quinta-feira, outubro 07, 2010

DILMA, O ABORTO DE UMA CANDIDATURA


"- A senhora é socialista?

- Eu sou.

(...)

- Sobre o aborto, qual a posição da senhora? (...)

- Olha, eu acho que deve haver a descriminalização do aborto. Hoje, no Brasil, isso é um absurdo que não haja a descriminalização".
.
As respostas acima - ditas num tom ríspido e seco, senhorial, por quem ainda fazia pose de gerentona e não tomara o banho de botox que a deixou com a cara do Kim Jong-Il - foram dadas pela então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff a um jornalista, em sabatina na Folha de S. Paulo. Foi no dia 4 de outubro de 2007. Estão documentadas para a posteridade, em um vídeo facilmente encontrado no Youtube. Mesma declaração, com quase as mesmas palavras sobre o aborto, foi feita por ela à revista Marie Clarie em 2009.

Hoje, a candidata Dilma Rousseff se apresenta com outra persona. Não mais como a chefona durona, mas como "mãe" e "pró-vida". Diante da gritante contradição com o que dizia a Dilma pré-eleições, seus apoiadores no governo e na imprensa foram rápidos. "Baixaria", gritaram em uníssono, tentando fazer todos esquecerem as próprias palavras da criatura do chefe. Estas teriam saído não de sua boca, mas, só faltaram dizer, teriam sido lá plantadas por uma cabala, por uma sórdida campanha urdida por seus adversários. "Acabei de ter um neto, como posso ser a favor do aborto?", foi a pergunta cândida de vovó Dilma na televisão, aparentemente sem se dar conta da baixaria que é envolver um bebê recém-nascido numa disputa eleitoral. A ministra socialista e abortista de 2007 deu lugar a outra Dilma, pró-mercado e mãe-avó devotada. E quem não acreditar nessa conversão é um canalha da pior espécie, sentenciou.

Se Dilma é socialista ou não - e "socialista", cá entre nós, é uma palavra que perdeu completamente o sentido, embora revele o viés dirigista e autoritário de quem a utiliza -, ou se é ou não favorável à descriminalizaçâo do aborto, é algo, para os fins deste texto, de somenos importância. A questão não é se o aborto é ou não uma questão moral ou, como preferem os defensores da descriminalização, de saúde pública ou de liberdade individual, como se se tratasse de extrair um siso ou de arrancar um calo do dedão do pé. Nesse ponto, cada um, goste-se ou não, tem suas próprias idéias e opiniões. A questão de fundo é que uma candidata ao cargo máximo do país, que hoje, na reta final da campanha presidencial, apresenta-se como "pró-vida", nega o que disse sobre o assunto há apenas três anos. É se ela só se tornou pró-vida este ano. É, enfim, sobre sua honestidade.

Das duas uma, para ficar mais claro: se Dilma está falando a verdade agora sobre o aborto, então não estava sendo sincera naquela sabatina na Folha. Se, por sua vez, estava falando o que realmente pensa três anos atrás, então está escondendo sua verdadeira opinião sobre o tema em 2010, tendo mudado o discurso por uma conveniência eleitoral. Em qualquer caso, ela está mentindo.

A hegemonia lulo-petista no Brasil é tão avassaladora que lembrar o que Dilma dizia até há pouco tempo sobre o aborto - ou o que Lula dizia, antes de chegar ao poder, sobre o assistencialismo e seus aliados de hoje, sem falar nas inegáveis relações do PT com as FARC - é imediatamente descartado como "baixaria" ou como "tática do medo", enquanto que mentir sobre si mesmo e sobre seus adversários é visto como a suprema manifestação da verdade. A questão importante é se fatos sobre uma candidata ao cargo máximo do país devem ser mencionados ou não. É se mentiras deslavadas lançadas sobre seus adversários devem ou não ser desmascaradas. Em 2006, a candidatura de Lula espalhou o boato de que o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, iria privatizar a Petrobras e o Banco do Brasil. Era mentira. Ninguém na imprensa chamou isso de baixaria ou de tática do medo. Alckmin perdeu a eleição. Lula ganhou.

Hoje, a mesma imprensa "neutra" e "imparcial" que tratou um boato contra o tucano Alckmin como se fosse fato trata um fato sobre Dilma como se fosse um boato. Com isso, presta um desserviço à verdade, e ajuda a consolidar uma mentira. Para não passar por conservadora ou "de direita", dá sua chancela moral a uma tentativa de manipulação. Mais que isso: desvia o rumo do debate, transformando-o num plebiscito sobre o aborto em si. A questão não é sobre a moralidade ou não do aborto. É sobre a moralidade ou não de mentir para ganhar uma eleição.

Se Dilma Rousseff se declarasse claramente a favor da estatização de todas as propriedades do país e da legalização do aborto, ela poderia até perder votos, mas sairia dignificada, a meu ver, como uma pessoa honesta, que não foge de uma questão polêmica para agradar a platéia e vencer uma eleição. Seria, enfim, uma política com alma, e não - o que é confirmado a cada dia - uma criação artificial e uma escrava do marketing. Como ela não faz isso, só posso concluir pela segunda alternativa.

A candidata que chama de factóide a violação de sigilos bancários de filhas de adversários políticos acha que é baixaria lembrar o que dizia sobre um assunto há menos de tres anos. Considera de extremo mau gosto recordar o que ela mesma disse, com todas as letras, mas não vê nenhuma baixaria em preparar dossiês e invadir sigilos alheios - sem falar em programas de governo fajutos, entregues às pressas ao TSE para substituir outro texto, mais radical (e, pelo visto, mais sincero). Vai ver que de bom gosto é esconder essas coisas, e apelar para a falsidade pura e simples.

Estamos assistindo a um processo de destruição e substituição da memória coletiva, no estilo orwelliano. Como escreveu o colunista da VEJA, Reinaldo Azevedo, temos, nesse caso, uma clara dicotomia: de um lado, a verdade reacionária; de outro, a mentira progressista. Entre uma e outra, parte da imprensa ficou com a mentira progressista. Reacionária ou não, eu fico com a verdade.

Nenhum comentário: