segunda-feira, dezembro 14, 2009

HONDURAS: POR QUE NÃO HOUVE GOLPE


Se há uma certeza na vida, além da morte e dos impostos, é que os esquerdistas sempre acharão um jeito de mentir um pouquinho mais, de agredir um pouco mais a verdade e o bom senso. Vejam o caso de Honduras. Há alguns dias, o país realizou eleições limpas e democráticas, do tipo que o Irã ou Cuba, por exemplo, não vêem há décadas, e o que fez a nossa diplomacia tupiniquim? Contrariando as normas mais comezinhas da lógica e até a posição oficial do governo dos EUA, que parece ter acordado para a realidade, o governo Lula se recusa a reconhecer o resultado das eleições. E por quê? Porque o governo que as convocou, dizem os sábios do Itamaraty, carece de legitimidade; é um governo "ilegal" e "golpista", dizem.

A posição da diplomacia lulista tem o mérito, pelo menos, da coerência em comparação com a confusão reinante no Departamento de Estado norte-americano nos dias da crise hondurenha. Mas isso não deve ser contado a seu favor. Pelo contrário: mostra apenas que, entre a confusão e a estupidez, o governo brasileiro escolheu a estupidez. Washington optou por reconhecer o resultado das eleições realizadas pelo governo "golpista" que manteve o calendário eleitoral (já viram algo parecido antes?). Com isso admitiu, tacitamente, que sua posição anterior, de condenação ao governo Micheletti, estava errada. Já o Brasil prefere persistir no erro mesmo, mantendo-se, coerentemente, do lado da mentira.

Já escrevi bastante neste blog mostrando, com fatos e argumentação lógica, que não houve golpe nenhum em Honduras, a não ser o tentado por Manuel Zelaya. Deixei claro - provei, para ser mais exato - que Zelaya foi deposto para que se cumprisse a Lei, e até agora não vi ninguém comprovar o contrário. Mostrei, mais de uma vez, que a idéia de que tenha havido golpe só se sustenta pela ignorância a respeito da Constituição de Honduras, em especial de seu Artigo 239, que pune com a perda IMEDIATA do mandato quem tentar reformá-la. Mesmo assim, ainda há quem acredite piamente que ele, Zelaya, foi vítima de golpe. Ainda há quem, embora reconheça que a atitude brasileira em relação às eleições presidenciais de 29/11 está errada, insiste na ladainha do golpe etc.

O mais novo argumento que defrontei foi o seguinte: houve golpe, pois Zelaya não teve o direito ao devido processo legal. Em vez disso, ele foi sumariamente deposto e expulso do país, não tendo sido respeitados seus direitos constitucionais. Enfim, houve golpe porque o procedimento que se seguiu à sua deposição foi ilegal etc. etc.

Já tratei aqui do que está acima, e faço questão de repetir: sim, a expulsão de Zelaya foi um erro, e foi, sim, ilegal, pois contraria o Artigo 102 da Constituição hondurenha. Ele não deveria ter sido expulso, mas preso e levado a julgamento. Já afirmei e reafirmei isso várias vezes. Do mesmo modo, já afirmei e reafirmei que não é isso - sua expulsão do país, supostamente de pijamas, como foi dito - o que caracteriza golpe de Estado.

Para dizer que houve golpe em Honduras em 28/06 baseado nisso - a expulsão extralegal de Zelaya para a Costa Rica - seria preciso ignorar completamente o que diz o Artigo 239 da Constituição, que deixa claro que quem tentar a reeleição perde - mais uma vez, é o que diz a Lei - DE IMEDIATO o cargo que exerce e ficará inelegível por dez anos. Pois bem: de acordo com esse Artigo, quando os militares bateram à porta de Zelaya, ele já não era mais presidente do país. A perda do mandato fora imediata. O que se seguiu à sua deposição legal é irrelevante para definir o que aconteceu. Não há o que discutir.

A expulsão de Zelaya de Honduras foi um erro? Certamente que sim. Foi um ato ilegal? Sem dúvida. Elimina o fato de que ele tentou rasgar a Constituição do país e caracteriza um golpe de Estado? Faço questão de dizer: Não! Mil vezes não!

A questão já foi colocada por Reinaldo Azevedo em resposta ao representante brasileiro na OEA, mas eu vou resumi-la aqui: o Artigo 102, que proíbe a extradição de cidadãos hondurenhos, pode ser defendido juntamente com o 239, que motivou a deposição de Zelaya - é possível conjugá-los e dizer que não houve golpe. Já para dizer que houve golpe é necessário, antes de tudo, aferrar-se ao Artigo 102 e jogar o Artigo 239 na lata de lixo, fazendo uma leitura seletiva da Constituição hondurenha, como se um Artigo tornasse o outro sem efeito. Foi exatamente isso o que fez o governo do Brasil e a chamada "comunidade internacional" na questão.

Na verdade, toda a gritaria que se ouviu nos últimos meses contra o governo "golpista" (ou "de facto") de Honduras, incluindo uma das maiores pressões internacionais a que um povo esteve submetido nos últimos tempos, não partiu de nenhuma análise jurídica, mas tão-somente política e ideológica, da situação hondurenha. Basta fazer um exercício simples para perceber isso. Digamos que os militares hondurenhos que depuseram Zelaya a pedido do Congresso e da Suprema Corte do país (mais uma vez: isso caracteriza golpe?) tivessem, em vez de o expulsado, o prendido e levado à barra dos tribunais. A gritaria contra o "golpe" teria sido menor? É pouco provável. Ainda mais porque os governos da região, entre os quais o do Brasil, condenaram desde o primeiro dia a queda de Zelaya e passaram a exigir seu retorno "imediato e incondicional" ao poder, mostrando com isso que estavam se lixando para o que ele tentou fazer com a Constituição do país. Se estão tão preocupados com o Artigo 102 da Carta Magna de Honduras, a tal ponto de dizerem que houve golpe porque este foi desrespeitado, então por que ignoram o Artigo 239, que motivou a queda de Zelaya?

É uma questão de lógica, claro. Mas não é assim que pensam os bolivarianos de todos os tipos. Para esse tipo de gente, que está além do alcance de qualquer racionalidade, um golpe só é golpe se dado por alguém "de direita", jamais por um de seu próprio grêmio. E, se são incapazes de sustentar uma mentira por muito tempo, tratam logo de inventar outra, a fim de se safar. Muita gente caiu no conto-do-vigário do "golpe militar" em Honduras, acreditando, por pura ignorância ou ingenuidade, que Manuel Zelaya é um democrata. Ao perceberem que ele foi deposto porque tentou estuprar a Constituição, viram que a situação eram bem menos maniqueísta. Mas não abandonaram a tese do "golpe": ambos os lados são golpistas, passou-se a dizer. Havendo golpistas de lado a lado, o jogo estaria zerado.

Discordo totalmente dessa tese. Não creio que, por causa de um erro dos militares encarregados de depor Zelaya, tomado no calor dos acontecimentos e por temor a uma reação violenta dos zelaystas, e de modo algum incompatível com o Artigo 239 da Constituição (a verdadeira razão de tudo), ambos os lados sejam golpistas e o jogo esteja, portanto, zerado. O lado golpista é claramente o de Zelaya. E isso pelos motivos já enumerados acima, e que continuam a ser ignorados pela maior parte da opinião pública, anestesiada pela propaganda bolivariana.

