terça-feira, março 18, 2008

ABAIXO A UTOPIA!


Há palavras que, de tão usadas e repetidas, acabam se entranhando de tal forma em nosso vocabulário e em nossa psique coletiva, a ponto de perderem completamente qualquer resquício de seu significado original, metamorfoseando-se em algo totalmente diferente. É o caso, por exemplo, da palavra utopia.

Todos os dias escutamos alguém falar, em um tom ao mesmo tempo melancólico e urgente, na necessidade de "resgatar a utopia". Como se "utopia" fosse sinônimo de algo intrinsecamente bom e desejável, a exemplo do que ocorre com outras palavras, como "paz" e "esperança". É algo que se tornou corrente sobretudo após o colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu e da própria URSS, no fim dos anos 80, começo dos 90. Mas o que seria isso, exatamente? Qual seu significado?

O leitor atento perceberá facilmente do que estou falando: a utopia em questão é, nada mais, nada menos, do que o comunismo. Como realidade, sabemos todos, o comunismo foi um fracasso total. Isso até os militantes mais empedernidos são forçados a admitir. Mais que isso: foi uma tragédia humana sem precedentes, que deixou um saldo de mais de 100 milhões de mortos em pouco mais de setenta anos - o que o torna a ideologia mais genocida da história da humanidade (isso muitos ainda se recusam a admitir, mas pouco a pouco as viseiras ideológicas vão caindo e a realidade, que não costuma respeitar nossos desejos, vai-se impondo como o sol da manhã). Seu legado, onde quer que tenha sido instaurado, não foi outro senão de opressão e miséria. Mesmo assim, e isso até hoje surpreende a muitos, o comunismo sobrevive, não mais como realidade, mas como "ideal". E, não um ideal qualquer, mas "o" ideal, a síntese de todos os princípios considerados éticos e justos produzidos pelo humanismo, como o bem comum, o compromisso com a coletividade e o desprendimento material - até mesmo a preocupação ecológica -, em contraposição aos valores associados ao capitalismo, como o consumismo, o egoísmo, a alienação individual etc. E, como "ideal" devotadamente cultuado, ele se mostra hoje bastante persuasivo, mesmo após quase vinte anos de sua débâcle no mundo real. Daí o slogan repetido ad nauseam pelos sacerdotes desse culto secular - professores universitários, intelectuais, artistas, religiosos, políticos e jornalistas -: é preciso "resgatar a utopia".

Será? Deve-se mesmo restaurar esse "ideal" que pariu uma montanha de cadáveres? Tenho minhas dúvidas. Aliás, não as tenho: afirmo categoricamente que não, não se deve investir nessa ilusão. O motivo, além dos 100 milhões de mortos no Gulag soviético ou no Laogai chinês, sem falar no paredón cubano, é que o comunismo, como ideal e como realidade, não foi apenas uma ilusão. Não foi simplesmente um sonho que não deu certo. Como afirma Jean-François Revel, comentando um livro de François Furet sobre o assunto (Le Passé d'une Ilusion), uma ilusão pode ser facilmente perdoada, é um erro de interpretação. Pode, inclusive, ter uma conotação positiva, sendo uma falha cognitiva, não de caráter. O comunismo, em vez disso, foi um crime contra a humanidade, como o nazismo. E um crime, ao contrário de uma ilusão, é algo deliberado, muito mais grave portanto.

Assim como a corrupção petista não é uma deturpação do legado petista original, mas a sua comprovação na prática, o totalitarismo comunista não foi uma aberração, um "desvio de rota" do caminho luminoso originalmente traçado por Marx e Engels (e mesmo antes, por Rousseau, Morus e Platão), o qual previa, entre outros coisas, o fim gradativo do Estado e a igualdade efetiva de todos - a sociedade comunista perfeita, sem classes sociais. Foi o resultado lógico e inevitável da aplicação prática dessa mesma utopia. Não um paradoxo, no sentido de uma idéia que degenerou em outra coisa, completamente diferente, mas o produto de sua própria efetivação. "Ah, mas o ideal é tão bonito..." Nunca é demais lembrar: foi em nome das utopias mais belas já engendradas pelo cérebro humano - a justiça social, a igualdade, e também a liberdade (vide Revolução Francesa) - que se produziram os piores crimes da História. Por seu caráter de ideologia autoproclamada como redentora da humanidade, o comunismo só poderia ter se manifestado na forma de uma gigantesca tentativa de engenharia social, a maior de todos os tempos, com resultados catastróficos, com uma casta privilegiada de burocratas autoimbuídos da missão messiânica de mudar a própria natureza humana. Evidentemente, todos aqueles que constituíssem obstáculo a esse projeto deveriam ser exterminados como baratas. Não é preciso ser nenhum gênio para concluir daí que, nesse processo, o homicídio político é inerente ao comunismo. Resgater a utopia? Não, obrigado.
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Mas quais são as causas da persistência desse "ideal", a ponto de se tornar um lugar-comum a proposta de "resgatá-lo", a despeito da própria realidade e da própria História? Por que, apesar do que o século XX demonstrou da forma mais trágica e sangrenta possível, ainda há quem insista nessa fantasia, mesmo sabendo de suas conseqüências desastrosas? Em outras palavras, por que o "ideal" resiste, apesar dos fatos?

Provavelmente a resposta para essa questão pertence muito mais ao campo da psicologia do que ao da sociologia ou da História. Entretanto, creio ser possível avançar algumas explicações nesse terreno. Uma provável explicação está na forma como os esquerdistas se apropriaram, nas últimas décadas, das disciplinas acadêmicas que tratam do imaginário coletivo, como a lingüística e a semiologia. Enquanto disciplinas que buscam dar soluções reais para problemas reais, como a economia e a ciência política, são dominadas por pensadores liberais, o campo da linguagem, dos símbolos e mitos tornou-se, desde há muito tempo, um feudo de autores vinculados à esquerda, como Noam Chomsky. Desse modo, livre das preocupações do mundo real, os esquerdistas podem continuar a dar vazão a suas fantasias, apresentadas sob um disfarce acadêmico. Daí a que essa transmutação da utopia - sua permanência, na verdade - se transfira para o terreno das artes, da literatura, do teatro, da mídia, do cinema e da TV - atingindo, portanto, todo o raio de alcance da chamada "comunicação de massa" -, é um pequeno pulo. Desse modo, enquanto os liberais estão ocupados com as questões do dia-a-dia, como o movimento das bolsas e o funcionamento da democracia, o caminho fica aberto e desimpedido para que as esquerdas mantenham seu predomínio ideológico sobre a sociedade - a "hegemonia", na acepção gramsciana do termo. Podem, assim, preservar seu culto do totalitarismo, que assume novas formas - "socialismo democrático", "socialismo ideal" etc. - nomes com os quais tentam, ao mesmo tempo, autoconsolar-se pela derrocada dos regimes comunistas e disfarçar a natureza intrinsecamente totalitária do "ideal".

É por isso que, sempre que vejo alguém falar em "resgatar a utopia", eu respondo na lata: Viva a realidade! Abaixo a utopia!

2 comentários:

Augusto Araújo disse...

Gustavo, eu escrevi 3 textos sobre o assunto (motivos do esquerdismo na academia) q ainda nao postei, vou ver se faço isso no fds e gostaria q vc lesse (te envio o link ou vc entra no blog)

vlw e abs!

Anônimo disse...

Ótimos argumentos, tristes, porém verdadeiras constatações... Mais um tiro no meu coração esquerdóide-moribundo. Não pude deixar de lembrar de uma grande tirada do Bob Fields:
"No meu dicionário, 'socialista' é o cara que alardeia intenções e dispensa resultados, adora ser generoso com o dinheiro alheio, e prega igualdade social, mas se considera mais igual que os outros..." Parabéns pelo blog!
Guilherme