domingo, março 02, 2008

É PRECISO ENTERRAR O MITO CASTRISTA - III


Faz uma semana que estou travando neste blog um interessante debate com meu conterrâneo, o filósofo Pablo Capistrano, sobre o tema "Fidel Castro". Nossas divergências podem ser sintetizadas no seguinte ponto: Pablo acha possível ter uma posição "neutra" ou "equilibrada" a respeito da ditadura castrista. Acredita, quero crer que sinceramente, numa solução de compromisso, num juste milieu, em relação ao ditador cubano. Eu, não.

Agora Pablo escreveu em seu website (http://www.pablocaspitrano.com.br/) um texto sobre o assunto, no qual me cita nominalmente, pelo que de antemão agradeço (ao contrário de muita gente, não tenho nenhum problema com isso, e acho mesmo que quem está na chuva, como dizia Mestre Vicente, é para se queimar). Vou pedir licença para mais uma vez transcrever aqui os principais trechos do texto dele, Pablo, em vermelho. Quando digo "principais trechos" me refiro, obviamente, às partes com as quais ainda temos divergências. Como sempre, meus comentários vêm em seguida:

Gustavo estranhou que eu buscasse uma atitude "equilibrada" em relação a Fidel. Segundo o que deixou explicito no Blog, isso significa que a única atitude possível em relação a figura de Fidel é a do desequilíbrio?

Respondendo: não, Pablo, o desequilíbrio não é "única atitude possível" em relação às tiranias. Não disse isso. Como você facilmente perceberá se reler meus textos sobre o assunto, aponto várias atitudes possíveis em relação à ditadura cubana. Uma delas é a apologia pura e simples, que eu condeno. Outra, é a crítica racional e baseada em argumentos, com a qual tento me perfilar. Outra, ainda, é a posição "imparcial" ou "isenta" (que eu prefiro chamar de "isentista", ou "nenhumladista"), que é a posição que eu critico, pelos motivos já apontados. Trata-se, portanto, de uma opção: apoiar a tirania, combatê-la ou manter-se "neutro" - o que, a meu ver, significa compactuar com o regime totalitário, pois é só disso que ele precisa para sobreviver: a "neutralidade" do mundo em relação a seus desmandos. Claro, também se pode simplesmente não dar a mínima para esse assunto e ir cuidar da própria vida - o que tem o mesmo efeito, a meu ver, da última opção.

Você está me perguntando se tomar uma posição claramente contrária à ditadura de Fidel Castro é uma atitude desequilibrada? Respondo: sim, claro que é uma atitude desequilibrada. Não escondo isso, nem vejo por que fazê-lo. Afinal, trata-se de uma opção - contra ou a favor da tirania castrista - clara e sem ambigüidades. Do mesmo modo, era um desequilíbrio perfilar-se contra os regimes totalitários nazista e comunista (do qual o de Fidel é uma variante). Um desequilíbrio louvável e necessário, bem diferente da omissão ou da neutralidade envergonhada, contra a opressão e a favor da democracia e da liberdade - a favor, enfim, da humanidade.

Não sei, acho que os desequilíbrios tanto para a direita quanto para a esquerda, são particularmente os mesmos.

Em termos. Se você considera a mesma e única coisa colocar-se radicalmente contra as ditaduras de Fidel e de Pinochet - como eu me coloco -, então, sim, você pode dizer que essa atitude é igualmente desequilibrada. Mas não é isso que se verifica nas análises ditas "neutras" da tirania castrista. Se você diz que os desequilíbrios tanto para a direita quanto para a esquerda são particularmente os mesmos, então o mínimo que se deve esperar é que os equilíbrios também sejam, não é mesmo? Para ser mais claro, vou dar um exemplo, que já mencionei em meu último texto: a atitude hoje considerada a única racional e moral em relação ao nazismo ou às ditaduras militares latino-americanas é uma so: condenação total, sem contemporizações (no que, aliás, estou de pleno acordo). Ninguém, pelo menos ninguém que não queira passar por condescendente com a barbárie, dar-se-ia ao luxo de uma postura "neutra" quanto aos crimes desses regimes. Creio que nisso estamos de pleno acordo. Mas por que, quando se trata da ditadura cubana, mesmo sabendo-se que esta constitui uma tirania muito mais feroz (pois, entre outras coisas, matou muito mais gente do que a ditadura Médici ou Pinochet), deve-se ter uma atitude diferente, "equilibrada"? Por que condenar veementemente a ditadura nazista ou a de Pinochet é um dever moral, e fazer o mesmo com a de Fidel Castro é um "desequilíbrio"? De acordo com esse raciocínio - "é preciso ter uma atitude equilibrada" etc. -, alguém poderia perfeitamente defender uma postura "imparcial" em relação à ditadura chilena, por exemplo. Você consegue ver alguém fazendo isso, hoje em dia, sem ser linchado pelas patrulhas esquerdistas? Isso não seria uma forma clara de double standard? Você ainda me deve uma resposta.

Minha impressão, no que diz respeito a Fidel, é que exigem que você participe de uma das torcidas organizadas (os pró ou os contra) como se toda a discussão política da contemporaneidade fosse em se posicionar a favor do capitalismo liberal de mercado ou a favor do comunismo radical de estado. Parece que há uma síndrome da guerra fria, certo espectro de 1964 pairando pelo ar. Quando vejo gente discutindo com tanto fervor sobre comunismo, capitalismo, esquerda, direita, URSS e EUA, chego a pensar:

Será o Benidito, ou o "Reis do Yê Yê Yê" vai voltar ao cartaz no moviecom?.

Essa é uma questão interessante. De fato, a Guerra Fria já passou faz tempo, mas algumas questões - como a de Cuba - permanecem atreladas à lógica daqueles tempos. Mais especificamente, há uma forte tendência, inclusive entre os "isentistas", de enxergar a questão cubana com as lentes do antiamericanismo. Você mesmo, Pablo, que afirma defender uma atitude "equilibrada" em relação à Fidel, parece ter caído nessa armadilha, quando, ao se referir em seu primeiro texto à questão dos direitos humanos em Cuba, preferiu apontar a sua munição para o que os marines americanos fazem com os prisioneiros árabes ou afegãos em Guantánamo, reproduzindo, assim, a propaganda castrista (enquanto isso, há umas duas centenas de Guantánamos em Cuba, mas ninguém parece dar a menor pelota pra isso). É curioso como, sempre que alguém critica o regime de Havana pela falta de liberdade e pelas violações aos direitos humanos, aponta-se o dedo para a Casa Branca. Por que não se vê ninguém defendendo um tratamento igualmente "equilibrado" quando se fala dos EUA? Fidel Castro, esperto como só ele, sabe muito bem disso, e utiliza esse tipo de argumentação diversionista há décadas. Sim, há uma síndrome da Guerra Fria, e podemos identificá-la em algo que persiste entre nós: o antiamericanismo, que nos faz procurar pêlo em ovo na hiperpotência e impede de ver o óbvio, ou seja, que o regime castrista é um anacronismo, tal como o iê-iê-iê ou a brilhantina. Por isso mesmo, deve ser denunciado, e não tratado com simpatia ou condescendência disfarçada de "neutralidade" ou "equilíbrio".

Para mim uma discussão polarizada e radical desse tipo, que separa os absolutamente destros com os absolutamente canhotos é redutora, anacrônica, típica do século XX. Esconde o fato de que o mundo não se divide mais em duas opções políticas dicotomizadas como na época da guerra fria e que a complexidade das relações internacionais exigem análises mais sutis e equilibradas porque as coisas não são mais simples como na série Guerra nas Estrelas. Hoje é difícil saber aonde está o lado negro da força e quando a gente não encontra com exatidão o lado negro, também não tem muita certeza aonde é que fica o lado branco.

Concordo com a primeira parte desse seu parágrafo, mas não com a última frase. Sim, uma discussão sobre uma tirania comandada há 49 anos por um ditador homicida e mentiroso não pode ser outra coisa que não redutora e anacrônica. Pelo motivo extremamente simples de que tal regime é um anacronismo, que precisa ser erradicado num mundo que se pretende globalizado, em nome de algo que, ao contrário desse regime, está longe de ser anacrônico: a liberdade. Daí porque, em minha opinião, pedir "equilíbrio" ou "sutileza" quando se trata de um regime desse tipo, na linha "bom legado/mal legado", ou "para uns, um ditador; para outros, um benfeitor", não passa de uma forma de preservar o anacronismo, como já está sobejamente demonstrado. Por mais complexo que seja o mundo - e ele sempre foi, e sempre será -, e por mais difícil que seja adotar em algumas questões uma posição maniqueísta, algumas coisas mantêm uma certa simplicidade. A diferença entre democracia e ditadura é uma delas. A meu ver, é exatamente essa a questão que está em jogo em Cuba hoje. E é por isso que "equilíbrio", aqui, não é sinônimo de não tomar posição a favor de nenhum lado, mas, sim, de beneficiar o lado do poder, o lado da tirania, o lado de Fidel.

Há uma lógica clássica no discurso de "sim" e "não" sobre Fidel. Um resquício de um modelo de pensamento redutor, dicotomizado, longe, muito longe das complexidades do pensamento e dos fenômenos humanos. Esse tipo de postura traz algumas armadilhas: primeiro enxergar só duas possibilidades contraditórias (URSS ? EUA / Stalin ? Kennedy) exclui das possibilidades do pensamento qualquer outro modelo que não se alinhe diretamente com as duas correntes iluministas que nascem do século XVIII (liberalismo ? socialismo).

È como se só isso existisse e se as experiências chinesas (mercado capitalista de Estado e política comunista) ou suecas (proteção social e política liberal) não fossem possíveis. Segundo: satanizar Fidel é uma forma tão eficaz de manter vivo o mito da revolução cubana, quando exaltá-lo.

Aqui temos um problema. Você se refere às experiências chinesa e sueca como alternativas possíveis à uma visão dicotômica e polarizada sobre Cuba. Se seu objetivo foi mostrar que é possível uma "terceira via" entre o modelo comunista cubano e o capitalismo liberal, pode ser que sua afirmação tenha algum sentido. Mas se você se referiu, com esses dois exemplos, à possibilidade de uma opção intermediária entre DEMOCRACIA e DITADURA, aí Pablo, infelizmente, sou obrigado a discordar mais uma vez de você. Para mim, essa é justamente a questão que se coloca para Cuba na atualidade. A China, mesmo adotando um modelo econômico híbrido, continua a ser um regime político totalitário, de partido único, assim como Cuba. A Suécia, com seu welfare state, é um país democrático. Logo, podemos utilizar esses mesmos exemplos para ilustrar a necessidade de uma escolha política no caso de Cuba (contra ou a favor da ditadura). Se o regime cubano adotar o "modelo chinês" - o que, para mim, é pouco provável -, ainda assim continuará a ser uma ditadura brutal e sanguinária, e não haverá motivo algum, a meu ver, para adotar outra atitude que não seja sua condenação.

Quanto a satanizar Fidel, creio que já respondi a essa questão. Mas vou lembrar um pouco o que já escrevi: é impossível satanizar o que a própria realidade se encarrega de denunciar todos os dias, na forma de 2 milhões de refugiados, por exemplo.

Achar que Cuba é um inferno na terra é tão mitológico quando pensar que lá é o paraíso perdido. Neste sentido a única forma de desconstruir o mito de Fidel é se afastando da visão exaltada do militante político, do romantismo do poeta, da obrigatoriedade profissional do jornalista e tentar flertar um pouco mais com essa frieza sem sal do filósofo.

Não sei como deve ser o inferno - aliás, nem em inferno acredito, assim como não acredito em paraíso, anjos, demônios, boitatá e mãe d'água -, mas sei uma coisa: viver (se é esse o termo adequado) num país que já foi próspero e que hoje tem uma renda per capita no continente somente superior a do Haiti; centenas de presos políticos; fuzilamentos; sem eleições livres; com partido único; imprensa totalmente censurada; libreta de racionamento; carência de praticamente tudo (menos para a corja no poder)... se isso não é inferno, deve aproximar-se bastante. Eu, particularmente, não gostaria de viver num lugar assim (aliás, deve ser por isso que tantos apologistas da tirania castrista, como Frei Betto, Chico Buarque e Oscar Niemeyer, preferem admirar Cuba de longe, no conforto de suas casas, a ter de enfrentar a rotina revolucionária da ilha...). Também não sei se teria uma visão tão "equilibrada" se acontecesse no Brasil o mesmo que houve em Cuba sob o Coma Andante... Em minha opinião, a única forma de desconstruir o mito castrista não é apelando para uma visão supostamente "neutra" ou "equilibrada" do tirano, na forma de uma pretensa "frieza" filosófica, o que serve apenas para diferenciar Fidel e colocá-lo num nível mais elevado do que outros tiranos da mesma laia. Pelo contrário, o único jeito de a humanidade se livrar de uma vez por todas desse Mussolini barbudo é adotando uma atitude honesta e radical em defesa da democracia, denunciando a maior farsa já ocorrida na história da América Latina.

É em horas como essa, em que o tiranossauro do Caribe dá sinais de que em breve vai bater as botas, que eu lamento não ter religião e não acreditar em inferno. Pelo menos eu saberia o que está reservado ao Coma Andante no além-túmulo. Lá, ele certamente ficaria desapontado, pois o "comandante" é outro.
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Afirmo e repito: não acredito ser possível manter uma atitude "neutra" e "equilibrada" em relação à tirania de Fidel Castro sem beneficiá-lo. Do mesmo modo que não creio na possibilidade de ser "neutro" e "equilibrado" em relação às tiranias de Hitler, Stálin, Pinochet ou Mao Tsé-tung. Buscar o "equilíbrio", aqui, é apenas fazer o jogo desses ditadores. Não se pode ser "neutro" em relação a eles sem compactuar com o crime e a mentira.

Porque a razão quando aparece de vez em quando nos prega peças, mas quando ela some, com certeza só cria monstros.

Exatamente. No caso de Cuba, o sono da razão produziu monstros, como na famosa gravura de Goya. O maior deles chama-se Fidel Castro. É graças ao sumiço da razão, que impede as pessoas de diferenciarem a verdade da mentira, o bem do mal, que até hoje ele se mantém no poder, aproveitando-se da ingenuidade - e do "equilíbrio" - de tantos incautos. Ao contrário destes, prefiro acreditar que um pato é um pato, e um cachorro é um cachorro.
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Adiós, Fidel. Que a terra lhe seja pesada.

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