Já disse aqui e alhures, e não me canso de dizer: não sou multiculturalista. Se me disserem que todas as culturas se equivalem, que os valores cultivados pelos nhambiquaras e pelo papa são a mesma e única coisa - como tentaram fazer sobre o cadáver do antropólogo Claude Lévi-Strauss, falecido no ano passado, numa clara distorção de seu pensamento -, eu vou rebater chamando quem diz isso de iludido ou mentiroso. Os valores, ao contrário do que diz certa antropologia, diferem de povo para povo, de cultura para cultura. Às vezes de cidade para cidade, de bairro para bairro, até mesmo dentro de casa. Não há dois seres humanos que pensem da mesma forma em relação a questões como direitos humanos e democracia. Muito menos povos, culturas, religiões diferentes.
Digo isso e me vem à mente um incidente acontecido comigo, há uns dois anos mais ou menos. Era eu o encarregado dos assuntos de China na minha divisão no Itamaraty. A China, como todos sabem, tem um sistema político bem diferente do nosso, para dizer o mínimo. Um belo dia, vem à nossa divisão o ministro-conselheiro da embaixada da China (estou falando, claro, da República Popular). Após os salamaleques de praxe, ele entrou num assunto "meio chato", como ele mesmo disse. Tirou da pasta que carregava algumas folhas de papel. Eram páginas de um site da internet, mantido pelo governo de Taiwan. O diplomata chinês queixou-se do fato de que Taiwan, com quem o Brasil não mantém relações diplomáticas e que é considerada oficialmente por Pequim uma província rebelde, apresentava-se no site como "República da China" - expressão banida do vocabulário diplomático brasileiro, diga-se de passagem. Não somente se queixou, aliás, mas praticamente exigiu que o governo brasileiro "fizesse alguma coisa" (ou seja: retirasse o site do ar). Tive de usar de toda minha (pouca) habilidade diplomática para tentar explicar ao diplomata chinês que a internet no Brasil era um território livre, ao contrário do que ocorre na China, e que não cabia ao governo brasileiro retirar um site do ar, ainda que a informação veiculada fosse mentirosa. Não adiantou. O chinês fincou pé, achou aquilo um absurdo. Como podem permitir que publiquem tal coisa na rede mundial de computadores, perguntava-se o tempo todo o chinês.
Por que conto essa história? Por um motivo simples: o multiculturalismo, a idéia tão bonita do respeito às diferenças, vira fumaça quando confrontada com certas realidades. A China não é um lugar tão complicado quanto, por exemplo, o Irã. Mas ainda assim é um sistema - ou uma "cultura", como queiram - estranho. O conceito de democracia e de liberdade de expressão, por exemplo, lá não tem qualquer valor. Isso ficou claríssimo para mim ao final da conversa. Por mais relativista que alguém seja, é difícil lidar com 60 anos de comunismo político e 5 mil anos de autocracia.
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A verdade dolorosa é que a preocupação com o "outro", com a sensibilidade alheia, de outros povos, religiões e culturas, é uma característica nossa, ocidental. Foi nesse lado do planeta, mais especificamente em sua parte norte-atlântica, que surgiu a noção de que há valores e princípios universais, válidos para todos os povos do mundo, independentemente de nacionalidade, raça, sexo ou religião. Enfim, "o homem", e não o "ocidental" ou "oriental", o "cidadão" em vez do "cristão" ou do "muçulmano" ou "budista". Foi dessa visão realmente revolucionária - a idéia política mais revolucionária da história da humanidade, ouso dizer - que nasceram as modernas democracias e o mais belo documento já produzido pelo gênero humano: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Não por acaso, fonte inesgotável de constrangimento para regimes como o de Pequim, que censura a internet e mantém blogueiros presos por criticarem o governo. Governos como o chinês - e nem falo aqui do maior inimigo da liberdade atualmente, o fundamentalismo religioso islamita - não dão a menor bola para as suscetibilidades alheias, estão se lixando para coisas como tolerância e respeito às diferenças. Somos nós, a civilização judaico cristã-ocidental, que nos enchemos de culpa e pisamos em ovos quando lidamos com outras culturas.
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Isso significa que se deve dar o troco na mesma moeda, mandando a tolerância às favas, certo? - concluiria o idiota da objetividade. Nada disso. É justamente o contrário: trata-se de defender a democracia e os direitos humanos como valores universais, acima das diferenças culturais, a fim precisamente de defender o respeito a essas diferenças. A própria democracia, tida como uma imposição imperialista ocidental por muito intelectual esquerdista de miolo-mole, se encarrega de fazer isso, traz em si a condição indispensável à convivência entre os diferentes. É claro que não é algo perfeito, mas é infinitamente melhor do que a alternativa que se coloca, de um relativismo niilista que só favorece os inimigos da democracia - e da tolerância. Se alguém conhece um caminho melhor para levar ao congraçamento e à paz entre os povos, que o apresente.
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O paradoxo de nossa época é que aqueles que mais se apegam ao dogma multiculturalista, como a chave da tolerância e da paz entre os povos, são os mesmos que terminam justificando, de uma forma ou de outra, a intolerância em lugares como a China e o Oriente Médio. O argumento é contraditório: alegam que não há culturas superiores nem inferiores, todas se equivalem em seus valores e princípios; logo mas, não se deve querer impor ao mundo uma idéia universal de democracia, pois esta seria apenas a expressão do modo de ver ocidental, válido para o Brasil ou a França, mas não para a China ou o Irã.
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A conclusão lógica desse raciocínio é a seguinte: se o governo chinês continua prendendo e fuzilando opositores ao regime ou censurando a internet, ou se uma tribo indígena na Amazônia pratica o infanticídio, isso não deve ser visto como exemplo de barbárie, mas deve ser aceito como parte da paisagem, como uma expressão cultural local. E isso em nome da... tolerância e do respeito às diferenças (!!!). Não se vê, ou não se quer ver, que a própria idéia de tolerância e respeito às diferenças só se tornou possível por causa de um movimento político e intelectual ocorrido há duzentos anos em uma franja ocidental do planeta, levado adiante por gente branca e de olhos claros, que proclamou, pela primeira vez, que todos os homens são livres e iguais em direitos e deveres, e que isso é um valor universal. Ou seja: afirmam que todos são iguais no essencial, não havendo distinções de fundo entre as culturas, mas, quando se trata de um valor universal como os direitos humanos, afirmam que somos diferentes. Vai entender...
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É por esse tipo de contradição que eu não sou multiculturalista. O multiculturalismo não passa de um discurso politicamente correto feito para pregar o bom-mocismo em novelinhas adolescentes.
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