Os Jogos Olímpicos de Pequim passarão à História não tanto pelos recordes quebrados, pelas medalhas de Michael Phelps ou por qualquer outra façanha esportiva, mas pelo ambiente geral de farsa que tomou conta de tudo e de todos. Desde a cerimônia de abertura - um show de pirotecnia que teve até cantora-mirim dublada por outra criança, mais feinha, e que, em matéria de genuinidade, foi algo realmente "made in China", não tendo deixado nada a dever aos antigos shows rebolados das mulatas de Sargentelli -, o que se tem visto em Pequim é um festival de charlatanice nacionalista. Para nós, brazucas, o evento servirá para que mostremos ao mundo, junto com as (poucas) medalhas conquistadas, todo nosso ufanismo, todo nosso espírito patrioteiro, nosso provincianismo incurável e nossa alegre caipirice. Nesses quesitos, somos recordistas. Dá-lhe Brasil!
Mal começou a contagem de medalhas, a turma do "eu te amo meu Brasil, eu te amo" e do "ninguém segura este País" - ou seja, dez entre dez brasileiros, nestes dias - tratou logo de implicar com a forma como as emissoras de TV dos EUA estão transmitindo o quadro de classificação dos países por medalhas nos Jogos, a qual adota como critério não o número de medalhas de ouro, mas o total conquistado. Pela quantidade de medalhas de ouro que o país obteve - critério da organização dos Jogos e do Comitê Olímpico Internacional -, a China está vencendo de lavada. Pelo número total de medalhas, incluindo aí as de prata e bronze, os EUA estão ganhando. Foi o suficiente para que comentaristas brasileiros, que não perdem a chance de falar mal dos EUA não importa por que motivo for, denunciassem mais essa manobra dos gringos imperialistas. Arnaldo Jabor, por exemplo, chegou a comparar o critério adotado pelas emissoras americanas com a eleição de Bush em 2000, aquela que dizem que foi roubada. Do mesmo modo como os bocós esquerdistas torciam antigamente para a ex-URSS, ele chegou a torcer, inclusive, para que em breve o PIB da China supere o dos EUA, pois assim, quem sabe, esses ianques arrogantes vão conhecer o seu lugar... Para atacar o Jorjibúshi, vale tudo, até lembrar o resultado de uma eleição de oito anos atrás (reafirmado, aliás, quatro anos depois). Que malandros esses gringos, e que patrioteiros!, foi o que se ouviu dizer nesses últimos dias.
Quase ninguém viu, ou melhor, quase ninguém se importou, com o fato de que, na "nossa" contagem, a manipulação dos números - ou, pelo menos, da imagem televisiva - falou bem mais alto. A cobertura dos Jogos pela imprensa brasileira, até o momento, tem-se limitado a mostrar os três ou quatro primeiros colocados em número de medalhas, seguidos, imediatamente, do Brasil. Um telespectador menos informado, ou mais distraído - a quase totalidade dos telespectadores -, ao ver de relance o quadro de medalhas mostrado na TV pelos repórteres da Globo ou da Band, teria a nítida impressão de que o Brasil está na elite das potências esportivas, e não, como de fato ocorre, na rabeira, atrás de países como Zimbábue e Jamaica. Chegaria à conclusão de que o Brasil não estaria na trigésima oitava colocação na classificação geral de medalhas - segundo a contagem mais atualizada -, mas sim em quarto ou quinto lugar. Não sendo possível competir com China e EUA, nem tendo medalhas suficientes para manipular o quadro geral, o Brasil foi elevado, por essa malandragem estatístico-televisiva, à condição de quase-potência olímpica. Tudo pela auto-estima nacional.
As Olimpíadas, em termos de patriotada, só perdem, entre nós, para a Copa do Mundo. Isso é demonstrado, de forma literalmente lacrimosa, pelas lágrimas de nossos atletas. Brasileiro adora chorar. Chora na derrota, como choraram o ginasta Diego Hipólito e o judoca que por pouco perdeu o bronze. Chora na vitória, como o nadador César Cielo ao ouvir o hino nacional. Chora ao ouvir o Galvão Bueno se esgoelando e agredindo nossos tímpanos com suas transmissões ufanistas. Tudo em nome do oba-oba. Brasileiro chora, desconfio, até se ganhar medalha em campeonato de origami ou de futebol de botão. Assim como chora, de tristeza, por não ter correspondido à expectativa geral. É muita emoção, como diz o Galvão Bueno, com os atletas ganhadores agradecendo o apoio "do País" e de suas famílias, e os perdedores se desculpando, envergonhados, por terem decepcionado a todos. Também pudera: ali estão os atletas, os "representantes da nação".
