Os caçadores de conspirações estão de volta. Apareceu um sujeito no sul, preso por crimes comuns, dizendo-se ex-agente secreto da ditadura militar uruguaia (1973-1985), e afirmando ter provas de que o ex-presidente brasileiro João Goulart, o Jango, foi assassinado pelos órgãos de repressão política dos países do Cone Sul. No Congresso, já está rolando um pedido de CPI para apurar o caso. Os saudosistas da esquerda, que ainda têm Jango em alta conta, já começaram a se mexer, felizes por terem algo em que se agarrar, em meio a tantos escândalos.
Ai, ai. Sente-se cheiro de empulhação no ar... Não, não tenho nada contra investigações desse tipo. Aliás, pelo contrário: acho-as bem-vindas e necessárias. Não sei se Jango morreu de causas naturais ou se foi mesmo morto por algum sicário dos milicos, como estão dizendo. Não é impossível que tenha sido morto, assim como não é impossível que as mortes de Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, para citar outros líderes da oposição que morreram na mesma época, não tenham ocorrido exatamente da maneira como relata a História. Não é impossível, embora seja pouco provável, que essas mortes tenham alguma relação com a chamada Operação Condor, o plano secreto dos regimes militares da América do Sul para eliminar seus opositores no final dos anos 70. Jango, como se sabe, era cardíaco, e faleceu em 1976, ao que parece, por uma falha no consumo dos medicamentos que usava, que provavelmente foram trocados. Intencionalmente ou não, ninguém sabe. Além disso, os procedimentos post-mortem foram no mínimo apressados, com um laudo necroscópico repleto de falhas (oficialmente, sua causa mortis foi "enfermedad", escreveu o médico argentino que viu seu corpo). Tudo isso, a meu ver, deve ser investigado, até que não paire nenhuma dúvida sobre o caso. Mas a questão não é essa. A questão verdadeira, em meu ponto de vista, é que o resultado da investigação, se esta vier a ocorrer, já foi alcançado antes de esta ter começado. Em outras palavras: para todos os efeitos, independentemente de quais conclusões chegar a CPI, Jango foi uma vítima de uma conspiração, e ponto final.
Há muito mais por trás desse exercício mórbido de necrologia do que o simples e elementar desejo de descobrir a verdade. A verdade, para as esquerdas, é uma só: Jango foi assassinado pelos militares. Trata-se da única conclusão possível, para os sacerdotes da mitologia e do martirológio esquerdista. Não importa o que digam os resultados das investigações, sempre será aventada essa hipótese. A fabricação de mártires, de líderes elevados à quase-santidade depois de mortos em circunstâncias misteriosas, ou tornadas misteriosas diante da determinação de torná-los mártires e santos, é uma caracterítica inseparável do método esquerdista. É uma forma de compensar os defeitos dos personagens (no caso de Jango, inúmeros) e, também, de manter acesa a chama da "causa", seja lá o que isso for hoje em dia. Além disso, é uma maneira de reforçar o papel histórico preferido que as esquerdas, seja lá com que autoridade moral para tanto, auto-atribuíram-se: o de eternas vítimas dos lobos maus capitalistas (representados, nesse caso, pelos governos militares). Com isso, ao mesmo tempo em que posam de mártires e heróis, desviam a atenção de seus próprios esqueletos no armário, que não são poucos.
Para as esquerdas, a abertura de casos como o da morte de Jango só traz vantagens. Trata-se, afinal, de um investimento com retorno garantido. Isso porque, de acordo com uma visão há muito estabelecida como verdade irrefutável e artigo de fé, esquerdistas são sempre vítimas. Se um deles morre, ainda que tenha sido após cair e bater a cabeça no banheiro, é porque foi vítima de uma conspiração maléfica do imperialismo, ou que outro nome tenha o inimigo de plantão, que deixou cair o sabonete para que ele escorregasse. Pouco importa se a investigação comprova as suspeitas ou não. Feita a investigação, apurados os fatos, ouvidas as testemunhas, o resultado é de somenos importância. Se a investigação comprovar as suspeitas de morte não-acidental, ótimo, as esquerdas têm um mártir em suas mãos. Se, em vez disso, não se descobre nada, fica a suspeita. E é de suspeitas, de paranóias e mistificações, de vitimismos e complexos persecutórios, que vivem as esquerdas. As leis da natureza, ou o simples acaso, simplesmente não se aplicam a elas. As denúncias de corrupção contra os petralhas no governo hoje, por exemplo, só podem ser o produto de alguma conspiração golpista, não importa as provas. E por aí vai.
