
O golpe/revolução/contra-golpe de 64 - não há consenso sequer sobre que denominação lhe dar - é, certamente, o momento definidor da vida política e cultural brasileira na segunda metade do século XX. E, no entanto, o conhecimento que temos sobre o que de fato aconteceu, sobre as circunstâncias e os personagens que levaram à derrubada do governo Jango e à instauração de um governo militar, permanece turvado, resvalando quase sempre para a propaganda ideológica pura e simples. Este é um campo em que, ainda hoje, as falácias proliferam.
Em um processo curioso de inversão, a "História dos vencidos" conquistou a hegemonia quase inconstrastável dos estudos sobre o período. Isso resultou no predomínio, durante décadas e gerações, de uma visão histórica contaminada de proselitismo esquerdista, gestada durante o próprio período militar. Paralelamente, a visão "oficial", militar, dos acontecimentos de 64, transmitida na mesma época em insípidos textos ufanistas e intragáveis lições de educação moral e cívica, era cada vez mais desmoralizada e se tornava motivo de chacota.
Tendo nascido dez anos depois da "Redentora", em 1974, passei praticamente toda a infância sob o signo dessa visão histórico-ideológica, que me foi passada nas aulas de História e OSPB - o sucessor das aulas de educação moral e cívica - por professores admiradores do socialismo cubano e da teologia da libertação. Aprendi desde cedo, portanto, que ter "senso crítico" era contestar as "injustiças socais" e o governo do general de plantão - João Figueiredo -, o que significava, quase sempre e sem que eu tivesse a menor consciência disso, endossar as teses de esquerda.
Assim, aprendi desde cedo, a exemplo de milhões de crianças iguais a mim, que o golpe - era sempre chamado de golpe, jamais de "revolução" - fora desfechado por um bando de generais truculentos ("gorilas") com o apoio (ou mesmo a participação direta) dos EUA e da CIA contra um governo democrático e popular - eram as palavras exatas que se diziam na sala de aula -, o único governo, dizia-se, que teve coragem de "fazer alguma coisa" pelos pobres do país etc. e tal. Segundo essa visão míope, o golpe fora o resultado de uma conspiração das elites (diríamos hoje "brancas e de olhos azuis"), latifundiários, empresários, banqueiros, especuladores, donos de jornais e, por fim, dos militares, que nada mais foram do que seus agentes a soldo. Enfim, uma quartelada contra a democracia etc. e tal. Já os "vencidos", os que haviam sido derrubados e lutavam naquele momento (1982, 83) pelas eleições diretas - inclusive um certo sindicalista barbudo de língua presa, que aliás disse em depoimento ter apoiado o golpe de 64 -, eram, eles sim, os verdadeiros defensores da liberdade. Ao mesmo tempo, de forma esquizôfrenica, éramos obrigados, crianças de sete ou oito anos de idade, a cantar todas as quintas-feiras o hino nacional no pátio da escola.
É impressionante como, após tanto tempo, os mesmos mitos e meias-verdades que nos eram passados na terceira série ainda são repetidos ad nauseam nas salas de aula de todo o País. A ponto de não haver praticamente nenhuma "História alternativa" de 1964 - é sempre a visão da esquerda, dos que foram "derrotados", que prevalece.
Vejamos alguns desses mitos, e como eles estão presentes, de forma quase inconsciente, em nossa forma de pensar.
Uma das principais lendas criadas sobre 1964 diz que o governo João Goulart era um governo democrático, que foi derrubado exatamente por isso. Ou seja: os militares que o depuseram o fizeram com o único objetivo de acabar com a democracia e impor um regime tirânico - por pura maldade, só falta dizer. Na minha mente infantil, carregada de estereótipos do tipo bem contra o mal, decorrente da leitura voraz de revistas em quadrinhos, não foi difícil para mim engolir essa tese. Desconfio que é esse mesmo mecanismo mental que leva tantos adolescentes a venerarem, ainda hoje, os ícones da esquerda do período, como Che Guevara.
Pois bem. Hoje, no distanciamento histórico, não há motivo para ter essa visão maniqueísta e simplista. O golpe - e foi golpe mesmo - de fato marcou uma ruptura com a ordem constitucional, abrindo o caminho para o que veio depois. Mas, pode-se dizer que o governo deposto, o governo de João Goulart, era um modelo de respeito às normas da vida democrática? Melhor: pode-se dizer que ele foi derrubado exatamente porque era democrático? A tese é falsa e é absurda.
Vamos aos fatos: em março de 1964, precisamente após o famoso comício da Central do Brasil, no dia 13 de março, o presidente João Goulart e seu governo já haviam dado claras demonstrações de que estavam se colocando, quando não já haviam se colocado, fora da ordem democrática. Desde que retomara plenamente os poderes presidenciais, em janeiro de 63, João Goulart não fez outra coisa senão minar as bases da legalidade constitucional - mesma legalidade em nome da qual fora empossado presidente, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Cercado de elementos esquerdistas e ultra-esquerdistas, como seu cunhado Leonel Brizola, Goulart passara a chefiar, ou se tornara prisioneiro, de um gigantesco esquema de subversão política - a palavra é feia, eu sei, é mais uma que ficou desgastada e desmoralizada pelo uso posterior pelos militares, mas é correta -, que visava, em última instância, à instalação, no Brasil, de uma república socialista, ou sindicalista, nos moldes do peronismo argentino. Para tanto, sua base de sustentação política se transferira do Congresso e de outro órgãos legais para os partidos de esquerda como o PCB (então ilegal, mas bastante ativo), os sindicatos (CGT, PUA etc.) e, finalmente, os setores subalternos das Forças Armadas, especialmente os sargentos e os marinheiros - decisão esta que foi, aliás, a gota d'água para sua deposição.
Os fatos não mentem. Em outubro de 1963, logo após uma rebelião de sargentos que deixou dois mortos em Brasília - e cujos líderes foram tratados com benevolência pelo governo -, Goulart tentou fazer aprovar, no Congresso, a decretação do estado de sítio no Brasil. A medida não foi aprovada, em parte, pela oposição da própria esquerda, que temia um golpe... do próprio Goulart! Era quase um consenso, no começo de 1964, de que haveria um golpe - só não se saberia se da esquerda ou da direita. O PCB, então sob a chefia de Luiz Carlos Prestes, acreditava piamente que as condições estavam maduras para tomar o poder e transformar o Brasil num país comunista ("já estamos no governo; falta apenas tomarmos o poder", chegou a dizer Prestes às vésperas da queda de Goulart).
Entre os setores que apoiavam o governo, era quase unanimidade que o golpe viria não dos militares, mas do próprio governo - convicção compartilhada pelo embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, que não cansava de repetir, em seus telegramas a Washington, que Goulart estava preparando o caminho para instalar uma espécie de ditadura, mediante um auto-golpe semelhante ao desfechado por Getúlio Vargas em 1937.
Diante de tudo isso, com a radicalização política avançando a níveis galopantes, juntamente com a inflação de 80% ao ano (um record para a época), Goulart - por ambição desmedida, por inabilidade política, por ingenuidade, ou por tudo isso junto -, apostou todas as fichas não na contenção, mas no apoio da esquerda radical, trocando a hierarquia e a disciplina militares pelo patrocínio às sublevações de sargentos e marinheiros - no dia 30 de março, ele discursou, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, para sargentos e marinheiros que se haviam amotinado apenas uma semana antes, inclusive o famoso Cabo Anselmo. Para os comandos militares e para a parcela da opinião pública que não compartilhava dos objetivos esquerdistas, a opção de Goulart pela ilegalidade revolucionária era um fato irreversível e inquestionável.
Não surpreende, portanto, que o movimento para derrubar Goulart tenha mobilizado e contado com o apoio entusiasmado de camadas significativas da população - a classe média, a Igreja católica, a imprensa - com exceção da Última Hora, jornal do getulista Samuel Wainer, toda a grande imprensa brasileira apoiou entusiasticamente o golpe -, bem como dos principais governadores de estado e políticos que, posteriormente, passariam à oposição, como Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek - e inclusive de um então relativamente desconhecido deputado chamado Ulysses Guimarães.
Tais fatos hoje em dia são pouco lembrados, uma vez que é muito dificil para a historiografia de esquerda reconhecer que o movimento que depõs Goulart contou com amplo apoio popular - e não apenas de meia dúzia de beatas de rosário na mão, como passaram a ser caricaturados os milhares de manifestantes que saíram às ruas de São Paulo na "Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade". Do mesmo modo, os historiadores esquerdistas jamais irão admitir que, quando os militares deram o golpe, a democracia já estava morta: eles apenas trataram de enterrá-la. Simplesmente ninguém estava interessado em defender a democracia: o conflito passou a ser entre golpistas de direita e golpistas de esquerda. Ganharam os de direita.
Um outro grande mal-entendido sobre 1964 diz respeito à suposta participação dos EUA no golpe. A versão de esquerda sobre o papel que a Casa Branca teria tido na deposição de Goulart foi de tal modo propagandeada por autores como Moniz Bandeira e outros, que já se tornou uma espécie de dogma da História nacional. Não adiantou sequer ter sido revelado, em fins dos anos 70, que os americanos não tiveram qualquer participação na queda de Jango, tendo-se limitado a acompanhar os acontecimentos, para desmentir essa versão, que se tornou corrente. Nem mesmo a observação unânime entre os conspiradores civis e militares de que o golpe foi 100% nacional, e que pegou até os próprios americanos de surpresa, foi capaz de retirar essa impressão. O fato de que os EUA tinham um plano de ação militar para intervir no Brasil em caso de revolta militar contra Goulart - a Operação Brother Sam -, e que no final se mostrou desnecessário, apenas reforçou a ideia de que o golpe, como disse um escritor da época, "nasceu em Washington".
Nem em Washington, nem mesmo em algum lugar específico do Brasil. Um fato que passa despercebido até hoje é que os militares e civis golpistas de 64 não contavam, sequer, com uma liderança única, nem tampouco sabiam o que fariam ao tomar o poder. Unia-os, única e simplesmente, o desejo comum de tirar Goulart do poder e acabar com a baderna. Daí porque, deposto Goulart, passaram-se dias sem que houvesse um consenso sobre quem assumiria o governo em nome da "revolução". Até que se chegou ao nome do marechal Humberto Castello Branco - que fora, aliás, inicialmente contra o golpe no dia 31 de março. A ideia - algo também esquecido hoje em dia - era não instaurar uma ditadura que durou 21 anos, mas expurgar a vida política dos elementos "subversivos" e "corruptos" e então devolver o poder ao civis. A falta completa de um programa político e a divisão entre militares "duros" e "moderados" - além do aparecimento do terrorismo de esquerda após 1966 - foi o que levou, mais tarde, ao adiamento da prometida redemocratização, resultando na marginalização dos próprios líderes civis do golpe de 64, como Carlos Lacerda. Não por acaso, já em 1965, o jornalista da revista O Cruzeiro, David Nasser - um dos mais ardorosos apoiadores da queda de Goulart - escreve um livro atacando duramente os novos governantes militares, chamado "A Revolução que se Perdeu a Si Mesma".
