quinta-feira, fevereiro 14, 2008

RELIGIÃO, UM ASSUNTO DISCUTÍVEL


Um ditado tão antigo quanto idiota afirma que política, religião e futebol não se discutem. Cansei de ouvir esse mantra na hora do jantar, quando estávamos todos reunidos à mesa, provavelmente como uma forma de garantir uma refeição em paz e em família. Quanto ao último assunto, não discordo nem concordo, pois nunca me senti compelido a alguma emocionante discussão sobre quem foi o maior craque, ou qual o melhor time, o Corinthians de Caicó ou o Flamengo de Teresina. Aliás, sempre achei que futebol e atividade intelectual, definitivamente, não combinam. Com relação aos dois outros temas, porém, sou obrigado a discordar radicalmente. Política e religião se discutem, sim. Religião, mais até do que política, e com muito mais necessidade. Principalmente nos dias atuais.

Um povo se define, entre outras coisas, pelos seus ditados. O transcrito acima quer dizer, resumidamente, o seguinte: nós, brasileiros, não gostamos de debates profundos e/ou que possam causar controvérsias; gostamos, isso sim, ou de jogar conversa fora ou de rasgar seda. Educados na tradição católica ibérica, que valoriza acima de tudo o consenso, a unanimidade, aprendemos desde cedo a fugir da polêmica como o diabo foge da cruz. Encaramos um debate como uma briga pessoal, ou um embate de egos, nada mais. Além disso, para debater é preciso pensar, ter idéias, e isso cansa, dá trabalho. Melhor seguir o rebanho.

Considero isso - a aversão ao debate, ao choque de idéias - um de nossos principais vícios de formação, uma de nossas maiores taras nacionais. Para contornarmos a discussão, estamos dispostos até a renunciar ao que pensamos, se pensamos, para não desagradarmos a fulano ou beltrano. Percebe-se ai o peso de outra tara nacional: a propensão a elogiar os superiores, o puxa-saquismo, a falta de caráter e de personalidade.
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Em nenhum outro assunto esse vício de formação se demonstra com tanta intensidade quanto na questão da religião. Em assuntos de fé, somos o povo mais politicamente correto do mundo. Daí minha cisma com os chamados religiosos "moderados". Ao contrário do que alguém poderia pensar, não sou anti-religioso, nem anticlerical. Sou tão anticatólico, por exemplo, quanto sou antiprotestante, anti-muçulmano ou anti-torcida do Botafogo. Ou seja: não sou nem contra nem a favor da religião. Sou apenas a favor do debate. Por isso só posso ser contra quando vejo que o caminho geralmente adotado pelos fiéis religiosos, quando diante da contestação a algum de seus dogmas, é simplesmente fugir à discussão, fechar-se em sua concha de certezas absolutas. Por exemplo: o debate sobre o Islã. Afinal, é uma religião que prega a violência ou não? Até o momento, a única coisa que eu vi seus defensores e até mesmo praticantes de outras crenças dizerem é que não, o Islã é uma religião de paz e tolerância, os atentados terroristas cometidos em seu nome não passam da obra de algumas mentes doentias, que apenas conspurcam o Islã. Em outras palavras: os atentados não têm nada a ver com a fé, e ponto final.

Toda vez que leio ou escuto argumento semelhante, fico com a sensação de que está faltando alguma coisa, de que estão querendo esconder algo importante. A questão não é se os lunáticos que se explodiram e levaram 3 mil pessoas junto em 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington estavam ou não agindo conforme a fé muçulmana, mas por que, se o Islã não tem nada a ver com o terrorismo islamita, não se vêem igualmente homens-bomba judeus ou protestantes, ou lamaístas? Por que são, quase sempre e exatamente, muçulmanos? Certo, a intolerância e o fanatismo não são exclusividade dos muçulmanos, há fanáticos e intolerantes em todas as religiões, e inclusive já escrevi sobre isso neste blog. Mas isso não responde a questão: por que, se o Islã é uma fé pacífica, quando se fala em terrorismo a primeira imagem que vem à mente, hoje em dia, é de um militante da Al Qaeda ou do Hizbollah, ou seja, de um muçulmano? Seria mera coincidência? Preconceito? Manipulação da mídia ocidental e cristã? Duvido muito.

