Dez anos atrás, em 1998, eu estava na universidade, tinha pouco mais de vinte anos, vivia sem um tostão no bolso e ainda relutava em abandonar de vez minhas ilusões esquerdistas juvenis (quando a gente se apega a um brinquedo velho, é difícil largá-lo). Já não participava mais de nenhum grupo ou movimento de esquerda, mas ainda me considerava um simpatizante. Foi quando publiquei meu primeiro artigo, num jornal local de Natal. O assunto era a ordem de prisão na Inglaterra, naquele ano, do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, então um velho alquebrado, emitida por um juiz espanhol.
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A notícia exaltou os ânimos mundo afora, e foi exaustivamente comemorada pelos grupos de esquerda e defensores de direitos humanos no mundo todo, inclusive por mim. Seguindo a onda, meu artigo destoava de uma avaliação que então começava a ser feita, e que eu julgava por demais "direitista": se Pinochet estava sendo preso e execrado, por que não outros ditadores, como Fidel Castro? Por que não levar o líder cubano aos tribunais? Como, à epoca, eu ainda nutria certa simpatia pela Revolução Cubana, que continuava vendo com tintas gloriosas e não com as da realidade, achei essa tese absurda. O que tinha a ver Fidel com Pinochet?, escrevi, indignado. Afinal, eram dois regimes, o cubano e o chileno, diametralmente opostos do ponto de vista ideológico. Não fazia nenhum sentido, pensava, querer colocar os dois no mesmo banco dos réus etc. Além do mais, pensava, Pinochet era um canalha, um bandido, um criminoso, um assassino. Já Fidel... bem, Fidel era diferente.
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Hoje, arrependo-me amargamente de ter escrito isso. Peço a quem tiver o jornal com o artigo que o queime, o enterre, faça qualquer coisa - só não leve a sério o que escrevi. Eu estava errado. Completamente errado. Dolorosamente errado.
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O que eu não consegui enxergar em 1998? O óbvio, o simples, o que está na cara: Pinochet e Fidel Castro, ou Hitler e Stálin, ou Franco e Salazar, ou Idi Amin e Saddam Hussein, pertencem todos, sem exceção, ao mesmo clube político: o dos ditadores. Sem adjetivos ou justificações ideológicas. O que percebo hoje, com uma clareza tão cristalina que chega a me ofuscar os olhos? Que as tiranias, apesar das situações históricas diferentes, não diferem no fundamental, são essencialmente as mesmas. Enfim, que não há ditadores bons e maus. Há apenas ditadores. Ponto.
Por que fiz toda essa digressão meio autobiográfica? Porque ainda hoje vejo muita gente, principalmente na esquerda, com o mesmo tipo de pensamento que eu tinha uma década atrás. Ainda há uma forte resistência, não sei se psicológica, desses setores em reconhecer o que 2 milhões de cubanos já reconheceram desde 1959, e o que os 11 milhões que ainda vivem na ilha-prisão temem falar: que o regime político vigente desde então em Cuba, o único regime comunista do hemisfério ocidental, é uma ditadura cruel, um regime totalitário, e que seu dirigente máximo, Fidel Castro, é um ditador. E que ditaduras totalitárias não podem trazer nada de bom para a humanidade. Principalmente a cubana.
