quinta-feira, junho 16, 2011

O ERRO DE VARGAS LLOSA (OU: REFLEXÕES SOBRE UM TABU)



"Em politica, a escolha não é entre o Bem e o Mal; é entre o preferível e o detestável". (Raymond Aron)



Não acreditei quando me disseram. Creio mesmo que, se não tivesse ouvido a informação de uma fonte fidedigna, merecedora de toda confiança, eu teria duvidado da sanidade mental de quem me deu a notícia. Acharia mesmo que a coisa não passava de calúnia ou maledicência. Mas era verdade, por mais incrível que fosse.


O escritor Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura do ano passado (o Comitê do Nobel, depois de várias derrapadas nos últimos tempos, finalmente parece que resolveu se redimir), apoiou abertamente, nas eleições presidenciais peruanas, o candidato vencedor, Ollanta Humala.


Aí você me pergunta: quem é Ollanta Humala?


Pense num milico ultra-nacionalista, na pior tradição de caudilhismo destrambelhado da América Latina, com um discurso que beira o fascismo (ou quando não é o próprio, transplantado para os trópicos). Um Hugo Chávez dos Andes, com uma biografia bem parecida - foi tenente-coronel do Exército, e inclusive já tentou um golpe de Estado apoiado pelo coronel venezuelano. Assim como aquele, não conseguiu chegar ao poder na marra, então decidiu fazê-lo pelas urnas, dizendo-se um democrata. (O golpismo, aliás, está na família: seu irmão, Antauro, está preso por ter liderado a quartelada, na qual morreram quatro soldados em 2005.)


Agora imagine o sujeito acima, não tendo conseguido ser eleito na primeira vez, apresentando-se agora aos eleitores, graças aos feitiços de um bando de marqueteiros petistas contratados, numa embalagem "light", "soft", como um político "moderado", negando de pés juntos qualquer vinculação com o chavismo e se dizendo um ardoroso convertido à democracia, ao livre mercado e ao respeito à propriedade privada.


Parece familiar? Tem cheiro, sabor e forma de farsa? E é mesmo.


Você deve estar se perguntando: o que levou Mario Vargas Llosa, um intelectual respeitado, dono de impecáveis credenciais liberais - defendia o liberalismo quando isso ainda era um anátema na América Latina, e chegou a ser agredido pelos esbirros de Chávez na Venezuela algum tempo atrás -, a dar seu apoio a esse aleijão ideológico em roupagem "Humalinha paz e amor" (ou Hugo Chávez antes de cair a máscara)?


A resposta está na adversária de Humala - e na falta total de senso de proporções. Keiko Fujimori, a candidata derrotada, é filha de Alberto Fujimori, o ex-presidente peruano que, descobru-se depois, nem peruano era (nasceu no Japão).


Fujimori, o pai, foi, como todos sabem, um desastre. Seu governo, apesar de algumas conquistas importantes (a derrota do terrorismo comunista, principalmente), afundou em um festival de abritrariedades e de escândalos de corrupção (algo, aliás, que o aproxima de outros governos vizinhos). Com Keiko não será diferente, deve ter pensado o autor de Pantaleão e as Visitadoras. Ademais, Fujimori o derrotou nas eleições presidenciais de 1990 (pelo que os amantes da Literatura deveriam ser-lhe gratos, diga-se de passagem).


Pois bem. Mesmo com esses motivos pessoais para detestar Fujimori, a decisão de Vargas Llosa de apoiar Humala é incompreensível. Mais que isso: é de uma idiotice sem tamanho.


Fujimori é corrupto, ladrão e assassino, mas está preso, cumprindo pena. Além do mais, sua criminalidade jamais ultrapassou os limites do Peru: ele jamais esteve vinculado a um esquema criminoso continental como o Foro de São Paulo. Já Humala não só é um golpista, como é cria do Foro, assim como Evo Morales, Rafael Correa, Daniel Ortega e Manuel Zelaya. Tanto que Hugo Chávez só o chama de "bom soldado". E que membros dessa organização revolucionária estão atrás das grades? (Pelo contrário, com a vitória de Humala, mais um deles está no poder num país latino-americano.)


Recorrendo a uma metáfora zoológica, tomada emprestada do filósofo Olavo de Carvalho - talvez o único filósofo de verdade que sobrou no Brasil; por isso ele é tão odiado -: votar em Humala para não ter de votar na filha de Fujimori é como escolher ser feito em pedaços por um tigre para não ser mordido por uma raposa. Se eleita, Keiko Fujimori seria uma raposa tomando conta do galinheiro. Ollanta Humala é um tigre pastoreando um rebanho de ovelhas. Um tigre financiado e patrocinado por outros tigres, tão predadores quanto. E um tigre não deixa de ser tigre porque tem as unhas pintadas, como escreveu Olavo.


Alvaro, filho de Vargas Llosa, também escritor, cunhou a expressão "esquerda vegetariana" para se referir a esquerdistas "moderados", em contraposição aos esquerdistas "carnívoros" ou radicais como Hugo Chávez e Evo Morales. Trata-se de uma tremenda bobagem. Na categoria de "vegetarianos" estariam políticos como Humala e Lula, um sujeito que enganou a todos durante décadas, e que é amigo pessoal das FARC e de Fidel Castro, tendo sido co-fundador, com este último, do Foro de São Paulo. Como já escrevi várias vezes, essa estória de esquerda "vegetariana" não passa de conversa mole para boi dormir. Na verdade, não existe esquerda vegetariana. Existe esquerda herbívora (no sentido de ruminante).


Toda a idéia das "duas esquerdas", tão cara a tantos intelectuais esquerdistas latino-americanos, tem por único e exclusivo objetivo a salvação da esquerda, nada mais que isso. O que se quer é evitar, assim, o surgimento de uma direita séria e democrática. É isso, mais do que a ditadura cubana ou as fanfarronadas bolivarianas, o que mais escandaliza e o que mais causa horror a pessoas como Vargas Llosa, pai e filho.


Por que isso? Porque Vargas Llosa e seu filho, assim como muitos iguais a eles, são ex-comunistas (ou ex-esquerdistas), mas não são anticomunistas (nem anti-esquerdistas).


Sendo ex-comunistas, falta-lhes a coragem e a ousadia necessárias para dar o grande salto, declarando-se abertamente anticomunistas. E, como tal, sentem a necessidade, até mesmo psicológica, de se agarrarem ao cordão umbilical que os mantém presos ao útero esquerdista. Desse modo, podem criticar a esquerda (a "carnívora") sem parecerem "reacionários" ou "fascistas". Fazem, como Arnaldo Jabor em relação aos desmandos éticos do PT, uma crítica de esquerda ao bolivarianismo.


O exemplo de Mario Vargas Llosa ilustra à perfeição a persistência do talvez mais arraigado tabu de todos os tempos: o que os norte-americanos chamam de anti-anticomunismo. Consiste esse tabu na proibição de se declarar anticomunista, mediante a matização da esquerda, embora não se faça o mesmo com a direita, vista sempre como um bloco único, monolítico. Esse tabu é tão forte que se revela facilmente diante da escolha entre um esquerdista bolivariano travestido de democrata como Humala e uma picareta como Keiko Fujimori.


Basta um pequeno exercício para comprovar essa realidade. Existem milhares de ex-comunistas, que são vistos até com certa simpatia pelo mainstream. Todos conhecem pelo menos um. Mas quantas pessoas você conhece, prezado leitor, que, já tendo transitado um dia por algum partido ou organização comunista, declaram-se abertamente anticomunistas?


Fernando Gabeira, Dilma Rousseff, Antonio Palocci, José Dirceu - para citar os brasileiros - foram marxistas na juventude ou ligados, de uma forma ou de outra, à ideologia comunista. Quantos, porém, chegaram ao nível de um Arthur Koestler, um Vladimir Bukowski, um Raymond Aron, e se tornaram anticomunistas?


Ser ex-comunista (e nem precisa ser "ex"), no Brasil e na América Latina, continua a ter um certo charme, é algo considerado até mesmo sexy e aceitável. Mas, anticomunista? Ah, isso não... Dizer-se anticomunista (ou conservador) é declarar-se morto política e socialmente; é passar recibo de reacionário, de ultra-direitista, de intolerante, de anti-democrata e de anti-progressista. Curiosamente, não se diz o mesmo de quem se apresenta como antifascista. É permitido ser ex-comunista (ou mesmo comunista), mas não (nunca, jamais!) anticomunista. É a teoria do "totalitarismo favorito", tão brilhantemente analisada por Jean-François Revel.


Por não terem coragem de cruzar o Rubicão ideológico, muita gente contribui para manter acesa a ilusão comunistóide ou marxistóide, autoenganando-se com adjetivos eufemísticos como "moderado" ou "vegetariano". Em nome da conservação de uma antiga paixão ideológica de juventude, deixam-se cegar pela perda do senso de proporções. Nem um Prêmio Nobel como Vargas Llosa escapou dessa armadilha mental.

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