"Nada mais conservador do que um liberal no poder, e vice-versa". A frase é famosa, e diz respeito à alternância no governo entre os dois principais partidos políticos do Brasil-Império. Durante mais de quarenta anos, "luzias" e "saquaremas" se revezaram no poder, sem que isso significasse qualquer mudança substancial de programa político do governo. Do mesmo modo que o fariam, depois, paulistas e mineiros na República Velha - e também fazem, desde 1994, tucanos e petistas.
Há alguns dias, o PSDB realizou sua convenção nacional, em que, aparentemente saindo do muro - sua marca registrada -, próceres do partido como Fernando Henrique Cardoso elevaram o tom e fizeram duros discursos contra o governo Lula. FHC, aliás, chegou mesmo a criticar - indiretamente, como convém a um legítimo tucano - a proverbial ignorância de nosso Guia Genial, questionando como alguém pode falar em melhorar a educação no País se sempre desprezou a sua própria (não é preciso dizer que ele não citou nenhum nome, como se isso fosse necessário). José Serra, Tasso Jereissati e o novo presidente da agremiação, Sérgio Guerra, também criticaram as articulações subterrâneas para garantir o terceiro mandato para Lula. Ao que parece, os tucanos estão saindo da defensiva. Aparentemente, estão se assumindo como oposição. Aparentemente. Pois, como o leitor atento facilmente perceberá, a realidade é bem diferente do que pode imaginar a dicotomia tucanos-petistas.
Não há nada mais falso, nada mais fingido, do que a suposta disputa entre PT e PSDB. Mais até do que entre conservadores e liberais no Império. As críticas do tucanato a Lula e seu governo, em especial ao terceiro mandato, são pura pirotecnia, fanfarronadas para inglês ver. Por debaixo dos panos, o que se está preparando é uma enorme farsa, uma maquinação política entre tucanos e petistas para garantir mais um ano a Lula, em troca de melhores chances do PSDB emplacar um candidato à sua sucessão. A jogada consiste em garantir que Lula fique no poder, pelo menos, até 2011, de modo a que os tucanos, afastada a re-reeleição, tenham o caminho aberto para voltarem ao Palácio do Planalto, talvez com Aécio Neves ou José Serra. A história toda, que é complexa e envolve muitos interesses políticos, está descrita na Veja desta semana. Eu sugiro dar uma espiadinha.
As manobras dos tucanos para beneficiar Lula não são nenhuma novidade. Em 2005, quando o escândalo do mensalão estava no auge e já se começava a falar em impeachment de Lula, os tucanos, juntamente com o DEM, acreditando que ele estava morto e acabado, trataram de salvá-lo, sepultando a idéia. No ano seguinte, quando da campanha presidencial, entre um candidato com chances de vitória (José Serra) e um ilustre desconhecido (Geraldo Alckmin), escolheram o segundo para concorrer com Lula, garantindo-lhe, assim, a reeleição. Durante a campanha, em vez de defenderem, como deveriam ter feito, a herança das privatizações, promovendo um amplo debate nacional sobre o tema, recolheram-se, envergonhados, recusando-se a defendê-las. O PSDB fez de tudo para perder as eleições em 2006. Lula pode dormir tranqüilo, pois sabe que, na hora do sufoco, sempre haverá um tucano pronto a salvar sua pele. Não sei como o PSDB não recebeu, em troca de seus serviços ao petismo, pelo menos um ministério no governo Lula.
Agora, as afinidades entre os dois partidos voltam a aparecer, com a denúncia do Procurador-Geral da República contra o chamado "mensalão mineiro", o esquema ilícito de arrecadação de dinheiro "não-contabilizado" capitaneado pelo publicitário Marcos Valério para a campanha do tucano Eduardo Azeredo ao governo de Minas Gerais, em 1998. Muitos petistas acreditam que tal escândalo irá fazer todos esquecerem da avalanche de 2005, deflagrada pelas denúncias de Roberto Jefferson. É assim que eles pensam: um escândalo faz esquecer o outro, e o outro, e o outro... Com isso, esperam enganar a todos novamente. Mas mesmo os petistas mais empedernidos têm de segurar a onda dessa vez. O motivo está na própria denúncia do Procurador-Geral, que classifica o esquema mineiro do PSDB como a "fonte e o laboratório" em que se gestou, nos anos seguintes, o mensalão petista. Além do mais, o ministro recém-demissionário dos Transportes do governo Lula, Walfrido Mares Guia, era em 1998 companheiro de Azeredo na campanha eleitoral em Minas. Adivinhe quem foi o principal financiador da campanha de 2002 de Lula à presidência? Ninguém menos do que - surpresa! - o irmão de Tasso Jeireissati, até a semana passada presidente do PSDB. O mensalão mineiro é mais uma prova de que, longe de serem adversários inconciliáveis, PT e PSDB estão juntos, desde o início. Quer atingir o PT e Lula? Mire nos tucanos.
