O.k., o uso abusivo de cartões de crédito corporativos pela petralhada é um escândalo, o maior desde o mensalão. O.k., não se pode dar poder a esses petistas que eles já saem por aí aprontando a maior lambança com o dinheiro público. O.k., as tentativas do governo de - mais uma vez - "blindar" Lula e abafar o caso, tentando atirar lama nos adversários para desviar a atenção de todos, é de um cinismo atroz. O.k., o.k. Tudo isso já está claro como água ou como o céu de Brasília. Afinal, a coisa fede mesmo, e, se houvesse oposição de verdade no Brasil, já seria matéria suficiente para implodir o governo. Mas vou me permitir deixar esse assunto um pouco de lado para me concentrar no que considero um escândalo muito maior, muito mais tenebroso. Por mais escabroso, por mais grotesco que seja o caso dos cartões corporativos, é apenas um escândalo entre tantos, que provavelmente logo será ultrapassado por outro, e esquecido. O verdadeiro escândalo é outro, muito mais sério. Perto dele, as compras de Lula na padaria da esquina "em nome da segurança nacional" e a tapioca de Orlando Silva são fichinha. São nada mesmo. Nadinha. Uma merreca.
Refiro-me a algo sobre o qual venho escrevendo há algumas semanas, e sobre o qual continuarei escrevendo: o Foro de São Paulo. Insisto nesse assunto. Desculpem se pareço repetitivo. Perdoem-me se pareço meio obcecado e paranóico. Mas a coisa é séria. Muito séria mesmo. Arrisco-me a dizer que é o assunto mais sério a aparecer nos últimos quarenta anos na América Latina. Nada mais do que a maior ameaça à democracia no continente, desde então.
Dirá alguém que é exagero, que é muito barulho por nada. Que o Foro não é nada de mais, pois, afinal, o próprio nome diz: é um fórum de debates, onde os esquerdistas discutem suas bobagens, algo totalmente inofensivo etc., etc. Respondo, ou melhor, pergunto: onde já se viu um fórum de debates emitir resoluções ao final de suas reuniões? Onde já se viu uma resolução, aprovada unanimente, não ser uma diretriz para a ação política (e ação política envolvendo, vejam bem, o PT de Lula, o Partido Comunista Cubano de Fidel Castro, os narcobandoleiros das FARC e do ELN e os terroristas do MIR chileno, entre outros conhecidos democratas)? Lula já confessou publicamente que, entre outras coisas, manobrou junto ao Foro para garantir a vitória de Hugo Chávez no plebiscito de agosto de 2004 na Venezuela. Já admitiu em público que o Foro foi usado para intervir na política de um país vizinho. Fórum de debates inofensivo, uma pinóia.
Alguém dirá ainda: mas e daí que o tal Foro seja um espaço de articulação estratégica desses movimentos de esquerda, e que seu objetivo declarado seja recuperar na América Latina o comunismo, se o governo do Brasil, o governo de Lula da Silva, já deu mostras mais que suficientes de que não vai por esse caminho, que é, em vez disso, um governo da esquerda moderada, light, "vegetariana", "paz e amor", responsável e democrática? Um governo, enfim, que pode até fazer essa ou aquela concessão retórica aos radicais da esquerda carnívora, mas que está plenamente adaptado à democracia e à economia de mercado?
A isso respondo com uma pergunta: desde quando ter duas caras, cultuar a ambigüidade, mudando o discurso de acordo com a platéia, significa compromisso com a democracia e responsabilidade política? De fato, é só isso que Lula e o PT têm feito, desde a fundação do partido. Assim confundem e desnorteiam seus adversários. Lula recebe, num dia, Bush de braços abertos? Pois noutro dia lá está ele, tirando fotos com Fidel Castro. Discursa perante uma platéia de bem-vestidos empresários e presidentes no Forum Econômico Mundial em Davos? Pois faz o mesmo no Forum Social Mundial, para um multidão de radicalóides esquerdopatas, ou manda alguém em seu lugar. Para muitos incautos ou otimistas, isso é um sinal de moderação e pragmatismo político, uma prova de que Lula, enfim, é capaz de unir os dois pólos, pairando acima dos mesmos, e que o PT é o partido do juste milieu. Tola ilusão. Longe de significar responsabilidade e moderação, esse tipo de transmutação denota apenas falta de honestidade e oportunismo. Ao acender uma vela para Deus e outra para o Diabo, Lula não está agindo como um conciliador, como uma ponte entre dois extremos, mas, tal como o deus Jano, revela ter duas caras, dois discursos, duas agendas. Uma, oficial, a das entrevistas à imprensa e dos encontros com chefes de Estado e outra, clandestina. É aqui que entra precisamente o Foro de São Paulo, como um espaço em que Lula e Hugo Chávez, para não falar de Fidel e das FARC, possam tratar dos objetivos revolucionários do Foro, livres das amarras da política governamental.
Não sou eu que digo isso. É o próprio Lula. Em 2/7/2005, em discurso por ocasião da celebração do 15. aniversário do Foro de São Paulo, ao se referir à criação do "Grupo de Amigos da Venezuela", em 2003, ele disse que tal iniciativa "só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente. Quem está lembrado, o Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos (...) a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela".
