Lembro também das especulações que surgiram nos dias seguintes. Pelo menos na Universidade, a tese preferida de muitas pessoas - ouso dizer, da maioria -, naqueles dias, era de que o ataque não fora obra de nenhum grupo radical islâmico, como a Al-Qaeda, mas dos serviços secretos norte-americanos, a CIA, ou mesmo o Mossad israelense. Um dos maiores luminares da esquerda nacional, o economista Celso Furtado, escreveu, pouco antes de morrer, um artigo defendendo explicitamente essa tese. Um de meus professores do mestrado também acreditava piamente nessa teoria conspiratória e passou uma tarde tentando me convencer que o atentado fora engendrado não em algum rincão esquecido do Oriente Médio, mas nos porões da Casa Branca. Culpa da globalização, enfim. Foi preciso algum tempo até que os autores dos ataques fossem conhecidos. Mas, mesmo assim, o Blame America first continuou seu trabalho. Em artigo inesquecível, o ex-frei Leonardo Boff demonstrou toda sua piedade cristã e visão humanista, ao escrever que esperava que não dois, mas vinte e cinco (!) aviões atingissem as Torres Gêmeas... Afinal, era tudo culpa da globalização, lembram-se?
Posso dizer que, desde então, muitas das teses que eu acalentei durante anos foram por água abaixo. De fato, para mim, o 11 de setembro foi um verdadeiro turning point. Em especial o antiamericanismo, que eu já começara a questionar, embora timidamente, esvaiu-se por completo, juntamente com as dezenas de e-mails de júbilo pela morte de quase 3 mil pessoas, e que entupiram minha caixa de correio eletrônico após os ataques. Mais que isso, à medida que eu analisava os argumentos utilizados pelos críticos dos EUA para justificar os atentados - os americanos "estavam colhendo o que plantaram", o terrorismo de Bin Laden era um caso de "criatura se voltando contra o criador" etc. -, eu me convenci cada vez mais da fragilidade, para dizer o mínimo, do antiamericanismo. Descobri, então, que por trás de um discurso sistematicamente incubado por décadas, escondia-se uma terrível realidade, baseada na propaganda do genocídio e no ódio sem tréguas à própria idéia de civilização. Um discurso que, hoje, infelizmente, é mais forte do que nunca.
Qual o denominador comum a todas as manifestações contrárias às intervenções norte-americanas em países como Afeganistão e Iraque? É a idéia de que a democracia, por ser um valor "ocidental", não pode ser "exportada" para esses países. Coisas como liberdade de expressão e direitos humanos, por conseguinte, não seriam objetivos comuns à humanidade, mas uma característica cultural do Ocidente, assim como o hip-hop e a Coca-Cola. Em nome da preservação da "diversidade cultural", portanto, seria necessário tolerar, e até aceitar, práticas que, aos olhos ocidentais, seriam reprováveis ou repulsivas, mas que fazem parte da paisagem local. Diante disso, a democracia seria um valor relativo, não universal. A esse discurso culturalmente relativista, muito caro a alguns antropólogos, e que se tornou uma espécie de dogma a partir dos anos 90, batizaram de multiculturalismo.
Há tempos os multiculturalistas já ultrapassaram a linha tênue existente entre o respeito à diversidade e a justificação de práticas bárbaras e criminosas. O fascínio pelo "outro", defendido primeiramente por Montaigne e Rousseau, já degenerou há muito em justificação da barbárie. É isso o que demonstra a atitude relativista em relação ao terrorismo e às violações aos direitos humanos em países da Ásia e da África. Práticas como a mutilação genital de meninas e o infanticídio - ainda praticado em algumas tribos indígenas brasileiras, e tolerado e até defendido por alguns antropólogos tarados -, assim como o incesto e o canibalismo, são inaceitáveis, no mundo em que vivemos, não porque sejam algo estranho aos olhos ocidentais, eurocêntricos ou cristãos, mas porque seu banimento é um imperativo do respeito à dignidade humana e um alicerce da vida civilizada. Sem isso, recairíamos na barbárie mais completa, regressaríamos aos tempos das cavernas, deixaríamos a posição ereta e comeríamos carne crua. No limite, o discurso relativista pode ser utilizado - como de fato é - para justificar os atentados com homens-bomba de organizações terroristas islamitas como a Al-Qaeda e o Hizbollah, pois, afinal, faz parte do Islã acreditar na jihad - a guerra santa - e que a recompensa do martírio serão 72 virgens no Paraíso... Isso não tem nada a ver com respeito à diversidade, mas com fanatismo e demência.
