA planejavam uma “Revolução de Veludo” no Irã. Nesta mesma sala, no ano passado, nós aprendemos alguma coisa sobre a Revolução de Veludo de Vaclav Havel. E ouviremos algo semelhante de Michelle Bachelet, presidente do Chile. Estas duas histórias extraordinárias lembram-nos de que não há prisões suficientes para impedir uma sociedade que queira ser livre de ser livre.

Nós, nesta universidade, não temos receio de protestar contra o nosso governo e de contestá-lo em nome desses valores. E não temos receio de criticar o seu governo.

Vamos deixar claro de saída: senhor presidente, o senhor exibe todos os sinais de um ditador mesquinho e cruel.

E eu lhe pergunto: por que as mulheres, os membros da religião Baha’i, homossexuais e muitos dos nossos colegas professores são alvos de perseguição em seu pais?

Por que, numa carta ao secretário geral da ONU na semana passada, Akbar Gangi, um dissidente, e outras 300 personalidades, entre intelectuais, escritores e laureados com o Prêmio Nobel acusam que a sua retórica inflamada contra o Ocidente busca desviar a atenção do mundo das condições intoleráveis que o seu regime criou dentro do Irã, em especial o uso da Lei de Imprensa para banir os críticos?

Por que o senhor tem tanto medo de que os cidadãos iranianos expressem suas opiniões em favor de mudanças? (…)

O senhor me deixa liderar uma delegação de estudantes e professores da Columbia para falar na sua universidade sobre liberdade de expressão, com a mesma liberdade que lhe garantimos hoje? O senhor fará isso?

Em dezembro de 2005, num programa da TV estatal, o senhor se referiu ao Holocausto como uma invenção, uma lenda. Um ano depois, o senhor apoiou uma reunião de negadores do Holocausto.

Para os iletrados, os ignorantes, isso é propaganda perigosa. Quando o senhor vem a um lugar como este, isto faz do senhor simplesmente um ridículo. Ou o senhor é um provocador descarado ou é espantosamente mal-educado [sem formação intelectual].

O senhor precisa saber que a Columbia é um centro mundial de estudos judaicos e, agora, em parceria com o Instituto YIVO, de estudo do Holocausto. (…) A verdade é que o Holocausto é o mais documentado evento da história humana. (…). O senhor vai parar com esse ultraje?

Doze dias atrás o senhor disse que o estado de Israel não pode continuar a existir. Isso repete inúmeras declarações inflamadas que o senhor tem feito nos últimos dois anos, incluindo a de outubro de 2005, segundo a qual Israel tem de ser “varrido do mapa”.

A Columbia tem mais de 800 ex-alunos vivendo em Israel. Como instituição, temos profundos laços com nossos colegas de lá. Eu, pessoalmente, tenho me manifestado com força contra propostas de boicotar estudantes e especialistas de Israel dizendo que isso seria boicotar a própria Columbia. Mais de 400 colegas e reitores neste país pensam o mesmo. Minha pergunta, então, é: “O senhor planeja nos varrer do mapa também?”

De acordo com o Council on Foreign Relations, está bem documentado que o Irã é patrocinador do terror, financiando grupos violentos como o libanês Hezbollah, que o Irã ajudou a organizar em 1980, e os palestinos Hamas e Jihad Islâmica.

Enquanto o governo que o precedeu colaborou com os EUA na campanha contra o Taliban, em 2001, o seu governo está atacando sorrateiramente as tropas americanas no Iraque, financiando, armando e garantindo livre trânsito para líderes insurgentes como Muqtada al-Sadr e suas forças.

Há inúmeros relatos que ligam o seu governo com os esforços da Síria para desestabilizar o frágil governo do Líbano por meio da violência e do assassinato político.

Minha questão é esta: por que o senhor apóia organizações terroristas que continuam a golpear a paz e a democracia no Oriente Médio, destruindo vidas e a sociedade civil na região?

O general David Patraeus afirmou que armas fornecidas pelo Irã (…) estão contribuindo para a sofisticação de ataques, “que não seriam possíveis sem o apoio do Irã”. Muitos formados da Columbia e estudantes estão entre os bravos militares que estão servindo ou serviram no Iraque e no Afeganistão. Eles, como outros americanos com filhos, filhas, pais, maridos e mulheres que estão em combate vêem, certamente, o seu governo como inimigo.

O senhor pode lhes dizer e a nós por que o Irã está lutando uma guerra que não é sua no Iraque, armando a milícia Shi’a, alvejando e matando tropas americanas?

Nesta semana, o Conselho de Segurança da ONU avalia ampliar as sanções [contra o Irã] pela terceira vez porque o seu governo se recusa a suspender o programa de enriquecimento de Urânio(…)Por que o seu país se recusa a aderir ao padrão internacional de verificação de armas nucleares, em desafio a acordo que o senhor fez com a agência nuclear das Nações Unidas? E por que o senhor escolheu fazer o seu próprio povo vítima dos efeitos das sanções internacionais, ameaçando fazer o mundo mergulhar na aniquilação nuclear?

Deixe-me encerrar com este comentário. Francamente, com toda sinceridade, senhor presidente, eu duvido que o senhor tenha coragem intelectual de responder essas questões.(…)"

---
Diante do que está aí em cima, só há uma pergunta a ser feita: quem, no governo brasileiro, terá a coragem de dizer algo semelhante a Ahmadinejad no próximo dia 23 de novembro? É claro que todos sabem a resposta. E ela me enche de vergonha.

Nenhum comentário: