quarta-feira, fevereiro 20, 2008

REAÇÕES ABJETAS - II


Vocês têm acompanhado a cobertura da imprensa brasileira sobre a renúncia do tiranossauro Fidel Castro? Tirando uma ou outra coisa, grande parte poderia facilmente ser publicada no Granma, o jornal oficial do Partido Comunista Cubano. É sempre a mesma lengalenga sobre a "ambigüidade" de Fidel, uma figura-chave da História da América Latina no século XX e, ao mesmo tempo, um ditador que se perpetuou no poder e baniu as liberdades etc. e tal. É assim que tem se comportado a nossa imprensa chamada "isenta", que acredita ser possível manter-se "neutra" diante de um facínora e assassino em massa. A Folha de S. Paulo de hoje, 20 de fevereiro, por exemplo, publicou um artigo de Eliane Cantanhêde sobre o assunto (http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/elianecantanhede/ult681u374019.shtml). Como sempre faço quando leio algo do tipo, não resisti e fiz uns comentários, que seguem às frases da autora que mais me chamaram a atenção:

"Se Hugo Chávez é o maior e mais eficaz amigo de Cuba com seus petrodólares, Lula tem uma enorme vantagem sobre ele: além de aliado de Fidel e agora de Raul Castro, Lula mantém um diálogo maduro e próximo com os Estados Unidos. É assim com George W. Bush, certamente será assim com o sucessor --ou sucessora-- seja democrata, seja republicano".

De que "diálogo maduro e próximo" a autora está falando? Será que está se referindo ao mesmo presidente que já expulsou até um jornalista americano porque este teve a ousadia de comentar seus hábitos etílicos (mostrando também, com isso, todo seu amor à liberdade de imprensa, no que também se aproxima de seu ídolo Fidel Castro)? Ou, então, deve estar falando da política externa implementada pelo Itamaraty, uma mistura mal-ajambrada de megalomania terceiromundista e antiamericanismo de botequim que fez de tudo para ajudar a enterrar a ALCA, entre outras importantes conquistas da nacionalidade...

Eliane Cantanhêde pertence ao time dos analistas "sérios" que acreditam, sinceramente ou não, que o governo Lula é uma alternativa real à ditadura comunista de Fidel Castro ou ao caudilhismo populista de Hugo Chávez e Evo Morales. Certamente, não ouviu falar ainda do Foro de São Paulo ou, se já ouviu, faz-se de desentendida. Se olhasse a realidade mais de perto, perceberia que a aliança Lula-Fidel vai muito além de qualquer possibilidade - aliás, bastante remota - de "mediação" entre Cuba e os EUA. O objetivo de Lula não é mediar qualquer transição para a democracia na ilha: é garantir a sobrevivência da ditadura cubana.

"Como vão se comportar os "cubanos de Miami", que têm muito dinheiro e querem triturar todos os Castro com os próprios dentes? Os EUA, que empurraram Fidel para a órbita soviética e comunista, terão flexibilidade para abrir o diálogo e cancelar o embargo à ilha?"

A autora repete um dos estereótipos mais comuns sobre os opositores da ditadura castrista, que seriam todos gente endinheirada e que querem triturar Fidel e seu hermanito porque eles, afinal, tiveram a audácia de nacionalizar suas propriedades milionárias em nome da justiça social, vejam vocês... Basta olhar para o perfil médio dos exilados que se arriscam todos os dias em barcos improvisados tentando fugir da ilha-prisão para perceber que essa idéia é falsa. Outra coisa: não foram os EUA que "empurraram Fidel para a órbita soviética e comunista". Essa mentira, de tão repetida, já virou uma espécie de mantra, que até os inimigos de Fidel reproduzem. Já escrevi sobre isso antes neste blog, mas vou repetir: a comunização de Cuba não foi o resultado de nenhuma pressão externa dos EUA sobre Cuba. Foi Fidel, ansioso por poder, que manipulou a rivalidade entre as duas superpotências, os EUA e a URSS, para alijar os setores não-comunistas da Revolução Cubana e concentrar todos os poderes em suas mãos, instituindo sua ditadura pessoal. Vá estudar um pouco de História, Eliane Cantanhêde!