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E mais:
"Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política. (...) Foi assim que nós assistimos a evolução política no nosso continente. "
Vêem agora por que o discurso das duas caras é inseparável da prática petista? Compreendem por que toda a propaganda em torno de Lula para torná-lo mais palatável à classe média e às elites não passa de uma estorinha da carochinha, um conto-de-fadas? Lula disse em Havana que condenava os seqüestros das FARC como arma política. Como, se ele e as FARC são parceiros no Foro? Como, se ele apóia a ditadura de Fidel Castro, que apóia as FARC, e que mantém cerca de 11 milhões de cubanos literalmente seqüestrados na ilha-prisão do Caribe? Não por acaso, Lula se definiu, um dia desses, como uma "metamorfose ambulante". É esse tipo de doublethink, de duplipensar, que está na base do pensamento e da ação do lulo-petismo: dizer sempre o contrário do que se faz; fazer o oposto do que se diz, a ponto de ser necessário um tradutor para entender o que Lula fala em seus discursos (e não somente por causa dos erros de português). Perceberam porque não se pode dar crédito à "conversão" política dos petralhas?
Dessa maneira, os companheiros petistas agem de forma realmente "dualética", como diz o Reinaldo Azevedo. Ou seja: com duas éticas, duas morais - uma, para consumo externo, para inglês ver, segundo a qual Lula é um governante sério e democrata exemplar, e o PT é o partido mais ético da história da humanidade; a outra, a verdadeira, é aquela que se expressa na prática política do governo e do partido, com o mensalão e os cartões corporativos.
Mas por que quase ninguém percebe isso, denunciando essa farsa monumental, a maior mentira na história "deste país"? Eu poderia arrolar centenas de motivos, mas o mais importante de todos, óbvio, é o controle hegemônico que a esquerda marxista e gramsciana exerce sobre a mídia. Claro, sou um paranóico, você deve estar pensando. Nesse caso, basta nos perguntarmos por que durante 18 anos a imprensa brasileira silenciou sobre o Foro de São Paulo, por exemplo. Impossível ter sido por falta de informação sobre o assunto, como qualquer um pode averiguar facilmente fazendo uma rápida busca no Google.
Há, também, causas circunstanciais. É inegável que, além de uma formidável máquina de propaganda ideológica a seu serviço, Lula teve, também, muita sorte. Sua ascensão política, aliás, foi o fruto de uma série de circunstâncias, quase do acaso. Nenhum petista irá jamais admitir, mas Lula é uma criatura da ditadura militar. Mais especificamente, do "cérebro" por trás do processo de distensão política do regime de 64, o general Golbery do Couto e Silva. O "bruxo", como era conhecido a eminência parda dos governos Geisel e Figueiredo, preparou o caminho para a espetacular ascensão de Lula, foi, na verdade, seu padrinho político, ao apostar na liderança do até aquele momento (fins dos anos 70) obscuro líder metalúrgico do ABC paulista para dividir ainda mais as esquerdas, em especial o MDB e o velho Partidão. Ao mesmo tempo, por meio de sua política da "panela de pressão", permitia que as esquerdas dominassem os ambientes artístico e acadêmico no Brasil, o que também teve reflexos no surgimento do fenômeno Lula. Nesse caso, Golbery cometeu um erro tremendo, entregando a cultura de bandeja nas mãos dos esquerdistas, que assim puderam conquistar, paulatinamente e por meio dos métodos gramscianos de propaganda, a hegemonia na mídia e nas artes, algo essencial ao mito lulista. No final da vida, Golbery, criador do SNI, o famigerado Serviço Nacional de Informações da ditadura militar, se arrependeria de sua mais famosa criação, dizendo que tinha criado "um monstro". Poderia ter dito o mesmo de Lula.
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Claro que haverá quem tente descartar tudo isso que escrevi acima como mera fantasia. Não se pode esperar outra coisa das esquerdas. Seu controle da opinião pública já está tão fortemente arraigado que qualquer análise que destoe de seu projeto hegemônico, desmascarando suas manobras ideológicas, é imediatamente tachada como coisa de lunáticos, ridicularizada como maluquice e nada mais. Também joga a seu favor o fato de que a maior parte da população brasileira, principalmente a classe média, não está muito interessada em saber das maquinações revolucionárias do Foro de São Paulo. Para a maioria dos brasileiros, essas são coisas obscuras, abstratas, impalpáveis, tal como o próprio Foro até pouco tempo atrás. Sua indignação volta-se mais facilmente para escândalos menores, como o dos cartões corporativos, diluindo-se num moralismo efêmero e sem conseqüências, que apenas espera estourar o próximo escândalo para se manifestar, recolhendo-se em seguida a um simples resmungo ou muxoxo.
De nada adianta culpar o incendiário por jogar uma bituca de cigarro na rua. Já disse e repito: enquanto não se ligar a roubalheira petista ao projeto ideológico continental de que o PT é parte integrante, só se fará enxugar gelo e ensacar fumaça. Podem me chamar de repetitivo. Podem me tachar de obcecado e paranóico. Prefiro isso a ser cego ou cúmplice de uma gigantesca mentira.
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