Não pensem que sou inimigo dessa ou daquela fé em particular, nada disso. Nem tampouco que sou um adversário da fé em geral. Ter ou não ter fé, para mim, é uma questão individual, um direito. Como já disse, não tenho nada contra a religiosidade em si, motivo pelo qual me distinguo, por exemplo, dos marxistas, que querem abolir a religião por decreto (o que é a melhor maneira de reforçá-la, como mostra a História). Não tenho nada a ver com esse tipo de idiota. Mas nem por isso acho que a crença religiosa é algo inofensivo e sem conseqüências, como a crença infantil em Papai Noel ou no Coelho da Páscoa. O que me aborrece na discussão sobre religião, aliás como em tudo o mais, é a falta de honestidade. Do mesmo modo que sou a favor do debate, defendo a sinceridade total quando se trata desse assunto. Quero dizer o seguinte: fico bastante irritado quando vejo que a maioria dos que se dizem católicos, por exemplo, não sabem nada de sua fé. Isso fica claro em questões polêmicas como aborto, uso de preservativos e pesquisas com células-tronco. Agora mesmo surgiu um tal movimento "católicas pelo direito de decidir", que defende a liberalização do aborto. Ora, se são católicas, como podem defender o "direito de decidir" sobre esse assunto? Não lhes foi ensinado que abortar, para os cânones católicos, é um pecado seríssimo, um ato contra a vida, e que diante disso não cabe a ninguém "escolher", pois não é dado a ninguém que realmente acredita escolher pecar contra Deus ou não? E que isso é inegociável, como a infalibilidade papal e a virgindade de Maria? Assim como na questão dos preservativos e das células-tronco. Se querem ser a favor do aborto, tudo bem, não tenho nada contra. Aliás, acho mesmo que a decisão deve ser da mulher, e que o Vaticano está mesmo na contramão do progresso. Mas não me venham dizer que se pode conciliar o direito ao aborto com o catolicismo. Não me venham dizer que a Igreja deveria aceitar isso. Ao defenderem essa tese, as "católicas pelo direito de decidir" mostram-se tão anticatólicas quanto os ex-padres da auto-proclamada teologia da libertação, tão oportunistas quanto. Assim como estes, querem revogar 2 mil anos de história da Igreja Católica.

Das duas uma: ou as defensoras católicas do direito ao aborto não sabem o que estão dizendo, e, nesse caso, são ignorantes, ou sabem, e, nesse caso, não são católicas. É preciso escolher entre ser católico e ser a favor do aborto. Simples assim. E não me venham dizer que esta é um atitude autoritária e intolerante. Porque é claro que a fé é autoritária e intolerante, ora bolas. Ou vão dizer que não sabiam? Ou vão dizer que crer em Deus ou no Diabo, e nos santos, anjos, demônios, pecado original e outros dogmas do tipo é uma coisa lógica e racional? E, assim como é irracional, é uma escolha de cada um. Se ainda vivêssemos sob um Estado teocrático, em que todos fossem obrigados a seguir o credo oficial e todos os demais fossem reprimidos, como no Irã, eu diria que esta seria uma atitude autoritária e intolerante. Mas felizmente vivemos - pelo menos em teoria - num país onde o Estado é laico (ou seja: nem religioso, nem ateu), em que seguir essa ou aquela crença é uma decisão individual. Ninguém é obrigado a ser católico, assim como ninguém é obrigado a ser protestante, muçulmano, espírita, budista ou umbandista. Ou ateu. Do mesmo modo, todos devem ter o direito de se manifestar livremente em nome de sua crença. Outro dia o papa foi impedido de discursar numa universidade italiana. Achei um absurdo. Os estudantes e professores esquerdistas que lideraram o piquete contra Bento XVI tentaram justificar essa sua atitude alegando que as posições da Igreja sobre aborto, uso de contraceptivos, homossexualismo e pesquisas com células-tronco eram obscurantistas e retrógradas. Balela. Obscurantistas e retrógradas, as posições da Igreja sobre esses temas são mesmo. Mas Sua Santidade não iria ali para tentar impor suas crenças, mas apenas para discursar. Se discordavam do que ele iria dizer, é outra questão. Além do mais, se o convidado fosse um líder muçulmano, será que iriam tentar impedi-lo de falar?

Os que advogam a conciliação entre os valores cristãos e as exigências da modernidade, assim como os que afirmam que as ações da Al Qaeda não têm nada a ver com o Islã, mostram-se bem menos sinceros consigo mesmos do que os terroristas suicidas (aliás, suicidas nada: homicidas, mesmo). Estes pelo menos são coerentes com os preceitos da jihad, a guerra santa islâmica, que, ao contrário do que dizem por aí, não se restringe a uma luta espiritual interior, mas é uma guerra para valer, com sangue, morte e sofrimento. Entre a desonestidade relativista e politicamente correta, de um lado, e o integrismo dos fanáticos, de outro, fico na dúvida sobre qual é o mais nocivo para a humanidade.

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