Aí é que está. Não há nada do que se envergonhar, nem do que se orgulhar, "perante a nação", por ter perdido ou ganho uma medalha olímpica. Isso porque os atletas, medalhistas ou não, não são "representantes da nação" coisa nenhuma. Ninguém os elegeu. Eles são, isso sim, representantes de si mesmos, no máximo de seus clubes, se têm algum. Suas conquistas, por conseguinte, não são "da nação", como não é "da nação", mas da humanidade, um, digamos, Prêmio Nobel. São conquistas deles, individuais. No máximo, conquistas da equipe, no caso de esportes coletivos. É esse o verdadeiro espírito olímpico, aliás. As Olimpíadas, vamos lembrar, surgiram na Grécia antiga para celebrar o "mais rápido, mais alto, mais forte", para enaltecer o corpo humano e o indivíduo, sua capacidade de superar os limites físicos, e não para servir de pretexto ao ufanismo de qualquer nação. Quem deve ser celebrado e louvado não são os povos, nem muito menos os governos: são os atletas, que se esforçam e dedicam suas vidas ao esporte. É a eles, e a mais ninguém, que pertence a glória olímpica.
Esse fato tão evidente, tão elementar, é constantemente esquecido ou negado pelos comentaristas esportivos brasileiros, que, por serem brasileiros, adoram um oba-oba, vestindo a camisa da "coletividade". Outro dia, vendo uma dessas invenções tipicamente nacionais que é a mesa-redonda, ouvi um dos comentaristas reclamar, pela milionésima vez, da falta de apoio das autoridades aos atletas brasileiros como a causa do fraco desempenho do Brasil nas Olimpíadas. No Brasil, o esporte é tratado como uma questão de Estado, como se fôssemos uma Coréia do Norte ou uma ex-Alemanha Oriental. Existe, inclusive, um Ministério dos Esportes, não por acaso ocupado por um militante do PCdoB. O que quase ninguém diz é que Michael Phelps, por exemplo, não é o supercampeão que é por causa de nenhum "apoio das autoridades" dos EUA. Não vi Phelps, aliás, derramando nenhuma lágrima em nenhuma das oito vezes que conquistou a medalha de ouro, nem agradecendo à sua "mãe-que-lhe-deu-tudo" etc. Estava, sim, irradiando felicidade por essa conquista pessoal e de sua equipe, como lhe é de direito. Sem demagogias nacionalisteiras e choradeiras patrióticas. Afinal, ele é um atleta, não um "representante da nação". Além do mais, se dependesse de apoio oficial, o cinema brasileiro, por exemplo, seria o melhor do mundo.
Na realidade, as Olimpíadas são uma oportunidade para que extravasemos nosso velho recalque de país-que-quase-chegou-lá. Nelson Rodrigues escreveu que, ao vencer a Copa do Mundo de Futebol em 1958, o Brasil estava exorcizando seu "complexo de vira-latas". Hoje, o Brasil é uma potência futebolística, mas não olímpica. No quesito Olimpíadas, vigora o "complexo de quase-potência", ou, para usar uma figura de linguagem praticamente literal, um "complexo da medalha de bronze". É uma metáfora do Brasil, um país que geralmente passa para as semifinais, mas quase sempre deixa escapar os primeiros lugares. E chora, e chora...
A frustração só não é maior do que a manipulação política do esporte. Já escrevi antes que não acredito em separação entre esporte e política. As vitórias nas Copas do Mundo, o culto quase religioso a um Ayrton Senna - em um esporte popularíssimo como a Fórmula 1... - e, agora, as Olimpíadas de Pequim demonstram de forma clara que tal separação não passa de uma mentira com a qual todos concordamos em acreditar, assim como a lorota de que "o que vale é competir" e "só em estar aqui já é uma vitória". Bobagem, bobagem. Esporte tem tudo a ver com política. Por isso acho as Olimpíadas uma chatice. Por isso estou fugindo da TV nestes dias. Por isso os Jogos de Pequim são uma farsa. Desde a abertura, com criancinha dublada e show pirotécnico gerado por computador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário