terça-feira, dezembro 15, 2009

AINDA SOBRE HONDURAS E O GOLPE QUE NÃO HOUVE


Precisa traduzir?
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Recebo um comentário contestando o que digo em meu último texto sobre Honduras. Pelo visto, trata-se de alguém que se acha especialista em leis e em golpes de Estado. Faço um rápido vermelho-e-preto:

Golpe de Estado não é violação de cláusula pétrea, mas a uma ruptura institucional promovida por um poder legitimado pela constituição. É um conceito vago, portanto.

Eu não disse que golpe de Estado é violação de cláusula pétrea. Vou repetir o que disse: "O que caracteriza golpe de Estado é a ruptura da legalidade constitucional no que ela tem de mais essencial, como sua cláusula pétrea". Uma cláusula pétrea é a base mesma sobre a qual se sustenta o edifício constitucional. Mesmo assim, pode ser mudada e até abolida, desde que seguido o devido processo legal. Isso significa que tentar a reeleição em um país onde a proibição da reeleição é cláusula pétrea da Constituição, como Honduras, como Manuel Zelaya tentou fazer, é golpe. Fazer o mesmo no Brasil, onde a reeleição não é cláusula pétrea, não é golpe. No primeiro caso, houve uma tentativa de violar a ordem constitucional; no Brasil, não. Ficou claro?

Esse assunto já deu o que tinha que dar, mas é importante se ater aos fatos (coisa que nenhum dos lados fez):

Pelo visto, o assunto ainda não deu o que tinha que dar, não. Ainda há gente que acredita ter havido golpe em Honduras em 28/06, ou que ambos os lados são golpistas e o jogo está, portanto, zerado. Essas pessoas precisam ler o que vai em seguida.

1- Zelaya queria convocar um plebiscito, não vinculante, para consultar a população sobre a eleição de uma constituinte a constituição no mesmo dia das eleições.

2- A Suprema Corte de Honduras, bem ou mal, considerou inconstitucional o plebiscito.

Por que "bem ou mal", cara-pálida? A tal consulta convocada por Zelaya era, sim, ILEGAL e INCONSTITUCIONAL de acordo com a Constituição hondurenha (Artigo 239 - que ninguém parece muito disposto a ler, pelo visto). O Artigo 239 deixa claro que quem propuser a reeleição perde DE IMEDIATO (ou seja: imediatamente, na hora) o mandato que exerce. Vou até transcrever o que ele diz aqui, em espanhol mesmo:

ARTICULO 239.- El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Vicepresidente de la República.
El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos y quedarán inhabilitados por diez (10) años para el ejercicio de toda función pública.


Querem discutir se houve golpe ou não em Honduras? Então leiam a Constituição do país.

3- Zelaya queria reformar a constituição mesmo assim.

Ou seja: VIOLOU abertamente uma cláusula pétrea da Constituição, incorrendo automaticamente na perda imediata de seu mandato. Saiu da legalidade, enfim.

4- A Suprema Corte ordenou que fosse impedido.

Isso mesmo: a SUPREMA CORTE, ou seja, o Judiciário do país, ordenou que ele fosse impedido de levar adiante uma consulta ILEGAL e INCONSTITUCIONAL. O que ele fez, então? Insistiu no troço. Conclusão: perdeu IMEDIATAMENTE o mandato, de acordo com o que diz a Constituição (leiam acima o que diz o Artigo 239).

5- O presidente teve sua residência invadida e foi expulso do país de pijamas (de verdade), sem devido processo legal.

E daí? O "presidente" já não era mais presidente (perdeu DE IMEDIATO o cargo, é o que diz a Constituição). O procedimento foi equivocado? Sim, e já falei disso aqui exaustivamente. A expulsão contrariou o Artigo 102, que a proíbe. Mas isso anula o Artigo 239 da Constituição? De jeito nenhum: o 239 dispõe sobre uma cláusula pétrea, ao contrário do 102 (expulsar um cidadão de Honduras é ilegal, mas não é "golpe"). Então é isso que caracteriza golpe de Estado: o fato de o sujeito estar vestindo pijamas na hora de ser detido? Eu não sabia que pijama foi inventado para dar dignidade a quem quer que seja.

Sobre o "devido processo legal", é importante observar o seguinte: a Constituição hondurenha é omissa nesse ponto. Mas isso não muda nada: quando Zelaya foi detido e expulso do país, de pijamas, fraque ou baby-doll com rendinhas (não importa), ele já não era presidente da República. Mesmo se o tivessem fuzilado, não teria havido golpe de Estado, pois seria o assassinato de um cidadão comum, não do mandatário. O procedimento adotado em seguida à deposição é irrelevante para caracterizar o movimento como golpe. Com ou sem devido processo legal, a deposição foi constitucional. Não é assim porque eu quero: é o que está na Constituição de Honduras.

