Ontem fiz uma coisa inédita neste blog: estimulado por um leitor que encasquetou que sou um defensor do "vale-tudo institucional" e da execução sumária porque, ao contrário da maioria, eu li a Constituição de Honduras e não vi golpe de Estado no país (a não ser o tentado por Zelaya e sua trupe), postei dois textos num único dia, sobre o mesmo assunto.
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Quem acompanha o blog deve ter percebido que ando meio monotemático ultimamente. Não é por falta de vontade minha de tratar de outros temas. É que os comentários do leitor anônimo, além do colossal fiasco brasileiro em Honduras, me levaram a me concentrar na questão. Os ensinamentos advindos daquele país, em especial sobre como age o golpismo bolivariano e como ele encara coisas como a Constituição e a democracia, são importantes demais para ser ignorados. A esse respeito, terminei meu meu último post com uma pergunta. Até agora não recebi resposta. Começo a desconfiar que não a terei nunca.
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Creio que, a esta altura, está mais do que claro, para qualquer pessoa que tenha algo além de vento acima dos ombros, que a trapalhada em que o governo Lula se meteu em Honduras foi uma das maiores da História. Está mais do que claro, pelo menos para os 0,01% da humanidade que pensam, que golpistas, no caso, são Manuel Zelaya e Hugo Chávez, além de Daniel Ortega e seus amigos brasileiros. Mesmo assim, vou me permitir uma última observação.
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Falou-se muito, desde que Zelaya foi deposto e expulso de Honduras, em "devido processo legal". O leitor que insiste na tese do golpe contra Zelaya mencionou-o diversas vezes. Confrontado com o impeachment de Fernando Colllor no Brasil em 1992, este disse mesmo que o próprio impeachment foi o devido processo legal etc., e que em Honduras não houve nada disso. Deixando de lado o fato de que o impeachment é um processo político, e não jurídico, e que o STF absolveu Collor de todas as acusações - foi isso que chamei de devido processo legal -, OK, digamos que o impeachment foi, ele próprio, o devido processo legal etc. e tal. Nesse caso, teria havido golpe de Estado em Honduras em 28/06 porque esse "devido processo legal" não foi obedecido, certo?
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Errado! E PROVO por quê.
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Mesmo admitindo-se que o impeachment em 92 foi o "devido processo legal", isso não muda em absolutamente nada a legalidade da deposição de Zelaya. Por um motivo muito simples, para o qual quase ninguém, inclusive o chanceler Celso Amorim, prestou atenção: não existe impeachment na Constituição de Honduras. Simples assim.
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Se não há impeachment, que foi o "devido processo legal" para afastar um presidente no Brasil em 92, então a deposição de Zelaya foi um golpe, certo? Mais uma vez: NÃO, ERRADO! A Constituição de Honduras, nesse ponto específico, é falha, até omissa, como já disse. Mas as condições para o impedimento do presidente estão colocadas, de forma clara, no Artigo 239 da Constituição, já por mim tantas vezes mencionado. O que diz o Artigo 239? Que qualquer um que propuser a reforma da Carta a fim de reeleger o presidente ou vice-presidente - o que Zelaya tentou fazer com sua "consulta popular não-vinculante" - perde DE IMEDIATO ("de inmediato") o cargo que exerce e fica inelegível por dez anos. Está lá, é só ler o que está escrito.
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O que isso significa, na prática? O seguinte: que - repito para ficar ainda mais claro -, quando Manuel Zelaya foi preso pelos militares, vestindo, dizem, pijama, ele JÁ NÃO ERA MAIS PRESIDENTE. Do mesmo modo que Fernando Collor, após o impeachment, perdeu o cargo. A expulsão extralegal de Zelaya do país não muda esse fato, assim como a absolvição de Collor no STF não alterou um milímetro a constitucionalidade do impeachment. Em outras palavras: assim como o impeachment foi o "devido processo legal" no caso de Collor, a deposição imediata de Zelaya foi o "devido processo legal" no caso de Honduras.
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Grande parte da confusão jurídica, decorrente da ignorância da Constituição de Honduras (em especial do Artigo 239), poderia ter sido evitada, é verdade, se existisse na Carta Magna hondurenha o instrumento do impeachment. Mas isso não muda nada na questão. Com ou sem impeachment, a Constituição hondurenha prevê a perda imediata do cargo do presidente que tentar reformá-la. E ponto. Pode-se achar isso uma tolice, discordar dessa forma de resolver as questões, mas é o que está na Constituição do país. E o que está na Constituição, seja no Brasil, em Honduras ou em Kiribati, deve ser respeitado. Alguma objeção?
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Resumindo: os hondurenhos conseguiram depor um presidente, de forma legal e sem derramamento de sangue, com os recursos legais à sua disposição - recursos falhos, como toda obra humana, mas, ainda assim, é o que eles têm. Mesmo assim, o governo Lula e a "comunidade internacional" se recusaram a levar em conta o que diz a Lei Maior de Honduras e condenaram o "golpe de Estado", enquanto pressionaram pela volta "imediata e incondicional" de um golpista, ameaçando lançar o país numa guerra civil. Mas esbarraram na determinação de um povo que se recusou a virar súdito de Hugo Chávez. De forma legal, constitucional. Sim, constitucional! Apesar da expulsão de Zelaya.
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Os bolivarianos e seus parceiros basearam toda a teoria do "golpe" na seguinte mentira: entre um Artigo da Constituição que proíbe a expulsão de qualquer cidadão hondurenho (o 102) e outro que pune com a perda imediata do mandato quem propuser a reeleição (o 239), escolheram o primeiro Artigo e mandaram o segundo às cucuias. Ou seja: entre uma democracia imperfeita e democracia nenhuma, preferem democracia nenhuma!
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Como se não fosse o bastante, a teoria do "golpe" em Honduras foi totalmente desmoralizada pelas eleições presidenciais de 29/11. Desde então, a "comunidade internacional", antes unânime na condenação ao "golpe", se dividiu: os EUA e outros países anunciaram que vão reconhecer o novo governo hondurenho saído das urnas. Ao fazê-lo, caíram numa contradição: se o governo sob o qual as eleições foram realizadas é "golpista", como é possível reconhecer o pleito? O Itamaraty lulista, sempre mais sábio, sempre principista, achou a solução perfeita: simplesmente não vai reconhecer o próximo governo eleito democraticamente no país. Com isso, optou por manter-se coerente em relação à posição anterior. Ou seja: entre a contradição e a mentira, preferiu a mentira.
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Fico aqui pensando: se os militares brasileiros ou chilenos que tomaram o poder em 1964 e em 1973 tivessem agido como agiram os militares hondurenhos que depuseram Zelaya a pedido da Suprema Corte - de forma profissional, buscando seguir à risca o que está na Constituição -, será que teria havido o que ocorreu depois no Brasil e no Chile? Com certeza, não. Quanto sofrimento, quanto sangue e quanta mentira nos teriam sido poupados!
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Sei que, para certos cérebros, nada disso que está aí em cima vai adiantar muito. Estes já estão trabalhados na idéia de que, se os fatos - ou a Constituição - contrariam o discurso ideológico, pior para os fatos (ou para a Constituição). Felizmente, a democracia, pelo menos em Honduras, continua a se basear na Lei, não na vontade de Manuel Zelaya, Hugo Chávez ou Lula.
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