Em 9 de novembro de 1989, eu estava em casa assistindo à televisão quando vi uma cena que, já se tornou um clichê afirmar, mudou o mundo. Em tom sensacional, os repórteres da Rede Globo informavam que o maior símbolo da Guerra Fria entre EUA e URSS, entre capitalismo e socialismo, chegava ao fim. Uma multidão, composta principalmente de gente jovem, pela primeira vez podia cruzar sem impedimentos a fronteira entre as duas Alemanhas - a Ocidental e a Oriental -, celebrando com música e champagne e derrubando animadamente com golpes de picaretas o Muro de Berlim, o Muro da Vergonha.
Aquele foi um momento que, somente agora, exatamente duas décadas depois, eu posso analizar com frieza e tranqüilidade. Em 1989, eu tinha pouco menos de quinze anos de idade, espinhas no rosto, ainda estava no segundo grau e não sabia absolutamente nada da vida. Ironicamente, foi naquele mesmo ano que, enjoado das bobagens da moda naturais à adolescência - e que me parecem, vendo em retrospectiva, tolices inofensivas, até saudáveis -, eu descobri o marxismo.
Como recém batizado nas teses de Marx e Lênin, que eu digeria de forma apressada e com crescente arrogância, eu encarei aquela cena das pessoas pulando e dançando em cima do Muro que dividiu o mundo por 28 anos com outros olhos. Divergindo radicalmente do que repetiam os comentaristas da época, eu não vi na queda do Muro - nem na reunificação da Alemanha, um ano depois, nem no fim da URSS, em 1991 - nada a se comemorar: pelo contrário, tendo sido apresentado, naquele mesmo ano, às teses comunistas, sobretudo ao trotskismo, construí em minha mente a teoria de que o colapso do "socialismo real" nada mais era do que uma "vitória do capitalismo" patrocinada pelos próprios regimes comunistas - que eu enxergava, como dizia Trotsky, como "Estados operários burocraticamente degenerados", traidores do "verdadeiro" socialismo. Com o tempo, refinei essa minha visão, e cheguei à conclusão - totalmente absurda, mas lembrem: eu não via o mundo pelo prisma da racionalidade - que a queda do Muro de Berlim foi, ao contrário, um passo em direção ao... socialismo! Teria sido uma "revolução popular antiburocrática" que, infelizmente, por não contar com uma liderança revolucionária conseqüente - o Santo Graal dos marxistas -, não levou à implantação da ditadura do proletariado e do "verdadeiro" socialismo. Era assim que eu pensava à época.
Quanta ingenuidade! Quanta pretensão! Acima de tudo: quanta ilusão e auto-engano... Foram necessários alguns anos ainda e muito murro em ponta de faca até que eu percebesse que todo o discurso trotskista sobre revolução e socialismo não difere no essencial dos velhos dogmas stalinistas que produziram o Muro, e que o papo sobre "revolução antiburocrática" não passava de mera racionalização da derrota. Que o Muro, erguido não somente para impedir a fuga dos alemães-orientais para o lado ocidental, mas sobretudo para separar duas visões de mundo, duas concepções diametralmente opostas sobre a natureza humana, era a prova cabal e concreta (literalmente) da falência e da enorme impostura que foi o marxismo - o maior engodo intelectual da História.
Hoje, faz vinte anos que o Muro caiu. Mas, por estas latitudes, a coisa não tem sido bem assim. Naquele mesmo ano de 1989, ocorreram as eleições presidenciais no Brasil - as primeiras eleições diretas para presidente da República desde 1960. Um dos candidatos, que terminaria em segundo lugar, é o atual ocupante da cadeira presidencial. Na época, ele não tinha ainda recebido o banho de loja e de marketing que lhe permitiu ser eleito, reeleito e louvado como "estadista": era o então "sapo barbudo", que assustava a classe média e os empresários com suas teses socialistas e socializantes. Certamente para sua própria sorte, ele perdeu a disputa no segundo turno das eleições para um mauricinho filho das oligarquias mais atrasadas do Nordeste, mas que se dizia o legítimo representante da modernidade na política (hoje os dois andam juntos e são amigos de infância, o que mostra que eram mesmo a vanguarda do atraso).
Os fatos ocorridos no Leste Europeu naquele ano certamente influenciaram bastante o resultado das urnas por aqui. Tanto que, mal encerradas as eleições, o candidato derrotado uniu-se a seu ídolo de longa data, o ditador cubano Fidel Castro, e fundou com este, já no ano seguinte, uma organização semi-clandestina, o Foro de São Paulo, com o objetivo expresso de unir todos os movimentos revolucionários do continente para "restaurar na América Latina o que se perdeu no Leste Europeu". Com isso, Lula, o PT e Fidel Castro, de fato, salvaram a causa comunista no continente, enquanto esta virava sorvete no resto do mundo.
O resultado da criação dessa organização - que foi, incrivelmente, ignorada durante quinze anos pela grande imprensa nacional e estrangeira - se faz sentir hoje com toda a força. A ditadura comunista de Cuba, para a qual se preparava o velório em 1990, continua viva, graças ao petróleo de outro membro do Foro, o coronel Hugo Chávez da Venezuela. Além desta, Bolívia, Equador, Paraguai, Nicarágua e El Salvador já caíram sob o controle da esquerda comunista, aqui rebatizada de bolivariana. E Lula, co-fundador do Foro, é o presidente do Brasil.
O comunismo pode ter virado pó no Leste Europeu e existir como caricatura em países como a China ou o Vietnã, ou como um exotismo em Cuba ou na Coréia do Norte, mas é inegável que, na América Latina, ele continua firme e forte nos corações e mentes - e também em vários governos. O Foro de São Paulo, cuja simples existência era, até pouco tempo atrás, questionada por intelectuais "sérios" como um delírio paranóico de pensadores direitistas como Olavo de Carvalho, é uma realidade inegável. O próprio Lula admitiu, em discurso em 2005 (logo retirado do site da Presidência da República) que o papel do Foro é intervir clandestinamente nos assuntos dos países da região, sem que isso pareça uma intervenção governamental - foi assim que o Brasil interveio na Venezuela para salvar o governo Chávez de uma greve geral, em 2003, e Chávez, Lula e Daniel Ortega intervieram, juntos, para repor o golpista bolivariano Manuel Zelaya ao poder em Honduras.
Assim como é impossível negar a existência do Foro de São Paulo, é impossível negar o apoio de governos semi-ditatoriais como o de Chávez aos narcoterroristas das FARC, aliás eles também membros do Foro, junto com o PT e outros delinqüentes como o MIR chileno. Assim como não dá para negar o patrocínio oficial, via remessa de recursos estatais, do governo Lula ao MST, o braço armado do PT (assunto até de CPI). Chávez, as FARC e o MST, assim como setores do PT, não querem outra coisa senão a destruição do capitalismo - ou, no caso do MST, do "agronegócio" - e sua substituição por um Estado marxista, pela ditadura do proletariado, apenas com outro nome e outras formas (o que é o "socialismo do século XXI" senão o velho comunismo repaginado?). Aqui, o comunismo ainda é reverenciado, e os comunistas, por terem sido perseguidos no passado, são tidos na conta de democratas, o que é uma estupidez total, fruto da mais crassa ignorância. Em outras palavras: o Muro de Berlim, por essas bandas, permanece em pé, invisível, logo mais difícil de derrubar. Não foi por acaso que um dos ídolos dos idiotas latino-americanos, Noam Chomski, disse que a América Latina é hoje o continente politicamente mais estimulante que existe: esta é um cemitério de idéias.
Nenhuma avaliação sobre o mundo após a queda do Muro de Berlim e o "fim do comunismo" estará completa sem levar em conta que o comunismo não é um Estado, não é um regime político: é uma idéia. E idéias, diferentemente de muros, não são feitas de tijolos, mas de slogans, de chavões que, repetidos à exaustão por gerações, implantam-se no cérebro e mudam de forma, mas não de conteúdo. É precisamente isso o que se verifica hoje em dia, com a onda bolivariana que ameaça engolir a América Latina. A idéia comunista, antes mesmo de 1989, já vinha modificando-se, mudando de forma: a tomada do poder pela revolução violenta, um dogma desde a Revolução Russa de 1917, já estava sendo substituída, gradativamente, desde pelo menos a década de 30, pela idéia do assalto pacífico ao poder e pela mudança "a partir de cima" das estruturas. Cada vez mais, sobretudo a partir da década de 60, a autoridade da URSS e dos demais Estados socialistas era contestada pela própria esquerda radical, sobretudo pela New Left, que, conjugando marxismo com psicanálise, passou a encarar a revolução como um processo eminentemente de mudança de mentalidade, antes de ser mudança de regime. No terreno cultural, principalmente, esse conceito - o conceito de "hegemonia" de Antonio Gramsci - ocupou os lugares mais destacados da intelectualidade ocidental, desembocando, no caso do Brasil, na criação do PT, no começo dos anos 80, após o fracasso do populismo reformista e da luta armada de inspiração castrista ou maoísta.
A chegada do PT ao poder em 2002 foi apenas uma etapa desse processo. Coerentes com a tática gramsciana de "conquistar espaços" e de dissimular os propósitos marxistas, assim como com a tática leninista de cooptar setores da burguesia (a NEP, Nova Política Econômica adotada na URSS, data de 1921), a burocracia lulo-petista não tem feito outra coisa senão minar as bases do Estado democrático de direito a partir de dentro, como um amarelão ideológico, ao mesmo tempo em que reafirma aos empresários as garantias de que seus negócios ficarão intocados. Em outras palavras: buscam usar a democracia para destruí-la, assim como fazem com o capitalismo. Enquanto isso, o governo Lula fortalece os sindicatos e forma uma ampla clientela, mediante a farta distribuição de verbas assistencialistas, preparando o bote nas instituições, e desenvolvendo uma política externa inteiramente determinada pelas resoluções do Foro de São Paulo. Ao mesmo tempo, as idéias estatizantes e reestatizantes, que pareciam adormecidas, reaparecem com vigor. Graças a uma tática que tem se mostrado eficiente, deixando desnorteada e estupefata a oposição, que, presa a um moralismo de madames, chafurda cada vez mais na impotência e na irrelevância. Centrando suas atenções nos intermináveis escândalos de corrupção do governo Lula, esta perde a oportunidade de desmascará-lo, tomando a árvore pelo bosque, ou o sintoma pela causa. O que foi o mensalão, assim como todos os escândalos de corrupção, anteriores ou posteriores, do governo Lula, senão um sintoma, e não a causa, da tática esquerdista de solapamento institucional para a destruição da democracia?
De nada adianta celebrar os vinte anos da queda do Muro de Berlim se, na própria casa, as idéias que o erigiram continuam firmes e fortes determinando os rumos da política e até da vida quotidiana. Outro dia vi em um jornal televisivo, não por coincidência de uma emissora aliada ao governo Lula, a seguinte enquete: "O mundo melhorou ou piorou depois da queda do Muro de Berlim? Sim ou não?" Ora, é o mesmo que perguntar se o mundo melhorou ou piorou depois da derrota do nazi-fascismo! São coisas assim que provam que o comunismo não morreu, apenas se finge de morto para assaltar o coveiro.
Somente quem é totalmente ignorante na história dos movimentos revolucionários e esquerdistas do século XX, assim como da teoria marxista em geral, pode dormir tranqüilo estando sob o tacão do governo Lula. O Muro de Berlim caiu há vinte anos. Por aqui, porém, ele continua de pé, e não dá mostras de que ruirá tão cedo. E nem nos damos conta. É que, diferentemente daquele, o Muro que nos cerca não é feito de tijolos ou de cimento, mas de mentiras, enganos e falsificações.
2 comentários:
Meu caro, as coisas não acontecem só com palavras. É preciso muito mais. E brasileiro não tem o perfil de quem faz acontecer. Aqui eles preferem futebol, praia e carnaval. E isso não leva a nada. Por isso eu não gosto de nada disso. Em especial futebol, porque é o exercicio de gozar com o pau do outro. Coisa de corno. Já viu um perdedor tocando flauta noutro? O nome já diz: "tocar flauta". Não te diz nada?
Sim, e daí?
Qual a relação desse comentário com o que está no texto?
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