Todos os dias escutamos alguém falar, em um tom ao mesmo tempo melancólico e urgente, na necessidade de "resgatar a utopia". Como se "utopia" fosse sinônimo de algo intrinsecamente bom e desejável, a exemplo do que ocorre com outras palavras, como "paz" e "esperança". É algo que se tornou corrente sobretudo após o colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu e da própria URSS, no fim dos anos 80, começo dos 90. Mas o que seria isso, exatamente? Qual seu significado?
O leitor atento perceberá facilmente do que estou falando: a utopia em questão é, nada mais, nada menos, do que o comunismo. Como realidade, sabemos todos, o comunismo foi um fracasso total. Isso até os militantes mais empedernidos são forçados a admitir. Mais que isso: foi uma tragédia humana sem precedentes, que deixou um saldo de mais de 100 milhões de mortos em pouco mais de setenta anos - o que o torna a ideologia mais genocida da história da humanidade (isso muitos ainda se recusam a admitir, mas pouco a pouco as viseiras ideológicas vão caindo e a realidade, que não costuma respeitar nossos desejos, vai-se impondo como o sol da manhã). Seu legado, onde quer que tenha sido instaurado, não foi outro senão de opressão e miséria. Mesmo assim, e isso até hoje surpreende a muitos, o comunismo sobrevive, não mais como realidade, mas como "ideal". E, não um ideal qualquer, mas "o" ideal, a síntese de todos os princípios considerados éticos e justos produzidos pelo humanismo, como o bem comum, o compromisso com a coletividade e o desprendimento material - até mesmo a preocupação ecológica -, em contraposição aos valores associados ao capitalismo, como o consumismo, o egoísmo, a alienação individual etc. E, como "ideal" devotadamente cultuado, ele se mostra hoje bastante persuasivo, mesmo após quase vinte anos de sua débâcle no mundo real. Daí o slogan repetido ad nauseam pelos sacerdotes desse culto secular - professores universitários, intelectuais, artistas, religiosos, políticos e jornalistas -: é preciso "resgatar a utopia".
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Provavelmente a resposta para essa questão pertence muito mais ao campo da psicologia do que ao da sociologia ou da História. Entretanto, creio ser possível avançar algumas explicações nesse terreno. Uma provável explicação está na forma como os esquerdistas se apropriaram, nas últimas décadas, das disciplinas acadêmicas que tratam do imaginário coletivo, como a lingüística e a semiologia. Enquanto disciplinas que buscam dar soluções reais para problemas reais, como a economia e a ciência política, são dominadas por pensadores liberais, o campo da linguagem, dos símbolos e mitos tornou-se, desde há muito tempo, um feudo de autores vinculados à esquerda, como Noam Chomsky. Desse modo, livre das preocupações do mundo real, os esquerdistas podem continuar a dar vazão a suas fantasias, apresentadas sob um disfarce acadêmico. Daí a que essa transmutação da utopia - sua permanência, na verdade - se transfira para o terreno das artes, da literatura, do teatro, da mídia, do cinema e da TV - atingindo, portanto, todo o raio de alcance da chamada "comunicação de massa" -, é um pequeno pulo. Desse modo, enquanto os liberais estão ocupados com as questões do dia-a-dia, como o movimento das bolsas e o funcionamento da democracia, o caminho fica aberto e desimpedido para que as esquerdas mantenham seu predomínio ideológico sobre a sociedade - a "hegemonia", na acepção gramsciana do termo. Podem, assim, preservar seu culto do totalitarismo, que assume novas formas - "socialismo democrático", "socialismo ideal" etc. - nomes com os quais tentam, ao mesmo tempo, autoconsolar-se pela derrocada dos regimes comunistas e disfarçar a natureza intrinsecamente totalitária do "ideal".
É por isso que, sempre que vejo alguém falar em "resgatar a utopia", eu respondo na lata: Viva a realidade! Abaixo a utopia!
2 comentários:
Gustavo, eu escrevi 3 textos sobre o assunto (motivos do esquerdismo na academia) q ainda nao postei, vou ver se faço isso no fds e gostaria q vc lesse (te envio o link ou vc entra no blog)
vlw e abs!
Ótimos argumentos, tristes, porém verdadeiras constatações... Mais um tiro no meu coração esquerdóide-moribundo. Não pude deixar de lembrar de uma grande tirada do Bob Fields:
"No meu dicionário, 'socialista' é o cara que alardeia intenções e dispensa resultados, adora ser generoso com o dinheiro alheio, e prega igualdade social, mas se considera mais igual que os outros..." Parabéns pelo blog!
Guilherme
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