Outro fator que trabalha a favor da legenda áurea esquerdista é o inegável fascínio que as teorias da conspiração exercem sobre o cérebro humano. De fato, nas últimas décadas surgiu uma verdadeira indústria sobre o tema. Com o detalhe de que, em quase todos os casos, os suspeitos são sempre, invariavelmente, representantes da "direita", do establishment, do imperialismo, da CIA etc. Décadas de propaganda nos tornaram todos predispostos, psicológica e ideologicamente, a aceitar as teses mais estapafúrdias, desde que o culpado seja, claro, a direita. Vejam o caso mais famoso do mundo: o assassinato de John F. Kennedy, em 1963. Já surgiram as teorias mais descabeladas sobre o assunto, apontando para a CIA (sempre ela!), a máfia, o complexo industrial-militar, os exilados cubanos anticastristas de Miami, os brancos racistas do sul dos EUA etc. (só faltou o Mickey Mouse e o Pernalonga). Quase ninguém se contentou com a conclusão óbvia, ou seja, que o autor dos tiros foi Lee Harvey Oswald, um sujeito estranho ("ruim de mira", disseram), e com o fato de que todos os indícios apontavam para o envolvimento de Cuba e da URSS no caso, pois Oswald era membro de um grupo pró-Castro, exilara-se na URSS alguns anos antes e requerera, inclusive, sua entrada em Cuba semanas antes dos tiros em Dallas ("era um agente duplo, um provocador a soldo da CIA" etc.). Mas, como sabem todos os que já assistiram ao filme de Oliver Stone sobre o assunto, o culpado só poderia ser alguém na, ou com conexões com, a Casa Branca... Ou seja: havia fortes motivos para aventar a participação não da CIA, da máfia ou de quem quer que seja, mas de um governo estrangeiro - o de Cuba -, com o qual os EUA estavam em guerra, numa trama para assassinar o presidente dos EUA, mas mesmo assim preferiu-se a tese do "atirador isolado e desequilibrado", ou então do "complô-das-forças-direitistas-e-reacionárias-descontentes-com-a-política-progressista-de-Kennedy". Hum...
O mesmo padrão conspiracionista se verificou logo após os atentados de 11 de setembro de 2001. Quem não se lembra? Na ocasião, pipocaram teorias sobre quem teria sido o verdadeiro cérebro por trás dos ataques: a CIA (olha ela aí de novo!), as gigantes do petróleo norte-americano, Bush, o Mossad israelense... Só faltou dizer que foram os mesmos que mataram Odete Roittman e Salomão Ayala. Não faltou quem, como o renomado economista Celso Furtado, cogitou da possibilidade de ter sido o próprio governo estadunidense o autor da atrocidade. Quando ficou claro que os responsáveis pela tragédia foram fanáticos islâmicos, reunidos em torno de Osama Bin Laden, os conspiracionistas mudaram de tática: passaram a tentar justificar a morte de 3 mil pessoas como uma resposta legítima de um povo oprimido contra a opressão do imperialismo ocidental, ou como a revolta da criatura contra o criador... (ainda tenho vivos na memória os textos de Leonardo Boff e de Tariq Ali regozijando-se pela queda das Torres Gêmeas). Ou seja: culpe os EUA, nunca seus inimigos, esse é o caminho.
O afã dos esquerdopatas em acusar os EUA e o "neoliberalismo" por tudo de ruim que acontece no mundo, desde a morte de Jango até o aquecimento global e a falta de vergonha dos políticos, só tem paralelo com sua disposição em não falar dos crimes do comunismo. É claro que não estou sugerindo que recordemos dos podres de um lado e fechemos os olhos para os de outro, nada disso. Quem faz isso, e muito bem, são os esquerdistas, como estão comprovando os petralhas no caso dos cartões corporativos. Trata-se apenas de comparar. Enquanto existiu, a URSS foi responsável por alguns dos piores crimes já cometidos contra a humanidade, inclusive intervindo militarmente em outros países e assassinando líderes estrangeiros, como Jan Masaryk (atirado de uma janela por se opor ao golpe comunista na Tchecoslováquia, em 1948), Imre Nagy (fuzilado como responsável pela revolta húngara de 1956), Hafizullah Amin (metralhado por páraquedistas soviéticos durante a invasão do Afeganistão, em 1979), e tantos outros. Sem falar no apoio ao terrorismo internacional, em assassinatos de dissidentes exilados etc. O atentado ao papa João Paulo II em 1981, por exemplo, ao que parece, foi obra dos serviços secretos búlgaros, em conluio com a KGB. Um livro publicado em 2005 na França, Cuba Nostra, do jornalista Alain Ammar, afirma, com base no depoimento de um ex-espião cubano hoje exilado, que o presidente chileno Salvador Allende foi morto por seus próprios seguranças cubanos, no Palácio La Moneda, durante o golpe de estado de 11 de setembro de 1973, quando deu mostras de que se renderia aos militares. Mas quem se importa?
Tudo isso me dá o direito, creio eu, de desconfiar das "revelações" do suposto ex-araponga uruguaio sobre a morte de Jango. Principalmente quando acabo de ler que Hugo Chávez, o caudilho fanfarrão da Venezuela, declarou que quer exumar o cadáver de Simón Bolívar, que ele considera o "pai espiritual" de sua "revolução", para averiguar as "verdadeiras causas" de sua morte (supostamente, diz Chávez, por envenenamento). Chávez já disse várias vezes que o governo dos EUA planeja matá-lo. A se julgar pela forma como ele se apropriou da história de seu país para falsificá-la, e dos instrumentos da democracia para destruí-la, é de supor que ele é capaz de cometer suicídio somente para botar a culpa no Bush, ou de culpá-lo pela morte de Bolívar. Enquanto a História for vista como uma via de mão única, com os esquerdistas retratados sempre como vítimas e seus adversários, como cruéis vilões, seus fantasmas continuarão a nos assombrar.
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