quinta-feira, agosto 21, 2008

PENSANDO "REVOLUCIONARIAMENTE" (OU: COMO SE TRANSFORMAR NUM ZUMBI AMESTRADO)

Tenho o costume, nas horas vagas, de vasculhar a internet em busca de conhecidos e amigos. Numa dessas buscas, esbarrei num texto de um conhecido meu, com quem aliás já troquei correspondência aqui (http://gustavo-livrexpressao.blogspot.com/2007/11/dilogo-entre-um-revolucionrio-de.html). Ele, inclusive, para minha frustração, pediu-me que eu não o escrevesse mais... Mas, fazer o quê?, não consigo resistir à tentação. Atualmente, ele exerce a função de professor universitário, do curso de Ciências Sociais de uma universidade regional na mesma província onde travamos contato por algum tempo, lá se vão uns bons quinze anos. E desde então tomamos rumos diferentes, tanto profissionalmente quanto, sobretudo, ideologicamente. Enfim, como se vê por sua recusa em debater comigo, um cara democraticamente aberto ao monólogo, esse meu ex-camarada.

O texto foi postado por ele em um fórum de discussões que mantém com alguns colegas e estudantes. É de 21 de fevereiro deste ano, e o título é "Cuba não é socialista". Dei-me ao trabalho de ler até o final. O estilo é obtuso e as idéias... bem, as idéias dispensam comentários, como vocês poderão ver. Mas eu comento assim mesmo, pois, apesar de tudo, eu insisto em tentar dialogar com esse pessoal. Nessas horas, tenho que me esforçar para ficar sério e conter um pouco meu espírito, digamos, galhofeiro. Vamos ao texto, uma pérola de lógica e erudição política.

Logo após fazer a afirmação retumbante, em letras garrafais, que dá título ao texto, a primeira coisa que o autor diz é que "A renúncia de Fidel Castro e sua sucessão por Raul Castro, seu irmão, significa [sic] que a burocracia castrista continua no poder". Quanto a isso, estou de acordo. Mas prestem atenção no que ele diz em seguida: "Significa ainda que ela [a burocracia castrista] dará prosseguimento ao sufocamento das conquistas da Revolução de 1959 e o retorno ao capitalismo". E isso por quê? Ora, porque "o proletariado cubano não conseguiu construir um partido revolucionário que conquistasse a maioria da população trabalhadora cubana para a realização da Revolução Política". Captaram a mensagem?

Calma, tem mais. Segundo nosso amigo, a que se destinaria essa "revolução política", necessária para construir um "partido revolucionário" que derrubasse a "burocracia castrista" e revertesse o processo de "retorno do capitalismo" na ilha de Cuba? Simples, muito simples. Ele mesmo explica: "A Revolução Política manteria as conquistas econômicas da Revolução de 1959", diz. E de quais conquistas ele está falando? Vamos a elas: "fim da grande propriedade privada dos meios de produção, a propriedade capitalista e, conseqüentemente da burguesia". Mais ainda: "o monopólio do comércio exterior pelo Estado; e a planificação da economia". Claro que todas essas "conquistas", e isso o texto não diz, se fizeram graças aos confiscos de Fidel Castro, ao empobrecimento geral da população, à dependência econômica do país da defunta URSS e - ah, claro, como eu poderia esquecer esse detalhe? - alguns milhares de burgueses contra-revolucionários executados no paredón... Aliás, este último também uma das "conquistas" da revolução, como ele diz, assim como devem ter sido a guilhotina e o Gulag. O fim da burguesia, o extermínio de uma classe social inteira, no melhor estilo leninista. Adiante.