No tocante a Honduras, por influência de Hugo Chávez e da "comunidade internacional", inverteu-se a questão: a forma (ou o procedimento) como os militares se livraram de Zelaya no dia de sua queda passou a ser vista como mais importante do que o que ele, Zelaya, tentou fazer com as instituições do país. Se ele tivesse sido, digamos, morto pelos militares hondurenhos ao tentar resistir à prisão, ainda assim não teria havido golpe nenhum: talvez assassinato, mas não golpe. Isso porque, além de ele não ser mais presidente de acordo com a Constituição, o que caracteriza golpe de Estado não é como um governante é deposto - de dia ou à noite, com ou sem pijama, com ou sem o "devido processo legal" (embora, reitero, este seja necessário) -, mas, sim, a quebra da legalidade constitucional no que ela tem de mais essencial como sua cláusula pétrea. E a proibição da reeleição do presidente é, gostem ou não, uma cláusula pétrea da Constituição de Honduras. Diferentemente, até onde eu sei, da não-expulsão do presidente deposto por tentar violar esse preceito constitucional fundamental.
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O erro do governo Lula no imbróglio hondurenho não está somente em não reconhecer o resultado das eleições democráticas de Honduras, ou em ter permitido que Manuel Zelaya transformasse a embaixada em Tegucigalpa em seu cafofo e escritório de agitação política - o erro principal, o pai de todos os erros, foi não ter sabido, ou querido, distinguir um movimento para preservar a Constituição de uma clássica quartelada latino-americana. Foi ter-se colocado incondicionalmente do lado de um golpista como se ele fosse um democrata, ficando a reboque do golpismo bolivariano. Daí veio toda a trapalhada que se seguiu.
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Em Honduras, a legalidade e as instituições democráticas não somente não foram rompidas pelo governo "de facto", como foram por ele preservadas, inclusive mantendo-se o calendário eleitoral. O Congresso e o Judiciário não somente não foram fechados nem sofreram intervenção, como tomaram as rédeas do país, garantindo a alternância democrática no poder. Nenhum parlamentar foi preso ou teve os direitos políticos cassados, e os direitos individuais, como o de associação e reunião - inclusive dos zelaystas -, foram mantidos e respeitados. O estado de emergência, que durou apenas 15 dias, obedeceu inteiramente ao que diz a norma legal (Artigo 187 da Constituição). E isso a despeito de toda a pressão internacional, das ameças de sanções e das exortações à insurreição e à guerra civil, inclusive ao terrorismo, por parte de Zelaya em seu bunker no que foi um dia a embaixada brasileira em Tegucigalpa. Mas não é assim que parecem ter entendido muitas pessoas, para quem a verdadeira cláusula pétrea da Constituição hondurenha está no Artigo 102, e não no 239, da Carta Magna.

Os bolivarianos não se contentam mais em tentar mudar as constituições de seus próprios países para implementar seus projetos autoritários e continuístas. Agora tratam de reinterpretar as de outros países também, de acordo com suas próprias conveniências. Tomando a forma como o essencial, ou desprezando cláusulas pétreas em favor de filigranas jurídicas, o que pretendem é semear a confusão, pintando golpistas como democratas, e vice-versa. Em Honduras, pelo menos, eles quebraram a cara. A democracia venceu.

Um comentário:

Anônimo disse...

Golpe de Estado não é violação de cláusula pétrea, mas a uma ruptura institucional promovida por um poder legitimado pela constituição. É um conceito vago, portanto.
Esse assunto já deu o que tinha que dar, mas é importante se ater aos fatos (coisa que nenhum dos lados fez):
1- Zelaya queria convocar um plebiscito, não vinculante, para consultar a população sobre a eleição de uma constituinte a constituição no mesmo dia das eleições.
2- A Suprema Corte de Honduras, bem ou mal, considerou inconstitucional o plebiscito.
3- Zelaya queria reformar a constituição mesmo assim.
4- A Suprema Corte ordenou que fosse impedido.
5- O presidente teve sua residência invadida e foi expulso do país de pijamas (de verdade), sem devido processo legal.
6- Foi lida uma carta de renúncia falsa do presidente no parlamento e eleito um substituto.
É óbvio que qualquer tentativa de qualificar um dos lados como golpista depende das preferências do analista e da gravidade que se atribua a cada um dos fatos ocorridos. O que não vale é distorcer os acontecimentos para dar aparência de objetividade à conclusão de cada um.