Durante décadas, a existência de ditaduras de direita na América Latina serviu de álibi para desconsiderar qualquer crítica ao regime castrista de Cuba, como mera propaganda imperialista. O mesmo ocorria quando alguém denunciava os expurgos políticos e o Gulag na ex-URSS: era só propaganda, dizia-se. Isso fez muita gente ficar voluntariamente cega para a realidade de Cuba, assim como ficou para a realidade do stalinismo. O que Fidel e seus companheiros fizeram na ilha caribenha não foi apenas a imposição de uma tirania que já dura quase cinqüenta anos: foi a destruição de um país inteiro. Isso fica claro para quem quiser ver pelos números da repressão. Os admiradores de Fidel geralmente se opõem a qualquer tipo de comparação entre as quantidades de mortos pela ditadura cubana e por outras ditaduras. Não se opõem, porém, a citar à exaustão o número de vítimas de regimes de direita. Gostam de lembrar que a ditadura de Pinochet no Chile deixou um saldo de 3 mil mortos, mais milhares de pessoas torturadas, exiladas etc. Gostam, também, de lembrar e prantear os 424 mortos pela repressão política no Brasil entre 1964 e 1985 - 424 mortos em 21 anos de ditadura militar -, o que já gerou uma verdadeira indústria de indenizações milionárias. Mas, quando o assunto é Cuba... Ninguém, nas hostes esquerdistas, ousa recordar os 95 mil mortos pelo regime castrista (17 mil fuzilados, 78 mil afogados tentando fugir do país), num país de 11 milhões de habitantes (o Brasil, somente para termos de comparação, tem 190 milhões, o que torna a ditadura cubana no mínimo umas trezentas vezes mais assassina do que a brasileira, e umas cem vezes mais do que a chilena). Ninguém se importa com isso. Em defesa do regime de Havana, costuma-se utilizar todo tipo de argumento. Os mais cegos, ou mais fanatizados, simplesmente negam que Cuba seja uma ditadura, defendendo o regime castrista com unhas e dentes. Outros, querendo aparentar moderação, se recusam a tomar partido, dizendo-se "neutros" em relação à ditadura cubana. Curiosamente, a mesma "neutralidade" não se repete quando a ditadura em questão é a de Pinochet. Por que será?
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Antes que venha algum militante pró-Fidel repetir, pela milionésima vez, que esse tipo de comparação é uma forma de justificar as mortes no Chile de Pinochet ou as torturas no DOI-CODI durante o regime militar brasileiro, faço questão de deixar claro: não justifica, não! A montanha de cadáveres produzidos pela ditadura cubana, assim como as 100 milhões de mortes causadas pelo comunismo no século XX - 75 milhões só na China, o maior morticínio verificado na História - não justificam um simples tapa ou cascudo dado por um meganha da repressão num preso político no Brasil ou no Chile. Não se trata de uma competição para saber quem matou mais, como se fosse preciso fazer esse tipo de concorrência - até porque os regimes comunistas ganham de lavada -, mas de colocar as coisas em seu devido lugar. O fato de lembrar que Cuba é uma ditadura, e uma ditadura muito mais brutal e sanguinária, sob qualquer ponto de vista, do que qualquer regime militar latino-americano, não me torna automaticamente um defensor de Pinochet ou do general Médici. A questão é a seguinte: se esses últimos comandaram tiranias e promoveram matanças, devem ser denunciados. Se outro regime também matou, deve ser denunciado também. E se o regime em pauta é o de Cuba, que matou muito mais, deve ser denunciado de forma correspondente à gravidade de seus crimes.
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É isso que me distingue dos tocadores de tuba e tietes do tirano Fidel Castro, que existem às pencas por aí. É isso que muitos deles não conseguem entender: oponho-me a seus crimes, e nem por isso bato palmas para o que fizeram os brucutus brasileiros ou chilenos. É difícil para eles entenderem isso, pois o compromisso desse pessoal não é - nunca foi - com a democracia, palavra que para eles só existe como um valor instrumental, como um trampolim para atingir o "fim" almejado. Isso fica claro como água de nascente quando se analisa mais de perto dois dos governos que os militares latino-americanos derrubaram: o de Salvador Allende no Chile e o de João Goulart no Brasil. Conta a lenda dourada esquerdista que os governos Allende e Jango eram dois governos democráticos que só queriam fazer o bem para a sociedade. Até que, um belo dia, vieram os milicos malvados, instigados pela CIA e por um temor irracional do comunismo, e encerraram essa experiência democrática, instaurando em seu lugar um reino de terror.