"Apesar disso [a fuga em massa de cubanos para o exílio], as análises confidenciais brasileiras, desde a época de FHC, são de que Fidel conseguiu manter expressivo apoio popular, sobrevivendo ao fim da União Soviética, à queda do Muro de Berlim e à crise econômica, que se tornou especialmente grave depois de 1995."

Sabe por que, apesar das dificuldades, Fidel "conseguiu manter expressivo apoio popular", Eliane? Porque conta com coisas como a G2, a polícia secreta, e os CDR, os Comitês de Defesa da Revolução, que mantêm controle total da sociedade cubana, por meio do terror absoluto. Porque não há nenhuma liberdade de expressão, a imprensa é completamente censurada, e qualquer um que ouse falar mal do tirano é jogado imediatamente no xadrez. Só por isso. Mas se você está mesmo interessada em saber se os cubanos amam mesmo o seu regime, então olhe para os milhares que fogem do paraíso socialista, votando com os remos.

"Fidel é o mito de gerações. Difundiu ideais de igualdade emocionantes que fizeram a cabeça de milhões mundo afora, enquanto determinou e conduziu uma prática política repressora das liberdades individuais que gerou oposição também em milhões mundo afora. Além de ter convivido com um embargo econômico cruel e inabalável durante décadas. Um embargo que derrubaria qualquer um, menos ele".

Poucas vezes vi tietagem tão explícita disfarçada de análise "séria". Vejamos quais foram os "ideais emocionantes" que o caudilho cubano difundiu: fuzilamentos, milhares de presos políticos, partido único no poder, ausência de todas as liberdades, paranóia e megalomania. Sem falar na destruição econômica da ilha, que ele transformou num porta-aviões da ex-URSS nas Américas. Emocionante, não? E os EUA ainda por cima impôem um "embargo econômico cruel" (pelo menos ela não falou em "bloqueio", já é alguma coisa) só pra prejudicar o Fidel, esse herói. Ah, esses gringos malvados e imperialistas... Mas ainda bem que Fidel é o "cara" e enfrenta os ianques. Como todos sabem, é só porque é "ele" que o embargo não o derrubou. Isso não tem nada a ver com o fato de que o tal embargo não impede o governo da ilha de ser paparicado por dezenas de governos ocidentais, como o do amigão Lula da Silva, não é mesmo? Claro que não, ora...

"O que se espera é que os ideais sobrevivam, amparados por bons índices de saúde e de educação, e que novos ventos acrescentem ao regime cubano modernidade, democracia e integração ao mundo. Manter o bom legado, passar por cima do mau legado".

Acho que aqui não precisa dizer muita coisa. Os votos de Eliane Cantanhêde de que os "ideais sobrevivam", e que os "bons índices de saúde e de educação" prossiguam demonstram a que vem a nossa imprensa quando trata de Fidel e de Cuba. Eis o "bom legado" deixado por Fidel, para ficarmos apenas nas duas áreas citadas: uma saúde sucateada, que já era boa antes do tirano chegar ao poder, e uma "educação" que não passa de doutrinação ideológica, nem sequer disfarçada, uma lavagem cerebral movida a slogans e panegíricos ao "máximo líder". É a teoria dos "dois Fidéis", o bonzinho, que dá saúde e educação ao povo, e o mauzinho, que lhe tira a liberdade. Fico aqui pensando... Será que alguém na nossa grande mídia teria coragem de dizer algo semelhante de um Pinochet, ou de um general Médici? Ah, essa nossa imprensa "séria e isenta"...

Não sei o que é pior: uma imprensa abertamente calhorda e alinhada com os donos do poder, ou uma que esconde suas preferências ideológicas alegando uma suposta "imparcialidade". Tem gente que acha possível ficar neutro diante do crime e da mentira. Tem gente que prefere esconder-se detrás de um véu de ambigüidade. Tem gente que acha impossível distinguir entre o certo e o errado, a verdade e a mentira, o bem e o mal. Eu, não.

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