quinta-feira, novembro 26, 2009

TODO TOTALITÁRIO É UM CÃO


Na foto, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e o carniceiro de La Cabaña (Havana, 1960): atração dos intelectuais pelo mal é antiga
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No catálogo das frases mais infelizes já ditas na História, certamente uma que merece especial destaque saiu dos lábios do filósofo francês Jean-Paul Sartre, em um dia na década de 50 do século passado. Disse o pai do existencialismo: "Todo anticomunista é um cão".
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A frase ecoou para a posteridade, ferindo até hoje os ouvidos e a alma de quem pensa. Dita por quem a disse, em plena Rive Gauche parisiense, logo adquiriu o status de decreto pontifício, verdadeiro dogma do pensamento esquerdista mundial. Sartre, o sumo-sacerdote das letras engajadas na segunda metade do século XX, dirigia seu anátema desumanizador a outro escritor, o também francês e também Nobel de Literatura Albert Camus, que em livros como O Homem Revoltado teve a ousadia de se levantar contra o totalitarismo soviético. Em lugar de condenar este último, Sartre dizia coisas como a que segue, ao voltar de uma viagem a Moscou, em 1954:

A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Lá por volta de 1960, antes de 1965, se a França continuar estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso.

As palavras acima foram pronunciadas apenas um ano depois da morte de Stálin, e dois anos antes do famoso relatório em que Nikita Krushev rasgou pela primeira vez o véu do culto da personalidade do ditador morto e deu início à "desestalinização" - um primeiro passo rumo a uma tentativa de liberalizar o regime comunista, que na verdade nunca se realizou, e que, quando foi tentada, em meados dos anos 80, levou à sua implosão. Em plena época stalinista, portanto. É a prova de que Sartre era realmente um homem de visão: sem falar na censura e na repressão política, que ele solenemente ignorava, o nível de vida na URSS, bem como em todos os países do bloco comunista, jamais alcançou o dos países democráticos ocidentais como sua França natal. Dez anos depois da queda do muro de Berlim, a Rússia, antiga URSS, luta a duras penas para se livrar do legado comunista na economia, não tendo ainda, porém, conseguido se desvanecer totalmente de sua nefasta herança política, como mostram os desmandos do ex-agente da KGB Vladimir Putin e sua camarilha no poder.

O entusiasmo de Sartre pelo totalitarismo comunista realmente não tinha limites. Em 1960, ele esteve em Cuba, ainda não oficialmente um regime marxista-leninista (mas já em plena marcha para o comunismo), onde se encontrou, embevecido, com Fidel Castro e Che Guevara. Na ocasião, ele escreveu um livro - Furacão sobre Cuba - em que se derrama em elogios aos revolucionários barbudos e à sua "revolução romântica". Posteriormente, ele chegaria a declarar que Che Guevara era "o homem mais completo do século XX". Hoje, a revolução romântica dos barbudos cubanos é uma das tiranias mais longevas de todos os tempos, que mantém uma população inteira prisioneira na ilha caribenha, desprovida de liberdade e até de papel higiênico. Quanto a Che Guevara, ele não passa, hoje, de uma estampa de camiseta ou de personagem de filmes que, para manter viva a lenda, espertamente depuram sua biografia das centenas de fuzilamentos sumários que ele comandou na ilha-presídio, transformada em sinônimo de atraso e opressão.

Ao dizer que "todo anticomunista é um cão", Sartre estava falando não somente por ele, mas por toda uma época: o fascínio por uma ideologia que deixou um passivo de 100 milhões de mortos no século XX foi - e, desgraçadamente, continua a ser - uma característica comum a muitos intelectuais no Ocidente, que parecem nutrir uma verdadeira atração pelo mal e pelo suicídio. Mesmo com a revelação dos crimes stalinistas, a partir de 1956, e, mais recentemente, com o fim do "socialismo real" em 1991, a condenação total e sem ambigüidades do comunismo, seja como "idéia" ou como regime político, permanece um tabu para muita gente. A idéia subjacente é que todo anticomunista é um reacionário, um extremista de direita, um obscurantista, um fascista ou um nazista - enfim, um inimigo da humanidade. Nesse sentido, é permitido não ser comunista; pode-se ser "simpatizante" ou "companheiro de viagem", mas não - nunca, jamais - anticomunista. Antifascista, antinazista, sim; anticomunista, não - ser anticomunista é colocar-se contra as forças do progresso e da democracia, esta é a idéia por trás da frase de Sartre.

Tão entranhada está essa concepção na psique ocidental, e sobretudo latino-americana (e, sobretudo, brasileira), que serão necessárias décadas para que ela dê lugar à razão e à verdade. Por mais que se prove que a identificação do anticomunismo com o fascismo ou com o reacionarismo é uma farsa, fruto da ignorância ou da má-fé ideológica; por mais que se deixe claro que comunismo e nazismo têm mais em comum entre si do que com o liberalismo; por mais que se mostre, com fatos e argumentos irrefutáveis, que é o liberalismo, e não o marxismo-leninismo, o oposto do nazi-fascismo - nada disso parece suficiente para abalar a fé supersticiosa de muitos nas supostas virtudes redentoras e humanistas do comunismo, seja em sua versão soviética ou em reedições como a "revolução bolivariana" e o "socialismo do século XXI" chavistas. Isso porque, como demonstram as palavras de Sartre ao se referir à URSS e à Cuba, não se trata de algo racional.