Para ficar mais claro: ninguém pode dizer que Fernando Collor foi vítima de golpe em 1992, embora o "devido processo legal" só tenha ocorrido após ele ter sido apeado do poder por um processo de impeachment (após o qual, aliás, ele foi inocentado pelo STF). Até onde eu sei, não houve golpe de Estado no Brasil em 92. Houve?

6- Foi lida uma carta de renúncia falsa do presidente no parlamento e eleito um substituto.
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A carta, que foi lida por um deputado da oposição, não teve nada a ver com a deposição de Zelaya. Ele perdeu o mandato por ter tentado estuprar a Constituição, não por causa da carta. O substituto eleito foi o presidente do Congresso, Roberto Micheletti, conforme estabelece a Constituição do país em caso de impedimento do titular e do vice (que havia se licenciado do cargo para concorrer às eleições). Tudo conforme a Lei.
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É óbvio que qualquer tentativa de qualificar um dos lados como golpista depende das preferências do analista e da gravidade que se atribua a cada um dos fatos ocorridos. O que não vale é distorcer os acontecimentos para dar aparência de objetividade à conclusão de cada um.
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A última frase está correta, mas não o resto do parágrafo. Qualquer que seja a preferência do analista (e eu, ao contrário de muitos, não a escondo, mas não a uso como biombo para fugir à realidade), golpe é golpe, ponto final. Honduras tem uma Constituição, e isso foi sistematicamente ignorado pelos que gritaram "golpe militar" após a deposição legal de Zelaya. Considerar golpe de Estado um movimento previsto na Constituição, realizado pelo Congresso e pelo Judiciário, com apoio popular, que manteve o calendário eleitoral e preservou a democracia não tem nada a ver com objetividade: é ignorância ou ingenuidade, ou safadeza ideológica mesmo.
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Resumindo: segundo os "imparciais" que acham que um erro cometido no calor da hora pelos que derrubaram Zelaya anula o golpe que ele tentou dar e "zera o jogo", ele, Zelaya, foi vitima de golpe porque:
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- O Artigo 102 da Constituição de Honduras anula o 239.
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- Alguém leu uma falsa carta de renúncia de Zelaya no Parlamento.

- Ele estava vestindo pijama.

Pelo visto, em Honduras não ocorreu apenas o maior fiasco da diplomacia brasileira em todos os tempos: lá surgiu uma verdadeira revolução na Ciência Política. É a Teoria do Pijama dos Golpes de Estado. Segundo essa teoria revolucionária, golpe só é golpe quando é praticado pela "direita", jamais pelos "companheiros bolivarianos". Estes estão sempre do lado do povo e da democracia, mesmo quando - na verdade, principalmente quando -tentam violar as leis de um país.
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Em Honduras, os bolivarianos tentaram dar um duplo golpe: primeiro, contra as instituições do país; depois, contra a inteligência. No primeiro, eles saíram derrotados; o segundo, porém, está em plena marcha, e muitos se deixam cair nele de forma voluntária e inconsciente.

Um comentário:

Anônimo disse...

De alguém que se acha especialista em leis e em golpes de Estado para um verdadeiro especialista:
Eu disse “Bem ou mal” porque não interessa a correção ou erro da decisão. O importante é que foi (ou, ia ser, antes que fosse dada a ordem preventiva) descumprida.
Agora:
1- Por favor, me esclareça sobre essa história de devido processo legal para alterar cláusula pétrea. Não consigo imaginar uma cláusula pétrea que preveja o modo de sua própria modificação.
2- Se o devido processo legal (que você erroneamente exige para a alteração de cláusula pétrea) é irrelevante para depor o presidente, uma vez que o Zelaya descumpriu a constituição, você deve considerar correta a execução sumária, se o sujeito for criminoso mesmo, não? Eu discordo disso, acho que, mesmo tendo praticado o ato, o tipo deveria ter a possibilidade de expor suas razões e o órgão competente deveria avaliar a pena adequada a aplicar. Essas coisas às quais você não dá importância. Quanto ao Collor, devido processo legal houve e foi o próprio processo de impeachment (um juízo político, com defesa, advogado e tudo, o que não houve com o Zelaya).
3- No mais, se a sua solução é que a primeira ilegalidade, inconstitucionalidade ou golpe (o nome que você desejar) abre espaço para um vale tudo institucional, você deveria dizer isso com todas as letras. E aplicar em outros casos também. Por exemplo, segundo essa tese, tudo que o Chavez fez depois de 2002, está plenamente justificado pela tentativa de deposição dele. Assim, talvez provaria o seu ponto, que sua posição serve tanto para condenar a esquerda como a direita.
O que não dá é ficar falando em “erro” do regime e “golpe” do zelaya, fingindo que essa manipulação de qualificações constitui uma argumentação decente, quando na verdade tudo é uma questão de preferência pessoal: você acha que um descumprimento de ordem judicial por um governo, justifica sua deposição, na lei ou na marra. Mas pensa assim, somente porque o governo deposto era (ou tendia a ser) aliado do Chavez.