Não são apenas as cifras das campanhas políticas e complexos cálculos eleitoreiros o que explica a cumplicidade de facto entre tucanos e petistas. O PSDB é incapaz de encabeçar um movimento de repúdio a Lula, assim como o PT é incapaz de liderar um movimento de repúdio a Hugo Chávez. Enquanto fingem brigar, ambos os partidos estão ligados desde o berço, como gêmeos xifópagos, partilhando a mesma concepção esquerdista, os mesmos dogmas, apenas um pouco mais atenuados no caso do PSDB. Estou exagerando? Então dêem uma olhada nas origens ideológicas de PT e PSDB. Até onde eu sei, não me consta que os tucanos nasceram, em 1988, como um contraponto às esquerdas brasileiras, mas como parte delas. Com a diferença de que, desde o início, o partido se assumiu como social-democrata - a começar pelo nome -, ao passo que os petistas, embora na prática caminhassem para a social-democracia, continuaram a salada de tendências e correntes ideológicas que sempre foram. No caso do PSDB, seus fundadores vinham de uma cisão do PMDB, que hoje é apenas uma reunião de interesses particulares (e fisiológicos), mas cujas origens são o MDB de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Muitos dos fundadores do PSDB - José Serra, Sérgio Motta etc. - vinham da esquerda católica dos anos 60, em especial da Ação Popular (AP). É preciso ser cego, surdo e louco para enxergar alguma rivalidade real entre o tosco esquerdismo petista e o esquerdismo cepalino e uspiano dos tucanos.
Na verdade, a divisão PT-PSDB não foge ao padrão verificado historicamente nas esquerdas. Desde pelo menos a política de "frente popular" defendida por Moscou em 1935, sempre foi uma tática das esquerdas cultivar duas caras, dois discursos diferentes, de acordo com a platéia, a fim de enganar o maior número possível de pessoas e garantir o predomínio (a "hegemonia", diria Gramsci) do discurso político. A partir de um certo momento, os comunistas perceberam que esse discurso não poderia triunfar de forma monolítica, com um partido apenas. Daí a necessidade de um partido "para as massas", abertamente radical e revolucionário, e outro, moderado, "para as camadas médias" ou os "setores progressistas da burguesia". Ou, para usar as palavras dos próprios comunistas, um "programa máximo" e um "programa mínimo", a fim de conquistar o apoio do povão, por um lado, e a respeitabilidade das camadas mais "instruídas", por outro. Em suma, a esquerda comunista e revolucionária se deu conta de que não poderia alcançar o poder sem a ajuda de companheiros de viagem. Foi assim no Brasil, com o PTB e o PCB nos anos 1945-1964, por exemplo, e, de certa forma, com o MDB durante o regime militar. E é assim hoje, com PT e PSDB.
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Desde os primórdios, tucanos e petistas caminharam juntos, como Lula e Chávez fazem hoje. O namoro foi interrompido com a ida de FHC para o Ministério da Fazenda, durante o governo Itamar Franco, e o Plano Real, que se tornou o grande trampolim de FHC para alcançar a presidência. Isso, claro, provocou ciúmes na petistada. De lá para cá, os antigos aliados vivem às turras, como um casal que resolveu dar um tempo depois de uma briga, mas que não descarta a possibilidade de uma reconciliação. Que a disputa no Brasil de hoje se resuma a uma querela PT versus PSDB, é algo que revela como estamos atrasados, como é baixo o nível do debate político no País. Na verdade, com o apoio do PSDB, os petistas e seus aliados da esquerda conseguiram implantar, há tempos, um verdadeiro monopólio da linguagem - um duopólio esquerdista.
Como demonstra o mensalão mineiro, as farpas entre FHC e Lula, entre tucanos e petistas, não passam de pura encenação para iludir os incautos. PT e PSDB estão no mesmo campo político-ideológico, tal como petistas e chavistas. Não foi por acaso que Lula no poder copiou grande parte dos programas de FHC, como gostam de lembrar os tucanos. Nada mais tucano do que um lulista no poder, e vice-versa.
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