quinta-feira, fevereiro 04, 2010

RUMO À FARSA ELEITORAL


Mal a campanha eleitoral deste ano começou - e ela começou, como comprova a crise de hipertensão de Lula - e sou tomado por uma sensação desconfortável e familiar de déjà-vu. É a mesma sensação que tive nas campanhas anteriores para a Presidência da República. De um lado, uma candidata obviamente despreparada, apesar da pose e do marketing oficial, lançada por um governo e por um partido de esquerda; de outro, uma oposição desconcertada e sem discurso, também de esquerda.
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Em outro post apontei para esse estranho fenômeno da política nacional (http://gustavo-livrexpressao.blogspot.com/2007/11/pt-e-psdb-o-duoplio-esquerdista.html). Petistas e tucanos, apesar de toda a troca de farpas, ou quiçá por causa disso, são como irmãos gêmeos, que se amam e se odeiam ao mesmo tempo. Quanto mais brigam, mais afloram as semelhanças entre eles. Trata-se, obviamente, de uma falsa polarização, que não esconde a existência, no Brasil, de um duopólio esquerdista: desde quando o PSDB, nascido de uma cisão do PMDB em 1988, nas cadeiras da USP e tendo como figuras de proa o ex-presidente da UNE José Serra e o sociólogo marxiano (em suas próprias palavras) Fernando Henrique Cardoso, é um partido "de direita"? Mais: desde quando os oito anos do governo FHC (1995-2002), em que foram feitas algumas (tímidas) reformas econômicas, foram marcados pelo "neoliberalismo"? Isso só demonstra, a meu ver, a inexistência de qualquer coisa, entre nós, que possa se encaixar no rótulo de "direita" ou "liberal", e, conseqüentemente, o predomínio de uma visão de esquerda, segundo a qual tudo aquilo que não for radical o suficiente, ou esquerdista o suficiente, é automaticamente "de direita".
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PSDB e FHC, "neoliberais"? Então vejamos. Durante o período em que FHC esteve na presidência, os tucanos realizaram algumas reformas econômicas importantes, como a privatização das teles. Fizeram-nas não porque fossem adeptos entusiasmados do livre mercado e da livre iniciativa, por convicção ideológica ou programática, mas por uma imposição da realidade. Ou seja: de forma envergonhada, quase pedindo desculpas. A estabilização da moeda, principal conquista do governo FHC, surgiu dessa maneira. Lula e o PT sabem disso, a tal ponto que mantiveram essas conquistas do governo anterior (tomando o cuidado, claro, de reivindicá-las para si). E ninguém, pelo menos ninguém em seu juízo perfeito, afirma que o governo Lula é "neoliberal".
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Outro exemplo: o Bolsa-Cabresto, também conhecido como "Bolsa-Família". Em entrevistas e declarações, os caciques do PSDB já deixaram claro que consideram o programa necessário e importante, e negam que vão revogá-lo se vencerem as eleições. Dizem, corretamente, que foram eles, os tucanos, que inventaram a coisa, e que os petistas apenas se apropriaram dos programas anteriores, dando-lhes um novo rótulo. Reivindicam, enfim, a paternidade da idéia. Alguma crítica mais mordaz contra o assistencialismo, alguma observação sobre como programas como esse não passam de uma forma de coronelismo e de um estímulo à estadodependência?
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Fatos como esse mostram que a discussão plebiscitária PT X PSDB, ou Lula X FHC, que irá certamente caracterizar as próximas eleições, é na verdade um falso debate, uma falsa polarização. Ao que tudo indica, teremos um repeteco do que houve em 2006, quando o tucano Geraldo Alckmin, escolhido para perder a eleição, negou-se a defender as privatizações, transformando a eleição numa disputa para saber quem era mais estatista, mais esquerdista e mais antiliberal. Em 2002, não foi diferente: todos os candidatos, sobretudo os dois principais, colocavam-se no campo da esquerda, recusando-se a defender abertamente propostas que pudessem ser consideradas "neoliberais". E o mesmo em 1998, em 1994... O que se tem visto, desde a redemocratização em 1985, com a interrupção do governo Collor em 1990-92, é uma alternância no poder entre duas vertentes esquerdistas, uma socialista, outra social-democrata. Diante disso, não surpreende que o nível das campanhas seja tão baixo: não há praticamente o que se discutir de essencial, apenas variações sobre o mesmo tema.
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Tamanha é a hegemonia das patrulhas esquerdistas na política brasileira que é difícil para o cidadão comum enxergar até essa realidade mais que óbvia. "A esquerda somos nós", disse à VEJA o presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra, em uma entrevista em que ataca duramente o PT e Dilma Russeff. Como se ser "de esquerda" fosse necessariamente uma virtude (por esse raciocínio, ser "de direita" é pactuar com o demo). Isso mostra até que ponto o discurso esquerdista é hegemônico no Brasil, não havendo qualquer alternativa ideológica a ele: até mesmo para atacar a esquerda no Brasil, é preciso ser de esquerda, ter um discurso de esquerda.
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A epítome dessa falsa polarização é a teoria das "duas esquerdas", que tem sido bastante evocada nos últimos tempos. Segundo essa teoria, usada por "especialistas" para explicar fenômenos como o chavismo, haveria duas esquerdas, uma "carnívora", ou radical, e outra, "vegetariana", moderada e civilizada. Lula e o PT fariam parte da ala "vegetariana", enquanto Chávez e Morales seriam "carnívoros". Tal teoria, evidentemente, não leva em consideração a afinidade quase total entre Lula e os companheiros bolivarianos, demonstrada no apoio incondicional do governo lulista às peripécias autoritárias de Chávez e sua turma. Se há uma esquerda "vegetariana", em contraposição a uma "carnívora", certamente não é o PT: é o PSDB.
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(Em tempo: não estou dizendo que PT e PSDB são "todos iguais". Quem diz isso não entendeu nada, ou se faz de sonso. Estou dizendo que pertencem ao mesmo campo político-ideológico. A esquerda, como se sabe, jamais foi monolítica. Dizer mais que isso já seria apertar a tecla SAP.)
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É por causa de falsas dicotomias como essa que não vejo nada de realmente novo saindo das urnas em outubro próximo. Não que as eleições não sejam importantes: elas são, e constituem um dos fundamentos da democracia. É justamente por isso que os candidatos precisam representar as mais variadas correntes políticas e ideológicas, a fim de dar conta de toda a complexidade do tecido social, e não apenas variações do mesmo discurso esquerdista. Além disso, é um erro grosseiro acreditar que a política se limita ao ato de votar, ou que começa e termina nas eleições. Enquanto predominar o duopólio esquerdista na política brasileira, vou continuar a justificar meu voto.

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