Vendo em retrospecto, é fácil perguntar: o que levou um homem como Sartre, talvez o mais incensado intelectual dos últimos cem anos - quando veio ao Brasil, em 1960, a intelectualidade brasileira chegou a disputar a tapa o privilégio de servir-lhe de escarradeira, como escreveu Nelson Rodrigues -, que era mesmo tido como sinônimo de intelectual, a dizer tamanho disparate? A resposta, em parte, está na ignorância - à época, 1954, não se conheciam ainda as dimensões da tragédia stalinista -, mas somente em parte: ao contrário de Camus, Sartre não abandonou sua militância esquerdista, de fato ele radicalizou-a até morrer, cego e ideologicamente gagá, em 1980. Em todos esses anos, a noção de que "todo anticomunista é um cão" não deixou de estar presente em sua atuação política, que foi bastante intensa (ele saiu às ruas com os estudantes franceses em 68, fez rasgados elogios a Mao Tsé-tung e chegou a justificar abertamente o terrorismo anarquista do Grupo Baader-Meinhof na Alemanha, entre outras barbaridades). O que me permite deduzir que a crença no comunismo, ou, no caso de Sartre, a condenação absurda do anticomunismo, só pode decorrer de uma aflição do espírito, de uma visão realmente míope da realidade. Algo que não se cura com fatos e lógica. Algo que, melhor dizendo, talvez nem tenha cura.

Esse mal que aflige muitos intelectuais foi perfeitamente diagnosticado por pensadores conservadores, como os franceses Raymond Aron (O Ópio dos Intelectuais, publicado em 1955) e Jean-François Revel (A Grande Parada). Trata-se de uma doença, eu diria mesmo mental, que Mario Vargas Llosa, analisando o caso de amor que outro escritor influente, o colombiano Gabriel García Márquez, tem até hoje pela ditadura castrista de Cuba, classificou acertadamente como "delirium totalitarium". García Márquez, aliás, é a prova de que Sartre não estava sozinho em suas fantasias: escrevendo em 1974, ele chegou a profetizar, como fez Sartre em relação à URSS, que em 25 anos Cuba estaria entre as grandes potências econômicas do mundo, com um nível de vida superior ao dos EUA...

Sartre, é claro, não foi o único a traduzir sua devoção ao comunismo em termos peremptórios. Antes e depois dele, muitos outros fizeram e fazem o mesmo. Um dos comentários mais tristemente famosos sobre a URSS foi feito em 1921, pelo jornalista norte-americano Lincoln Steffens, após uma visita ao país: "Eu vi o futuro e ele funciona", declarou o repórter. Nas décadas seguintes, esse tipo de comentário infeliz seria repetido à exaustão por uma legião de intelectuais ocidentais sobre outros países comunistas, como a China (Edgar Snow) ou Cuba (C. Wright Mills, Leo Huberman, Paul Sweezy etc.). E hoje, é repetido por muitos advogados do antiamericanismo que fecham os olhos voluntariamente para os perigos do terrorismo islamita, como Noam Chomski, Tariq Ali, Ignácio Ramonet e Eduardo Galeano. No Brasil, sempre a reboque das modas intelectuais européias e norte-americanas, autores como Caio Prado Jr. (O Mundo do Socialismo) e até Jorge Amado (O Mundo da Paz, O Cavaleiro da Esperança) pagaram tributo ao culto do comunismo soviético. Sem falar nos emires sáderes da vida que infestam as universidades.

Hoje, quando se vêem tantos intelectuais e pseudo-intelectuais de miolo mole repetindo as mesmas platitudes sobre Cuba ou a Venezuela de Hugo Chávez, é impossível não lembrar de Sartre e de sua frase inacreditável. Principalmente quando tantos acreditam que denunciar o comunismo, hoje, é chutar cachorro morto. É mais uma manifestação do espírito que deu origem à declaração de Sartre: os comunistas podem não ser os democratas que diziam ser, mas bater neles depois da queda do Muro seria covardia, pois eles são merecedores mais de pena do que de repúdio, coitados, são uns bichinhos fofinhos, tadinhos... Ou seja: até na derrota eles mereceriam um tratamento diferenciado. Como se as mesmas idéias que geraram 100 milhões de mortos no século que passou não estivessem sendo defendidas hoje e não devessem ser combatidas.

Fico imaginando o que diria a intelligentsia nacional e estrangeira diante de um filósofo que dissesse, com toda a certeza, que "todo antifascista é um cão". Seria apedrejado em praça pública, certamente, e com razão. Pois Jean-Paul Sartre não disse algo muito diferente disso. A diferença, nesse caso, é que os crimes do comunismo serão sempre vistos como necessários e justificáveis para construir um novo mundo e um novo homem. Pelo menos, até que todos se convençam que não existe ditadura benigna, nem totalitarismo humanista. Nem todo anticomunista é um democrata, é verdade. Mas todo comunista é totalitário. E todo defensor do totalitarismo é um cão e merece o desprezo da humanidade.


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