Nosso amigo continua cantando as maravilhas da propalada "revolução política": "Além disso, traria a democracia política permitindo a liberdade de organização, reunião e manifestação política para os trabalhadores que respeitassem as conquistas econômicas da Revolução de 59, mas que divergissem sobre os caminhos políticos a traçar em Cuba". Viram que bonitinho? A "revolução" traria a "democracia política", que legal... Mas - vejam bem - não se trata da democracia de fachada capitalista não, essa do voto livre e do estado de direito! Afinal, essas coisas, como sabemos, não passam de ilusões burguesas dos veadinhos liberais, não é mesmo? Nada disso. Seria uma democracia dos e para os trabalhadores, e somente para aqueles que respeitem as "conquistas econômicas da Revolução de 59", como ele diz. Ou seja: somente para aqueles que disserem amém para o que Fidel e Raúl fizeram na ilha há quase 50 anos, e de que eu falei agora há pouco. E quanto àqueles que não se conformassem a essa situação, que insistissem em não seguir a coletividade e em, digamos, tocar uma birosca ou um carrinho de cachorro-quente na esquina? Para esses, infelizmente, só haveria duas saídas: uma bala na nuca, ou o exílio. A democracia de que fala nosso camarada, a "verdadeira" democracia, é a democracia dos trabalhadores, um "governo operário e camponês". Ou, para falar com todas as letras: a ditadura do proletariado. Adiante.

"A Revolução Política vitoriosa poria um fim ao retorno ao capitalismo implementado pela burocracia castrista em Cuba. A instalação da democracia, [em] que tanto tem esperança a burguesia com a renúncia de Fidel Castro e que tanto alardeia [sic] seus meios de comunicação refere-se à liberdade para a acumulação de capital pela propriedade privada capitalista e o direito à liberdadede organização política da burguesia para defender abertamente o retorno ao capitalismo. A burguesia refere-se a democracia como sinônimo de capitalismo: liberdade de comércio (economia) e liberdade política (disputa pelo controle do governo do Estado)".

Viram que graça? "Que mané democracia o quê! Isso não passa de um truque da burguesia para continuar lucrando e tal", é o que diz nosso oráculo. Ou, melhor dizendo, um "sinônimo de capitalismo"... No que eu quase concordo com nosso amigo. Sim, porque, como sabemos, coisas como liberdade de expressão - inclusive para pregar o fim da democracia -, de associação e de reunião são realmente incompatíveis com qualquer outro sistema econômico que não seja o capitalismo. Pelo menos, não parecem combinar muito com o tipo de sistema que os bolcheviques implantaram na Rússia em 1917, ou que os comunistas impuseram na China em 1949, ou em Cuba dez anos depois. Aliás, já escrevi em outro lugar que nem sempre pode haver capitalismo com democracia, como no caso do Chile dos tempos do Pinochet, mas nunca - nunca mesmo - houve um caso de democracia SEM capitalismo, sem economia de mercado e livre iniciativa. Pois é. O capitalismo pode até não ser sinônimo de democracia, mas não estou muito seguro de que a recíproca é verdadeira...

O resto do texto, como vocês já devem ter percebido, é uma ladainha só, vou poupá-los de transcrevê-lo aqui. Vai uma pequena amostra da cantilena que segue: "Cuba não é e nunca foi socialista", porque, afinal, "O socialismo, primeira fase do comunismo, é um modo de produção superior ao capitalismo", e "nenhum país consegue alcançar o socialismo (primeira fase do comunismo, fase inferior) sozinho", "O socialismo em um só país é impossível" etc. Há outros textos dele no fórum, sempre na mesma linha. Alguns, criticando a direção da UNE (leia-se: PCdoB), por não ser suficientemente revolucionária... Um delírio só.

Agora que vocês já foram apresentados a esse pensamento superior, creio que cabem algumas observações. Para nosso amigo, não existe qualquer contradição em dizer que Cuba não é socialista e falar, logo depois, na necessidade de impedir a "volta do capitalismo" na ilha, que estaria sendo realizada pela "burocracia castrista". Mas, se Cuba não é socialista, o que seria então? Ele não especifica, mas, como eu já o conheço de outros carnavais, e inclusive já batemos altos papos sobre o assunto, eu posso dizer: Cuba é um "Estado operário burocraticamente degenerado", como foram todos os outros Estados que se intitulavam repúblicas socialistas ou populares. Quem criou essa tese? Leon Trotsky, um dos pais fundadores da finada URSS. O autor do texto é trotskista. Os trotskistas, como já afirmei aqui, são os sebastianistas da esquerda. Ao contrário de seus rivais stalinistas e reformistas, não reconhecem a antiga URSS, ou Cuba, como países socialistas. Desse modo, mantêm viva a chama da ilusão marxista, esperando o dia em que, finalmente, virá a tão sonhada revolução... Uma posição muito cômoda, certamente. É como se dissessem para si mesmos, todos os dias: "Vamos tomar o poder, fuzilar uns quantos, destruir a oposição e planificar tudo. Se não der certo, se o resultado for não o reino da liberdade e da felicidade humana, mas uma distopia de 100 milhões de mortos, a gente diz que não era socialismo, e pronto. Aí começamos tudo de novo". E assim indefinidamente, ad infinitum, até que a realidade acabe com essa sua mania irritante de contrariar nossos sonhos e resolva se curvar à superioridade de nossas idéias...