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Desse conto-de-fadas, apenas a última frase é verdadeira. Nem o temor do comunismo era uma fantasia, nem os governos Allende e Goulart eram assim tão democráticos quanto se diz. No caso de Allende, que fora eleito com apenas 36% dos votos, esquece-se que, durante três anos (1970 a 1973), o país esteve dividido e em sobressalto por conta do objetivo proclamado do novo presidente de alcançar o "socialismo por via pacífica". Apesar desse lema, a esquerda chilena, capitaneada por seitas ultra-radicais como o Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), praticou nesse período diversos atentados e assassinatos. O país estava à beira da guerra civil. O presidente do Partido Socialista, ao qual Allende era filiado, Carlos Altamirano, dizia para quem quisesse ouvir que o Chile seria o "Vietnã da América Latina". Em visita ao Chile em 1971, que se estendeu por um mês, Fidel Castro foi recebido como um verdadeiro herói e chegou a recomendar a Allende que armasse os operários e tomasse todos os poderes em suas mãos. O ditador cubano presenteou o presidente chileno com vários fuzis AK-47, que seriam usados mais tarde pelos guarda-costas cubanos de Allende no cerco ao Palácio La Moneda - foi com um desses fuzis que um deles teria executado o próprio Allende, quando este deu sinais de que se renderia aos militares (isso é narrado por um ex-agente do serviço secreto cubano, Juan Vivès, no livro Cuba Nostra, do jornalista francês Alain Ammar, publicado em 2005). Quando Pinochet botou os tanques na rua, as bandeiras da democracia e da legalidade já haviam deixado de ter dono há muito tempo, a democracia já estava morta (ver o artigo de Jean-François Revel: http://s.huet.free.fr/kairos/aletheia/jfrev4.htm).
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O mesmo no caso do Brasil. A afirmação de Luiz Carlos Prestes às vésperas do golpe de 64, de que "nós (os comunistas) já estamos no governo; só não estamos, ainda, no poder", não foi mera bravata. Era uma realidade. Embora não fosse, ele mesmo, comunista - era, na verdade, um típico pelego nascido e criado na incumbadora do getulismo gaúcho, populista e demagógico -, é inegável que o governo de João Goulart se encaminhava, sob o manto aparentemente anódino das reformas de base, para algum tipo de regime ditatorial socialista, ou, pelo menos, sindicalista. Quem diz isso não é nenhum agente da CIA, não é nenhum prócer da UDN e admirador de Carlos Lacerda - é um veterano militante comunista, Jacob Gorender, que em seu livro Combate nas Trevas reconhece que o Brasil se encontrava, então, em uma "situação pré-revolucionária". O mesmo afirma Elio Gaspari em sua série de quatro livros sobre a ditadura militar no Brasil. Assim como ocorreu no Chile nove anos depois, no Brasil de 1964 a democracia já estava ferida de morte quando os militares a sepultaram.
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Isso justifica os golpes militares que ocorreram nesses países? Mais uma vez: não, não justifica. Mas também não pode ser ignorado. Não se quisermos realmente ter uma visão completa, e não enviesada, sobre esse processo. Assim como não é possível ignorar que o regime militar de Pinochet no Chile deixou como legado um país relativamente ajustado do ponto de vista econômico, graças às reformas liberais dos "Chicago Boys" nos anos 70, o que se traduz atualmente am altos índices de crescimento e inclusão social. O Chile hoje é a democracia mais próspera da América Latina, ao ponto de se dar ao luxo de ter uma presidente mulher - e de esquerda (o que não é nenhuma vantagem, vá lá, mas mostra que há tempos os chilenos deixaram a mentalidade da Guerra Fria para trás). Em Cuba, ao contrário, a revolução, teoricamente feita em nome da igualdade e da justiça social, transformou o país, que tinha a 3a renda per capita da América Latina nos anos 50, e inclusive ostentatava altos níveis de desenvolvimento na área social, numa ruína, detentora do 29. lugar nesse quesito - ganha apenas do Haiti. Sem falar do mais importante: a ditadura do Chile, iniciada em 1973, deixou de existir há dezoito anos, em 1990. A de Fidel... bom, a de Fidel se arrasta há 49 anos, nem dá qualquer sinal de que vai terminar um dia (a menos que se considere a "renúncia" fajuta do Coma Andante como o começo de uma transição séria). Pode-se dizer que, na luta para conter o comunismo na América Latina, os governos militares da região cometeram sérios abusos. No caso de Cuba, o próprio regime é um abuso. E ainda tem quem o defenda, usando os crimes dos militares como desculpa...
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Enfim, esta é a diferença entre mim e os adoradores do Coma Andante. Ou, parafraseando Trotsky, esta é a diferença entre a minha moral e a deles: eles acreditam que há ditaduras boas e ditaduras más, e que as boas são de esquerda, e as más, de direita. Eu acredito que ditadura é ditadura. Eles condenam Pinochet. Eu também. Eles babam por Fidel. Eu, não.
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