O terrorismo islamita é o maior inimigo atual da humanidade, assim como o totalitarismo comunista ou fascista o foram no passado. E isso não porque Bush ou Rice disseram, mas porque a realidade trata de mostrar, todos os dias, que a democracia é superior a qualquer ideologia obscurantista e totalitária. Nenhum outro sistema político garante a liberdade humana. Há algumas semanas, uma manifestante interrompeu um discurso de Bush para chamá-lo de criminoso de guerra, enquanto outro fazia gestos obscenos e o mandava se foder. Alguém consegue vislumbrar cena parecida no Irã ou em Cuba?
O Ocidente é superior ao Oriente não porque o cristianismo seja uma religião melhor do que o Islã ou o budismo, ou porque a moral judaico-cristã seja intrinsecamente mais perfeita do que a moral muçulmana, hindu ou confucionista. Não. O Ocidente é superior porque foi nessa parte do Planeta que as idéias de liberdade e tolerância - inclusive, a liberdade religiosa - surgiram e se consolidaram, tornando-se, em alguns países, um dado da própria cultura. A democracia não é superior à tirania porque é ocidental, mas porque é uma conquista da civilização. Inclusive, foram essas idéias de liberdade e tolerância que estiveram na origem do salto técnico dado pela humanidade nos últimos quinhentos anos, proporcionado pela Reforma religiosa, pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial (e do qual os terroristas se utilizam, importando do Ocidente armas sofisticadas). De certo modo, há uma relação entre os ideais democráticos e a superioridade científica e tecnológica.
É claro que, nessa luta, não se pode ignorar as óbvias diferenças entre a civilização ocidental, laica, democrática e tolerante, e a islâmica, predominantemente religiosa, autocrática e intolerante. Autores como Bernard Lewis já chamaram a atenção para esse fato, ao apontar que, em toda sua História, o Islã, ao contrário do cristianismo, jamais passou por algo parecido com a Reforma religiosa do século XVI ou com o Renascimento. Obviamente, isso não quer dizer que a cruz é superior ao crescente, ou que a Bíblia, e não o Corão, é a verdadeira Palavra de Deus. Deixo esse debate para os teólogos e religiosos. A verdadeira questão, aqui, é que em uma parte do planeta se estabeleceram as bases para a tolerância religiosa, e em outra, não. E que um Estado laico e secular é infinitamente superior a um Estado teocrático e religioso, seja ele muçulmano, católico ou protestante.
Esse tipo de atitude não pode ser creditado apenas a uma opção política. É uma questão, também, moral - ou melhor: amoral. Figuras como as acima citadas desfrutam das facilidades e conveniências da democracia em países como os EUA ao mesmo tempo em que as negam para outros povos de culturas e religiões diferentes. Usam, inclusive, o argumento da soberania - um conceito, curiosamente, ocidental - para defender o imobilismo em casos como o do genocídio em Darfur. A pergunta que fica é: trocariam a Big Apple ou Londres por Cabul ou Teerã?
O mesmo discurso esquerdista que anunciou os atentados de 11 de setembro de 2001 naquela palestra sete anos atrás - antiglobalização, antiamericano, antidemocracia e anti-direitos humanos - persiste hoje, na forma de justificação da barbárie terrorista e obscurantista sob o rótulo de "respeito à diversidade". Não se leva em conta que a democracia não é a antítese da diversidade, mas sua garante. É por ter consolidado em suas instituições esse princípio, que o Ocidente é superior.
Um comentário:
Caro Gustavo
A disputa é ferrenha, mas para mim este foi um de seus melhores textos.
PARABÉNS!
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