E os militares, foram realmente os agentes do imperialismo e do capital estrangeiro, como são pintados ainda hoje? Difícil endossar essa tese. A própria marginalização da direita civil que apoiou o golpe de 64 depõe contra a afirmação, repetida ainda hoje por muitos professores, de que os generais brasileiros agiram em nome da Shell ou da Coca-Cola. Pelo contrário: um dos fatos mais embaraçosos para os esquerdistas hoje no poder é que o regime militar brasileiro, sobretudo quando se inicia seu período mais duro, a partir de 1967, se afasta cada vez mais da influência norte-americana e adota, na prática, uma política nacionalista de forte presença e intervenção estatal na economia. Lembremos do governo Ernesto Geisel (1974-1979), no qual as relações entre o Brasil e os EUA estiveram estremecidas devido a uma política externa terceiro-mundista e antiamericana, demonstrada por fatos como o reconhecimento do governo marxista de Angola e o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. No mesmo período, assistiu-se a um processo de criação de estatais jamais visto antes, nem depois, na História brasileira. O aumento do intervencionismo e do dirigismo estatal, aliás, é um dos maiores legados do regime militar para o Brasil de hoje. Não é à toa que Lula fez recentemente tantos elogios à política nacionalista de Geisel e considera Delfim Netto um de seus gurus na área econômica.
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Um outro exemplo bastante ilustrativo é o da educação e da cultura em geral. Não obstante os atritos com os estudantes em 1968 - motivados muito mais pela presença de radicais de esquerda em seu meio do que de descontentamento genuíno contra o regime militar -, houve uma extraordinária expansão do ensino universitário no Brasil. Além disso, o regime não buscou, ao contrário do que ocorre em ditaduras totalitárias, tutelar o que era ensinado nas salas de aula. O máximo que os generais-presidentes tentaram foi enxertar nos currículos escolares a matéria de educação moral e cívica, já mencionada, que logo se voltou contra o próprio regime, tendo sido cooptada pela esquerda. Provavelmente, nunca se leu tanto Marx e Gramsci nas universidades brasileiras quanto nos anos 60 e 70 - o resultado, basta ir a uma sala de aula de uma unversidade pública ou particular hoje em dia para constatar. Na cultura, em plena época de porralouquice generalizada dos anos 60, com toda sua psicodelia e liberação sexual, e mesmo com censura, o governo investia milhões na realização de filmes nacionais, a maioria intragáveis, muitos dos quais de forte crítica política e social ao próprio regime. Foi um tipo muito estranho de ditadura, convenhamos: uma que renunciou totalmente à hegemonia cultural e ao controle mental sobre os estudantes, dando plena liberdade aos professores para fazer proselitismo ideológico esquerdista em sala de aula, e abrindo generosamente os cofres do Estado para que cineastas comunistas falassem mal do governo.
Tudo isso que está aí em cima, eu nem precisaria dizer, não visa a justificar o que ocorreu após 1964 no Brasil. Nada disso. Trata-se apenas de repor as coisas no seu devido lugar histórico. Os generais que deram o golpe e afastaram Goulart do poder não estavam lutando contra fantasmas - o risco de o Brasil se tornar uma ditadura de esquerda era real, como admite Jacob Gorender -: isso é um FATO, não uma conclusão resultante de qualquer simpatia minha pelos militares - aliás, inexistente.
O leitor inteligente e sem preconceitos ideológicos - aquele a quem este texto se dirige - já deve ter percebido, se chegou até aqui, que não estou me posicionando a favor do regime militar, nem da censura ou da tortura. O que não significa que eu não me coloque frontalmente contra as tentativas de manipulação e mistificação da História, que no caso em questão vêm principalmente da esquerda. Há, na verdade, mais continuidade do que ruptura entre 1964 e o Brasil de hoje. Um bom exemplo disso é que o mesmo argumento usado até hoje por alguns nostálgicos da ditadura, de que o País crescia e havia desenvolvimento econômico, é usado pelos defensores do governo Lula para justificar ou desviar a atenção de mensalões e corrupções afins (pelo menos era assim até alguns meses atrás, quando a "marolinha" não tinha virado ainda um maremoto...).