Algo muito honesto, como se vê. O comunismo, no século XX, deixou "apenas" cem milhões de mortos. Mas, para eles, os trotskistas, isso não importa muito. O que realmente importa não foram os mortos em si - Trotsky foi responsável por alguns massacres, antes de ter sido, ele mesmo, vítima da máquina totalitária que ajudou a criar -, mas o fato de que os regimes que produziram essas pilhas de cadáveres não teriam sido, segundo os seguidores de Trotsky, genuinamente socialistas. Mais pragmáticos, os stalinistas, com a ajuda de seus aliados reformistas, sonham em voltar no tempo e restabelecer o que foi implantado na Rússia sob Lênin e Stálin. Os trotskistas, mais idealistas, querem fazer o mesmo, só que para estabelecer não o que foi, mas o que poderia ter sido... Alguém aí está disposto a comprar essa idéia maravilhosa?

Claro está que quem escreveu o texto que eu reproduzi acima não está dando a mínima para o que ocorre na ilha de Fidel e Raúl, nem para a História de Cuba e da Revolução Cubana. Desconfio até que seu conhecimento sobre Cuba não vai além de saber o nome da capital do país - e olhe lá. Para ele, o regime castrista e a Revolução Cubana são apenas uma desculpa para fazer proselitismo revolucionário e tentar angariar alguns recrutas para a sagrada causa da revolução proletária. Os fatos, bem, os fatos que se danem!... Adiantaria lembrar, por exemplo, que Cuba tinha o 3. nível de vida das Américas antes da gloriosa revolução de 1959, e que hoje ostenta o 29. lugar nesse quesito, estando atrás apenas do Haiti? Ou que Fidel enganou a todos, inclusive os EUA, dizendo-se um democrata e anticomunista apenas para entregar o país de bandeja nas mãos da antiga URSS e consolidar seu poder pessoal, usando, para isso, os comunistas da ilha como tropa de choque? Valeria a pena dizer que o "proletariado cubano", seja lá o que isso significa, já fez e faz, há tempos, sua "revolução política", VOTANDO COM OS PÉS, ou seja, fugindo na primeira oportunidade da ilha-prisão? Claro que não. O importante para nosso aprendiz de Trotsky tupiniquim não é analisar a realidade do país em questão, mas - única e tão-somente - adaptar a realidade da ilha a um esquema ideológico pré-montado. Um esquema muito bonitinho, muito certinho, aplicável a qualquer país, em qualquer época e lugar.

É isso que me chamou mais a atenção no texto. Não há nada que mereça ser chamado ali, mesmo remotamente, de análise. Trata-se de uma visão esquematizada, que pode ser resumida em alguns chavões ou idéias-feitas. Troque Cuba, por exemplo, por China ou Coréia do Norte e o texto será, sem tirar nem pôr, exatamente o mesmo. Substitua "Revolução de 59" por "Revolução de 17" (no caso da Rússia) ou "Revolução de 49" (no caso da China) e não fará qualquer diferença. Mude burocracia "castrista" por "stalinista" ou "maoísta" e dará tudo no mesmo. O resto é só encaixar, como naqueles jogos infantis de montar: coloque um "revolução política" aqui, um "impedir a restauração do capitalismo" acolá, e - voilá! - está pronto um autêntico texto revolucionário socialista. Um modelo, em outras palavras, que se aplica a qualquer situação - um socialismo, se preferirem, multiuso, prét-à-porter.

