Estou fazendo um curso de aperfeiçoamento no Itamaraty e, por isso, posso passar alguns dias sem postar textos aqui. Mesmo assim, não posso evitar escrever alguma coisa sobre a entrevista do nosso Chanceler Celso Amorim no programa Roda Viva da TV Cultura, transmitida ontem.
Já escrevi sobre a política externa brasileira e sobre seu maior operador, e não quero ficar repetitivo. Vou me restringir apenas a comentar o que todos que assistiram ao programa viram. Celso Amorim, um diplomata extremamente qualificado, foi sabatinado durante duas horas por um painel de jornalistas e estudiosos sobre praticamente todos os principais temas da agenda da política externa brasileira: Reforma do Conselho de Segurança da ONU, Haiti, o caso dos brasileiros deportados da Espanha... Até aí, cumpriu seu papel. Do lado dos entrevistadores, Eliane Cantanhêde, de quem já falei aqui, derramou-se em elogios à diplomacia brasileira, indagando se o Itamaraty continuaria a ser "pragmático, discreto e eficaz". A nota dissonante foi o professor Demétrio Magnoli. Talvez por não ser jornalista, nem diplomata (escreverei sobre isso mais adiante), ele não ocultou suas opiniões e foi direto ao ponto: indagou sobre a posição brasileira em relação à ditadura de Cuba, que o governo brasileiro insiste em cortejar apesar de tudo. Celso Amorim tentou desconversar, puxou para um lado, puxou para outro, tentando esquivar-se de questão tão espinhosa. Magnoli insistiu, como cidadão brasileiro, e inclusive citando a Constituição Federal, que estabelece o compromisso do Estado brasileiro com a democracia e com os direitos humanos. Mais uma vez Celso Amorim tentou mudar de assunto, sentindo-se claramente incomodado. Finalmente, diante da insistência de Magnoli, nosso Chanceler preferiu encerrar a discussão, queixando-se da "intransigência" do entrevistador. Não estava ali para debater o regime cubano. Ponto final. Algo bastante transigente e moderado, como se vê.
É esse tipo de atitude que me enche de perplexidade em relação à atual política externa levada a cabo pelo atual governo brasileiro. Celso Amorim, como disse antes, é um diplomata dos mais respeitados, e quero crer que não teria chegado aonde chegou se não fosse um profissional competente. Por que então essa recusa em tratar de frente um tema como Cuba, tentando rotular como "intransigente" quem ousar levantar essa questão? Demétrio Magnoli poderia ter ido mais além, falando dos laços do governo Lula com o Foro de São Paulo, por exemplo, o qual inclui os narcoterroristas das FARC e cujo operador brasileiro é Marco Aurélio Garcia, assessor especial da presidência para assuntos internacionais e virtual ghost-chancellor do Brasil, mas não o fez. Preferiu concentrar-se na questão de Cuba, em que o Brasil mantém-se aferrado à posição de não chamar a ditadura de ditadura. Não acredito que Celso Amorim seja despreparado para tratar de temas como esse. Também reluto em crer que ele tenha se tornado um acólito do lulo-petismo, do mesmo tipo que um Marco Aurélio "Top, Top, Top" Garcia. Teria sido abduzido pela nave-mãe lulo-petista?
A postura esquerdista, na forma de terceiromundismo e antiamericanismo, é algo que salta aos olhos no Itamaraty. Percebi isso desde o primeiro dia em que entrei para a carreira. Não é de hoje, desse governo - trata-se de uma posição, digamos assim, histórica da Casa, já adotada nos governos militares (veja-se, por exemplo, o "Pragmatismo Responsável" do governo Geisel). Conversando com alguns embaixadores mais antigos, esse tipo de posição fica claríssima. Ela perpassou a diplomacia de vários governos anteriores, inclusive o de FHC. Sob o reinado dos lulo-petistas, tal pensamento se exacerbou, ressuscitando velhos sonhos de "Brasil Potência" alimentados na época da ditadura dos generais e da "política externa independente" do período Jânio Quadros-João Goulart. Conceitos ultrapassados como "centro" e "periferia", típicos da "teoria da dependência" dos anos 50 e 60, hoje dão o tom nas análises das relações internacionais saídas da Casa de Rio Branco. Além disso, a velha obsessão "social", de caráter ideológica, também se faz sentir atualmente, na forma, por exemplo, de um extremamente duvidoso programa de affirmative action que privilegia os candidatos considerados "afro-descendentes" no concurso de admissão à carreira de diplomata - uma irônica concessão ao imperialismo cultural norte-americano, sem dúvida influenciada pela onda de "ativismo negro" que ganhou força nesse governo. Paralelamente, fez-se uma reforma nos critérios do concurso de admissão que retirou a língua inglesa como matéria eliminatória. Um golpe no imperialismo ianque, sem dúvida.
Não consigo entender esse novo-velho rumo dado ao Itamaraty sob o governo Lula senão como uma mistura de complexo de inferioridade em relação às "grandes potências" e de consciência pesada das elites brancas e instruídas em relação aos pobres e "excluídos". Junte-se a isso uma boa dose de ideologia esquerdista e de militância partidária, e se terá uma idéia mais ou menos clara do que estou falando. O resultado disso é que, em temas cabeludos como Cuba ou a recente crise triangular Equador-Colômbia-Venezuela, há uma espécie de dualidade, com a existência de um discurso "oficial" - burocrático, anódino, quase cifrado em sua proposital obscuridade - e de outro, "oficioso" - claramente condenatório dos EUA e favorável à ditadura cubana, entre outras coisas (a "neutralidade" do Brasil em relação às FARC, tão alardeada por Marco Aurélio Garcia, que se recusa a enxergá-las como grupo terrorista, é um bom exemplo disso). Enfim, uma espécie de doublethink e de newspeak orwellianos.
Essa ambigüidade proposital encontra o terreno ideal para manifestar-se e desenvolver-se no próprio ofício de diplomata. Talvez os funcionários mais qualificados do serviço público brasileiro, os diplomatas não são, porém, muito chegados a um debate. Estão muito preocupados com outras prioridades, como a própria carreira, para se engalfinharem em polêmicas. Ter uma opinião, sobretudo uma opinião discordante sobre a orientação política dominante no Ministério, é geralmente considerado um passaporte para o fracasso na carreira. Outros valores, como a hierarquia, costumam ser mais levados em conta. Sempre lamentei isso, e confesso que é algo que não me deixa nada à vontade, mas compreendo e até aceito, como parte do jogo. Acabei de ter uma mostra disso, pois a primeira palestra do curso que estou fazendo foi proferida pelo secretário-geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Ao final, foi aberto espaço para que os presentes fizessem perguntas. Ninguém se habilitou. O número dois do Itamaraty comentou, então, com bom humor: "deduzo que ou vocês concordaram com tudo o que eu disse - o que ele mesmo reconheceu ser algo bastante difícil -, ou, então, discordaram de tudo e, nesse caso, não fazem perguntas por cautela".
Esse excesso de cautela me incomoda. No caso das perguntas de Demétrio Magnoli a Celso Amorim sobre Cuba, fico pensando até que ponto isso seria cautela ou cumplicidade. Afinal, uma das frases mais famosas de Talleyrand era que a linguagem foi criada para que os homens dissimulem seu pensamento. Nisso, convenhamos, os diplomatas são craques.
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