quinta-feira, outubro 14, 2010

TIREM A MÁSCARA


Aí vai um texto longo. Longo e necessário. Vocês vão perceber que se trata de um dos textos mais importantes que já escrevi aqui. Talvez o mais importante. Conto com a paciência de quem o ler.
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Se tem algo que me irrita, mais até do que barulho de despertador ou buzina de carro às quatro da manhã, não é quando discordam de mim - pelo contrário, trato a discordância, feita nos marcos da civilização, como algo muito bem-vindo, sem a qual não há debate possível. É quando deparo com alguém que, instado a emitir uma opinião, simplesmente se recusa a fazê-lo, por medo de ferir suscetibilidades ou para não desagradar a fulano ou a beltrano, bancando o invertebrado. Pessoas assim, que confundem verdade com não ter lado, equilibrando-se sob um manto de ambigüidade que apenas revela falta de personalidade ou refugiando-se atrás do medo patológico de fazer uma escolha moral, me tiram do sério. Nessas horas, confesso que perco facilmente a paciência e mando o sujeito que insiste em ficar em cima do muro pastar. Faço questão de ter idéias claras, e espero o mesmo de meu interlocutor. Como dizem os católicos (os verdadeiros): "Sim ou não; o resto é obra do tinhoso".

Estamos presenciando uma situação desse tipo no Brasil. Uma candidata à chefia da nação, confrontada com o que ela mesma afirmou sobre um assunto pouco tempo atrás, agora nega de pés juntos e (literalmente) sob a cruz o que disse e está documentado. Chamada a responder por suas palavras, faz-se de vítima de uma campanha sórdida e de uma cruel cruzada e afirma que não falou nada daquilo que falou. Que sua opinião é outra. Que sempre foi outra. Ou que, sobre o tema em questão, não tem opinião: não é nem contra nem a favor, muito pelo contrário.

Eu quero saber o que Dilma Rousseff pensa sobre o aborto. Quero saber a opinião dela sobre o "casamento gay". Ou sobre a liberalização das drogas. Ou se ela crê ou não em Deus, ou em duendes, ou em ETs. Eu quero saber em que ela acredita e em que não acredita. Quero saber o que ela pensa e quem ela é de fato, e não o que diz a propaganda eleitoral.

Do mesmo modo, quero saber o que ela fez até agora. Quero saber se ela, quando era a "companheira Stela" da VAR-Palmares, participou ou não de seqüestros e assaltos a bancos, ou se matou ou feriu alguém. Quero saber se e como ela treinou guerrilha, e se chegou a disparar uma arma. (Assim como espero saber o que fez exatamente Zé Dirceu nesse período, o que ele só aceita dizer "em 20 ou 30 anos"...) Quero saber se Dilma falsificou ou não seu currículo, inventando títulos inexistentes. Ou o que ela fez realmente na política antes de filiar-se ao PT. Ou, ainda, se é ou não verdade que ela pressionou a Receita Federal para encerrar uma investigação sobre o clã Sarney. Quero saber se ela sabia ou não das falcatruas de sua braço-direito e amiga de compras Erenice Guerra, que transformou a Casa Civil da Presidência da República num balcão de negócios para beneficiar a própria família (esse sim, o verdadeiro ”Bolsa-Família”). Ou se partiu ou não dela, Dilma, a ordem para fazer dossiês e violar sigilos fiscais de adversários políticos. Quero saber se ela é socialista, como está no mesmo vídeo em que fala do aborto, ou se é capitalista, comunista, flamenguista ou zen-budista. Quero saber também, embora desconfie de qual é a resposta, se Lula sabia ou não do mensalão, ou quem matou Celso Daniel, ou se as FARC deram ou não dinheiro para a campanha de Lula em 2002, ou por que ninguém na imprensa falou durante 15 anos do Foro de São Paulo... Enfim, quero saber. Sou curioso.

Trocando em miúdos: quero saber se Dilma é mesmo a favor da legalização do aborto, como está claro no vídeo da sabatina na Folha de S. Paulo, ou se era a favor na época e passou a ser contra depois, ou se continua a favor e está apenas fingindo que não é, ou se estava fingindo que era a favor para os jornalistas em 2007 e agora finge que estava fingindo. Enfim, quero saber a verdade. Toda a verdade.

FALTA DE CLAREZA
"Ah, mas isso é desimportante! O que importa é discutir idéias, propostas para o País" etc. etc. Pois eu digo que a primeira proposta que deve ser cobrada de um candidato à Presidência, aliás de qualquer político, é falar a verdade. Quem não tem clareza em questões como o aborto, quem muda o discurso de acordo com o que é mais conveniente, quem espera que todos esqueçam o que disse um dia sobre um tema polêmico para ganhar uma eleição, está dando um claro sinal do que poderá vir a fazer no poder. Revela não somente falta de sinceridade, mas de projeto de governo. Quem demonstra ter posições pouco claras sobre temas como aborto e religião, quem não se define sobre esses assuntos caros ao povo brasileiro, demonstra também pouca ou nenhuma coerência sobre economia e política. Ou vão me dizer que o PT tem um projeto de governo?

Em qual Dilma se deve acreditar: na ardente defensora da descriminalização do aborto, que comparou a extração de um feto à extração de um dente, ou na versão 2010, “mãe”, “pró-vida” e cristã devotada (embora não tenha aprendido ainda a fazer direito o sinal da cruz)? Na Dilma que se questiona sobre a existência ou não de Deus ou na que frequenta a missa? Qual das duas dilmas é a verdadeira? Creio que tenho o direito de fazer essa pergunta.

Por trás das negativas e tergiversações de Dona Dilma, o que existe é o seguinte esquema, endossado por parte significativa da imprensa nacional comprometida com sua campanha (e que se apresenta como "neutra" ou "imparcial"):

- Toda e qualquer afirmação que os adversários da esquerda fizerem - ainda que seja lembrar o que os próprios esquerdistas fizeram ou disseram um dia - é "calúnia" e "demagogia eleitoral" da "direita fundamentalista".

- Tudo que os esquerdistas fizerem ou disserem deve ser visto como verdadeiro somente em ocasiões e em contextos que possam beneficiar a esquerda. Por exemplo: se dizem que são a favor da legalização do aborto, ou da união civil de homossexuais, é somente porque aquilo lhes é útil naquele momento, e diante daquela platéia; se não é útil - por exemplo, numa eleição presidencial -, então tratam de mudar o discurso e exigir que todos se esqueçam de suas palavras - e chamam de caluniadores vis os que insistirem no assunto.

- Por conseguinte, a única visão válida e aceitável é a de esquerda. Todo o resto - inclusive lembrar o que os esquerdistas diziam até a véspera - é proibido.

O nome disso, no jargão marxista, é dialética. Já vimos esse método antes: é o método stalinista. Consiste em apagar ou reescrever a História para que se ajuste às conveniências do poder. Stálin mandava retocar fotografias para delas apagar rivais que mandara eliminar. Os lulo-petistas inovaram: querem apagar da memória de todos o que a chefe dizia até ontem. Querem eliminar a própria memória, nos moldes do que é descrito em 1984, de George Orwell.

FALTA CORAGEM
Os brasileiros deveriam se perguntar mais sobre quem os governa ou os quer governar. Se o fizessem, talvez tívessemos sido poupados de um Lula na Presidência da República. E certamente não haveria uma Dilma Rousseff.

Falta coragem aos lulo-petistas. Coragem de vir a público e assumir o que pensam verdadeiramente. Coragem de se apresentarem como o que de fato são, sem os artifícios do marketing e sem máscaras. Falta vergonha na cara.

O tipo de reação da campanha dilmista a um fato tão escancaradamente irrefutável é revelador de como essa gente se comporta diante da verdade. Flagrada sua candidata dizendo o que pensa sobre um tema, não lhes resta outra coisa senão negar que a Terra gira em torno do Sol. Contam, para tanto, com o silêncio e a cumplicidade de parte da imprensa e da intelligentsia, que por décadas alimentou o mito lulo-petista, tratando-os com reverência devota ou com o benefício da ambiguidade. Agora, diante de uma questão como o aborto, entram em choque com a CNBB, exigindo fidelidade canina de quem sempre os apoiou e ajudou a elevá-los ao altar da santidade. Os padres católicos deveriam saber que, com a santidade, vem a impunibilidade, além da onipotência.

Agora que Dilma foi apanhada sem cirurgia plástica e cometendo o terrível delito de dizer a verdade, o que vão fazer, censurar o vídeo? Certamente, é o que fariam os lulo-petistas se pudessem. Vai ver é isso o que eles chamam de "controle social da mídia". Aliás, uma proposta presente no PNDH-3 (que Dilma diz ter assinado sem ler, para variar...). Vale lembrar: o PNDH-3 - em que está incluída a idéia de legalizar o aborto - é um fato, não um boato ou uma calúnia inventados por um rival.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi massacrado diaramente durante seu governo porque supostamente teria dito “esqueçam o que escrevi”. Ele jamais pronunciou essa frase, embora tenha feito questão de rever, sobretudo na política econômica, posições que considerava (corretamente, aliás) ultrapassadas. (FHC, aliás, perdeu uma eleição em 1985 porque titubeou ao responder se acreditava ou não em Deus.) Pois Dilma não só pede que esqueçam o que ela disse, como nega mesmo que tenha dito um dia, apesar das provas abundantes em contrário. A frase de FHC, na verdade um boato plantado por seus adversários, foi tratada como um fato, enquanto a de Dilma, um fato comprovadíssimo, está sendo tratada como boato ou calúnia. Não consigo imaginar exemplo maior de duplo padrão e de desonestidade intelectual.

A VERDADEIRA QUESTÃO
Eu nem discuto se o aborto é certo ou não, se deve ou não ser legalizado. É perfeitamente válido, numa democracia, ser a favor da legalização do aborto, ou das drogas, ou da pena de morte. É algo perfeitamente legítimo, é do jogo que seja assim. O que não é válido nem tolerável é uma candidata à Presidência da República esconder o que pensa sobre um assunto para fazer demagogia eleitoreira. Pior: é ela negar o que ela mesma disse, com todas as letras, chamando de boato ou calúnia o que é um fato inegável, registrado para a posteridade. É posar de feminista radical num dia e transfigurar-se em Madre Teresa em outro.

Pessoalmente, acho que o debate sobre o aborto é necessário. Por isso é tão lamentável - mais que isso: é execrável - ver Dilma Rousseff fugindo da questão como o diabo foge da cruz. Eu gostaria de ouvir os argumentos dela a favor da descriminalização do aborto. Gostaria de vê-la debater o assunto. Mas debater significa dizer o que se pensa, não o que o marqueteiro acha mais adequado. E isso - falar o que se pensa - nem Dilma nem o PT querem fazer. Em vez de responder por suas palavras e encarar a questão, o que faz Dilma? Nega o que está no vídeo, posa de "mãe" e "pró-vida" e vai à missa para tentar ganhar votos. Mais: junta a demagogia à calùnia, espalhando boatos sobre seu adversário querer privatizar o pré-sal. É algo nojento, de revirar o estômago. É triste.

É em momentos como esse que se percebe o fosso que nos separa de povos realmente civilizados. Em outros países - nem falo dos EUA, mas dos países da Europa - temas como aborto ou religião fazem parte da agenda cotidiana do debate político. É a partir do posicionamento dos candidatos a respeito desses temas que os eleitores decidem em quem e em que partido irão votar. Assim, convencionou-se que quem defende posições como a legalização do aborto ou das drogas, por exemplo, é de esquerda ou de centro-esquerda. Quem assume posições contra a legalização do aborto, ou defende pontos de vista com base em valores e princípios cristãos, é a direita ou a centro-direita. E, desse modo, os campos se definem, com espaço para todas as opiniões e correntes políticas existentes na sociedade. No Brasil, não há nada disso: aqui, essas coisas simplesmente não se discutem, e ponto final. Quem ousar indagar um candidato sobre o que pensa - ou simplesmente expor a contradição entre o que ele ou ela diz agora e o que dizia antes das eleições - é tachado imediatamente de extremista de direita e reacionário. (Só falta gritarem: "é preconceito" - aliás, não falta, não.) Isso mostra como somos primitivos e atrasados.

Em um país como o Brasil, onde analistas tidos como sérios se esforçam para ser tão assertivos quanto uma porta e tão incisivos quanto uma canção dos Teletubbies, dissimular o que se pensa pode até render votos e deixar alguém bem na fita. Mas não dá para negar que essa é uma atitude covarde, que revela, na pior das hipóteses, oportunismo demagógico e, na melhor delas, falta de caráter. Mais que isso: demonstra inaptidão para o debate público franco e honesto, a incapacidade, portanto, de conviver com as regras do jogo democrático. Não são qualidades que se espera de um vereador em Santana do Passa-Quatro. Quanto mais em quem almeja ser Presidente da República.

Há alguns dias um jornal de uma cidade no México, acuado pelas ameaças dos narcotraficantes que infernizam o país, perguntou em editoral aos chefões locais do crime que notícias eles gostariam de ver publicadas. No Brasil, para não prejudicar a candidatura governista, há quem prefira sonegar fatos, tratando-os como boatos de campanha. É uma forma de censura. Os jornalistas mexicanos têm a desculpa do medo. Seus colegas brasileiros não têm esse álibi: fazem-no por ideologia. Ou por safadeza. Ou as duas coisas.

Insisto nesse ponto: a questão não é o aborto em si, sua moralidade ou não. Tampouco é se fulano ou sicrano acredita ou não em Deus. É se é moralmente correto e aceitável mentir para vencer eleicões. Tenho cá minha opinião sobre aborto e religião. Mas minha opinião, a não ser para mim e talvez para as pessoas que convivem comigo, não é importante. A de Dilma, porém, é. Idéias e passado obscuros rimam com presente de maracutaias e futuro de incertezas. Eu quero saber o que Dilma pensa a respeito desses temas. Tenho esse direito. Eu e o Brasil.
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Chega de trololó. Chega de tergiversar. É hora de tirar a máscara.

2 comentários:

Anônimo disse...

José Serra já deu declarações brilhantes como "sou favorável à união gay", mas deixou à Igreja católica a batata quente da celebração do casamento gay. Que será que ele realmente pensa a respeito?

A Mônica Serra confidenciou à quatro alunas que já cometeu aborto e, que, no entanto ela diz que Dilma é a verdadeira "assassina de criancinhas". Ela sequer respondeu às alunas. O PSDB desfez a questão. Que será que ela pensa a respeito do aborto?

Chega de direita. Chega de preconceito social. Chega de Farol de Alexandria. Dilma 13!

Unknown disse...

Quanto ao comentário do anônimo acima, o que a Mônica Serra pensa sobre o aborto eu não posso ter certeza. Já o que Dilma pensa sobre o aborto, isso todos nós sabemos, inclusive o petista que escreveu o comentário. Ele sabe que Dilma mais de uma vez se posicionou a favor da descriminação do aborto. Mas mesmo assim escreve como se isso nunca tivesse acontecido e como se Dilma fosse o maior exemplo de respeito a direitos humanos.

Me pergunto o que leva uma pessoa a ser petista. Como pode alguém defender o PT se não for por fraqueza de caráter? Como pode alguém se enganar e enganar tantas pessoas?

Não sou PSDBista aliás, mas não dá pra calar diante desta vergonha. Como pode alguém ter a ousadia, a sem-vergonhisse de ser do PT e falar como se fosse contra o aborto?

Farisaísmo petista! Por fora pretendem ser honestos mas por dentro são podres.