Aliás, não se pode dizer sequer que o texto é de autoria dele, de meu conhecido. Mas se for, não me surpreenderia nem um pouco. Uma das características do que se convencionou chamar de "pensamento" esquerdista - e agora me refiro tanto aos trotskistas quanto aos demais - é a aplicação de modelos esquematizados como o descrito acima, sem a necessidade de raciocínios mais elaborados. O resultado disso é um processo psicológico de perda da personalidade e da individualidade, aquilo que Gilberto Freyre chamou certa vez de "ditadura do slogan": livres da obrigação de pensar por si mesmos, com suas próprias cabeças, os militantes de esquerda, assim como seus primos totalitários nazistas e fascistas, passam a se comportar como verdadeiros robôs ou zumbis, substituindo o debate pela repetição mecânica de palavras de ordem decoradas de algum manual ou cartilha. Esse processo de idiotização voluntária culmina no fenômeno dos manifestos e outros textos coletivos, nos quais os esquerdistas procuram compensar, pela força do número, a fragilidade de suas idéias. O importante, para eles, não é o exercício do livre pensamento, o qual só pode realizar-se na esfera privada, individual, até porque já renunciaram a isso faz tempo, em nome do fetiche do "coletivo". De certa forma, trata-se de uma regressão mental, da substituição da mentalidade racional pelo pensamento mágico. Assim como os antigos alquimistas, que acreditavam poder transformar chumbo em ouro pela simples enunciação de fórmulas e palavras secretas, os nossos revolucionários socialistas de hoje pensam ser capazes de mudar o mundo com a simples repetição de esquemas e slogans marxistas. Afinal, se o marxismo é mesmo a Verdade Revelada, se Marx e Lênin já resolveram todos os problemas, bastando apenas retornar à pureza dessa fonte original, para que perder tempo com outras leituras? Para que pensar?

Essa perda da individualidade está na base do protótipo ideal do revolucionário, o "homem do futuro". Sua característica principal é a anulação do "eu", a total despersonalização do indivíduo, em nome da "revolução". Isso se reflete nos textos saídos dos cérebros esquerdistas. Lembro que, quando eu militava num desses grupúsculos trotskistas, ao lado, aliás, do autor do texto comentado acima, tinha uma grande dificuldade em usar a primeira pessoa do singular. Imbuído dos velhos preconceitos marxistas, rotulava os textos escritos com o pronome pessoal como subjetivistas, e achava que eles não tinham nenhum valor por causa disso. Soube depois que muitos escritores que militaram em partidos comunistas, como Graciliano Ramos, tinham essa mesma dificuldade. O uso do "eu" estava proibido, o Partido o desencorajava. Só valia o que tivesse a chancela da objetividade revolucionária, que se confundia com o "coletivo". Antes, eu desconfiava de qualquer texto que visse escrito na primeira pessoa do singular. Hoje, só dou valor aos que têm a marca do autor, e não se escondem atrás de pretensas objetividades pseudocientíficas.

Sei que tudo isso que escrevi pode parecer bobagem para muita gente. Afinal, os trotskistas, no Brasil, não encheriam metade de uma Kombi. Tanto que tentam fazer propaganda política até por e-mail. Numa fauna já por si exótica, eles são os mais exóticos de todos, os mais intrigantes e esquisitos, folclóricos até. Sei disso, até porque já fui um deles. Mas a questão não é essa. Irrelevantes que sejam os militantes desse credo obsoleto, o fenômeno que descrevi aí em cima é algo grave - uma verdadeira doença mental. A recusa voluntária a pensar, o ato de escrever mecanicamente segundo um esquema pré-estabelecido, sem qualquer esforço intelectual digno do nome, é algo que demonstra até que ponto a ideologia esquerdista conduz a uma espécie de entorpecimento cerebral, à anulação completa de qualquer possibilidade de pensamento crítico e racional. Sem falar na perversão da linguagem para fins políticos, como denunciou George Orwell. Um caso clínico, para dizer o mínimo.
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Certa vez li uma definição de esquerdista que achei ótima. É assim: um esquerdista é um sujeito que, quando adolescente, pensa e se comporta como um velho e que, quando velho, pensa e se comporta como um adolescente. Um adolescente completamente robotizado e idiotizado. Um verdadeiro zumbi amestrado. É de dar pena.

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