segunda-feira, agosto 11, 2008

A VERDADEIRA GLÓRIA


Quem assistiu à cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, no último dia 8, viu um espetáculo realmente grandioso. Durante quatro horas, o mundo inteiro presenciou um show de luzes, cores e coreografias arrojadas de encher os olhos e cair o queixo. Um verdadeiro conto-de-fadas, preparado meticulosamente durante anos e feito para impressionar e transmitir a imagem de um país que se orgulha de si mesmo, capaz de construir, em pouco tempo, alguns dos estádios e complexos esportivos mais impressionantes de todos os tempos, a um custo de bilhões de dólares. Uma beleza, enfim.

Tudo muito bonito, muito colorido. Mas... será a glória?

Durante a cerimônia de abertura dos Jogos, fiz-me essa pergunta várias vezes, enquanto assistia ao vídeo na internet. Passaram-se em revista 4 mil anos de história da China. Estavam lá, em fantasias rebuscadas e elaboradas coreografias, os primeiros imperadores, Confúcio, os monges budistas... Só não estavam os últimos cento e poucos anos, mais especificamente o período que os chineses chamam hoje, pudicamente, de "anos da vergonha" - a Revolução comunista de 1949, o Grande Salto Adiante (30 milhões de mortos de fome, em três anos), a Revolução Cultural... Sobre Mao Tsé-tung, o Grande Timoneiro e "pai" da China moderna, nenhuma imagem, nada. Assim como nada que lembrasse, sequer remotamente, os 70 milhões de mortos produzidos pelo comunismo chinês nos últimos cinqüenta anos. Tudo foi elaborado para transmitir a idéia de um novo país, um país diferente, uma outra China, feliz e sorridente - uma China que, ao mesmo tempo, se orgulha de ser a sede das Olimpíadas e se envergonha de seu passado recente. A ponto de escondê-lo debaixo de sete véus e uma chuva de fogos de artifício.

Mais uma vez, pergunto: isso é a glória?

Prédios monumentais, estádios magníficos, arquitetura grandiosa, instalações futuristas e espetáculos grandiloqüentes são certamente de impressionar qualquer um. Mas não são o suficiente para dizer se um país é ou não moderno. Não quando se omite uma parte importante da História para impressionar os estrangeiros. Mas não só por isso. Como tive oportunidade de constatar in loco alguns meses atrás, respira-se hoje, na China, um ar de falsidade, de mentira. Tudo que vem do país soa falso, e não é somente pelas bugigangas e quinquilharias pirateadas pelos chineses, e que podem ser encontradas, por estas bandas, em qualquer camelô de esquina. Em primeiro lugar - e isso é constantemente esquecido pela imprensa ocidental -, trata-se de um país comunista, com partido dominante no poder, censura à imprensa e presos políticos - a repressão às manifestações pela independência do Tibete e a falta de informações confiáveis sobre outros movimentos, como o dos separatistas de Xinjiang, não deixam dúvidas quanto a isso. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de um comunismo particular, com uma economia, para todos os efeitos, capitalista - um "socialismo de mercado", dizem os chineses -, na qual os burocratas do Partido Comunista, que controlam tudo no país, são os maiores empresários. Desde 1978, a China na prática jogou no lixo as velhas premissas comunistas sobre economia e caiu de cabeça no capitalismo, seguindo à risca a filosofia de Deng Xiao-ping, segundo a qual "enriquecer é glorioso". Em outras palavras, um Estado totalitário, com um sistema econômico aberto. Algo indisfarçavelmente postiço, que apenas dá a impressão de um sistema político esquizofrênico.

Essa impressão de esquizofrenia política é ainda mais reforçada pelos Jogos Olímpicos. O show de luzes e cores que se viu na sexta-feira passada no estádio Ninho do Pássaro, para além de demonstrar qualquer suposta "modernidade", pareceu revelar, para mim, o seu contrário. Lembremos que coreografias cuidadosamente ensaiadas e multidões disciplinadas são também encenadas, de tempos em tempos, na vizinha Coréia do Norte, um regime e um sistema econômico 100% comunista. Assim como eram também na ex-URSS e na Alemanha nazista. A Alemanha de Hitler, aliás, sediou uma Olimpíada, em 1936, sem que isso contribuísse em nada para tornar o regime nazista menos maléfico e mais democrático. Assim como ocorreu, também, na ex-URSS, em 1980 - muitos que têm mais de trinta anos hoje lembram do mascote da Olimpíada, o simpático ursinho Misha, mas nem por isso o regime soviético deixou de ser menos podre e desumano. Muita gente acredita que boicotar um evento como as Olimpíadas porque o país que será sua sede é claramente uma ditadura que não dá a mínima para coisas como liberdade de expressão e direitos humanos não ajudaria em nada a mudar essa situação, e que os Jogos podem ser um meio de influenciar, de certo modo, o governo local e abri-lo para o mundo. A meu ver, nada mais falso. Assim como foi para a Alemanha de Hitler e para a ex-URSS, para o governo comunista chinês as Olimpíadas não são uma admoestação, mas um prêmio, um reconhecimento.

É de uma ingenuidade imensa, beirando a infantilidade, ou de uma hipocrisia gigantesca, dizer que o esporte não tem nada a ver com a política. Só os muito tolos ou muito cínicos pensam assim. Durante a Guerra Fria, os regimes comunistas do Leste Europeu investiram pesado para formar um exército de atletas, criados em centros esportivos como se fossem gado, para conquistar o maior número possível de medalhas olímpicas e demonstrar, assim, a "superioridade" do sistema comunista sobre o capitalismo - a antiga Alemanha Oriental, por exemplo, passava necessidade, mas saía de cada Olimpíada com quilos e quilos de medalhas a mais do que a Alemanha Ocidental, capitalista e democrática. Do mesmo modo, a escolha de Pequim para sede dos Jogos em 2008, assim como a de Berlim em 1936 ou a de Moscou em 1980, significou na prática o aval internacional ao regime comunista chinês, nada mais do que isso. Isso significa o não-reconhecimento, pela comunidade internacional, do direito do Tibete à autodeterminação, ou dos direitos políticos dos dissidentes. Não por acaso, Lula foi a Pequim solicitar o apoio do governo chinês para a candidatura do Brasil à sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Espera, com isso, conquistar a glória de fazer o País sediar uma Olimpíada, para mostrar ao mundo, assim como os chineses estão fazendo, um "outro país" - um país que pode ser tudo, menos real.

A censura governamental, a falta de liberdade de expressão, a perseguição a dissidentes políticos, o massacre da Praça Tianamen, o cinismo generalizado - é isso, mais do que espetáculos grandiosos e coreografias ensaiadas e ditadas pelo Partido, o que a China mostra ao mundo. O que é a glória: sediar as Olimpíadas ou ser reconhecido como um país que defende a Democracia e os Direitos Humanos? Enriquecer pode até ser glorioso. Mas não tanto quanto ser livre.

Um comentário:

Stefano di Pastena disse...

Caro Gustavo, acabo de saber que "algumas" das imagens da cerimônia de abertura das Olimpíadas da Poluição foram gravadas previamente! Fake como a menina-robô-cantora, devidamente dublada por uma criança "mais feia": "uma menina mais bonita era do interesse da China", justificou um dirigente humanista.

Não, não são patologicamente mentirosos...são perfeccionistas!

Ainda descobriremos que, daquela overdose apoteótica toda, só o desfile das delegações foi de verdade.

Patéticos.