domingo, novembro 29, 2009

Somos todos "meninos do MEP"


Na sexta-feira passada, dia 27/11, a Folha de S. Paulo publicou um artigo que deveria ser lido e refletido por todos. Principalmente pelos que irão se emocionar nos cinemas diante da hagiografia lacrimosa do Apedeuta dirigida por Fábio Barreto.

Intitulado "Os Filhos do Brasil", o texto de César Queiroz Benjamin, um esquerdista histórico (foi um dos fundadores do PT), é um dos golpes mais duros já assestados no culto à personalidade lulista. A ser verdade o que está lá escrito, trata-se de uma das revelações mais escabrosas sobre um dos mais escabrosos fenômenos de marketing da História brasileira.

No texto, César, conhecido como "Cesinha", relata sua experiência como preso político da ditadura militar, com a idade de apenas 17 anos. Ele recorda a dureza da vida na prisão, e como os carcereiros o atiraram para ser "usado" pelos presos comuns. Ele se emociona ao dizer que, embora sozinho e indefeso, os demais detentos - assaltantes, homicidas e demais delinqüentes - não lhe tocaram num fio de cabelo; pelo contrário: foram até solidários com ele, mostrando nobreza quando deles se esperava nada mais do que um comportamento bestial.

Salto no tempo. Estamos em 1994, na segunda campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. César Queiroz Benjamin é então um dos coordenadores da campanha do candidato petista. Em um almoço em São Paulo, estão ele, Lula, um marqueteiro norte-americano e outras pessoas. Ocorre então o seguinte diálogo:

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso na frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta".

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que já vivi. Enquanto ouvia a narrativa de nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

César Queiroz Benjamin prossegue em suas lembranças, prestando uma homenagem aos autênticos filhos do Brasil, como aqueles que estiveram presos com ele e que se portaram com a maior dignidade ou, pelo menos, com humanidade e decência. Diz não saber quem seria o tal "menino do MEP" (sigla de "Movimento de Emancipação do Proletariado"), lembrando apenas que o homem que diz que o atacou é hoje presidente da República, é conciliador e, dizem, faz um bom governo, tendo alcançado projeção internacional. Deseja-lhe boa sorte, para o bem do Brasil, e espera que ele tenha melhorado com o tempo.

No final, César diz que não pretende assistir a "Lula, o filho do Brasil", que, como ele diz, "exala o mau cheiro das mistificações". "Li nos jornais que o filme mostra cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar, rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à personalidade, tenta esconder."

Alguém poderia supor que relutei antes de escrever esse texto. Que o que está transcrito aí em cima é uma baixaria e um assunto puramente privado. Nada disso. Não hesitei um só momento em comentar o assunto aqui. Baixaria, é claro que é. Mas não é, de modo algum, uma questão privada. Dificilmente se poderia imaginar metáfora melhor para descrever quem é Lula e o lulismo, e sua relação com os brasileiros, do que o "menino do MEP". Questão privada, uma ova!

A reação do governo às revelações de César Queiroz Benjamin foi mais do que previsível. "Psicopata", foi a palavra usada pelo Planalto para descrevê-lo. "Triste e abatido", foi como o secretário de Lula, Gilberto Carvalho, descreveu seu chefe após este ter sabido do artigo no jornal em que é acusado de tentar molestar um colega de prisão. Estranhamente, porém, Lula disse que não vai processar César Queiroz Benjamin por esse ataque à sua honra.

Previsíveis também foram as palavras dos adeptos do lulo-petismo para proteger seu ídolo. O cineasta Silvio Tendler, um dos personagens não-identificados que presenciaram a conversa sobre o "menino do MEP", tentou pôr panos quentes, afirmando que tudo não passou de uma piada, da qual todos riram muito. É, pode ter sido mesmo... O senso de humor do Apedeuta, como sabemos, não costuma ser muito sutil, e suas tiradas, para citar apenas uma das mais recentes, incluem comparar o espancamento e assassinato de manifestantes iranianos a uma questão de vascaínos contra flamenguistas. Mas isso não diminui nem um pouco a gravidade da revelação. Muito pelo contrário.
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Fazer piada, se é que foi apenas piada, com o molestamento de um prisioneiro na cadeia é uma coisa assim que, como direi?, deveria provocar não gargalhadas, mas engulhos e ânsia de vômito. Quando ex-presos políticos dizem que sofreram abusos sexuais nas mãos de torturadores quando estavam na cadeia, deve-se encarar isso também como piada? O que diriam os defensores dos direitos humanos se alguém dissesse que os relatos de prisioneiros sendo violentados e estuprados nas prisões do DOI-CODI não passaram de blague?

Os devotos do lulismo gostam de mostrar a prisão de Lula em 1980 como uma passagem especialmente heróica de sua biografia, ou, mais exatamente, como uma via-crúcis, o Martírio do Messias antes da Ascensão ao Céu. Agora se sabe, pela pena de um esquerdista de grosso calibre, que o comportamento de Lula na prisão não se distinguiu da do mais vulgar e reles bandido. Ou melhor, distinguiu-se, sim: César Benjamin afirma que, quando esteve preso, os bandidos comuns o respeitaram. Bem diferente de Lula com o "menino do MEP".

O artigo de César Queiroz Benjamin veio em boa hora. Quando um filme que endeusa a personalidade de Lula está prestes a estrear nos cinemas, mostrando uma versão edulcorada de sua biografia, talvez seja útil lembrar do "menino do MEP". Aí, quem sabe, aqueles que assistirão ao filme se darão conta de que o "menino do MEP" são todos eles. Pior: o "menino do MEP" somos todos nós, presos com Lula em uma cela do DOPS.

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