sexta-feira, fevereiro 19, 2010

COMISSÃO DA VERDADE OU DA MEIA-VERDADE?


Vítima de atentado à bomba por terroristas de esquerda, Recife, 25.07.66:
a "Comissão da Verdade" do governo Lula vai tratar de casos assim?
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Assisti, um dia desses, a um debate interessante na TV Câmara. TV Câmara? Pois é. É raro, mas às vezes acontece de passar alguma coisa que vale a pena ver ali, além de documentários soporíferos sobre o bumba-meu-boi e discursos analfabetos de deputados idem. O assunto do debate era a tal "Comissão da Verdade" que o governo quer criar para, em suas palavras, "investigar as violações aos direitos humanos durante a ditadura militar de 1964", como parte do pacote chamado 3o Plano Nacional de Direitos Humanos - ou Plano Nacional-Socialista dos Direitos Humanos, como já está sendo chamado.

Preparei-me para mudar de canal ou desligar a TV e ler um livro, mas, como o tema me interessa e é bastante polêmico, já tendo até levado à demissão de general que se pronunciou contra a coisa, resolvi insistir. Frente a frente, havia dois deputados, um a favor e outro "mais ou menos contra" o projeto tal como está, além de dois professores universitários e um coronel, representante do Exército. Um dos deputados, aliás do PT, ficou balbuciando o tempo todo platitudes como "a ditadura foi terrível" e "é preciso apurar a verdade", lembrando seu passado de militante e perseguido político etc. O que era "mais ou menos contra", do PSDB, ficou calado a maior parte do tempo, quebrando o silêncio apenas para falar que era contra a Comissão "do jeito que está". Um dos professores, creio eu uma socióloga, tentou articular um discurso militante em defesa da revisão da Lei de Anistia de 1979, colocando-se contra o que chamou de "lógica da Guerra Fria" ou "lógica de ameaças" dos que se opõem à iniciativa dos ministros Paulo Vanucchi e Tarso Genro. Aproveitou e tascou que os militares "deveriam pedir desculpas" por 1964 e pelo que se seguiu...

Imaginei que iria presenciar um monólogo esquerdista, desses que passam, no Brasil, por "debate", mas nada disso! Tive uma grata surpresa. O coronel do Exército, representante das Forças Armadas, não se intimidou por estar em minoria. Pelo contrário. De maneira firme, porém ponderada, calma, didática, ele deu uma verdadeira aula aos esquerdistas presentes, principalmente à tal professora que queria que os militares se flagelassem em público. Sua superioridade intelectual e moral sobre os demais debatedores ficou claríssima. Ele explicou que a Anistia não teve nada a ver com "justiça", tendo sido, antes, um pacto político para viabilizar a democracia. Como tal, tratou-se de um ato que extinguiu os crimes e a punibilidade dos mesmos. Não foi, como disse a professora, uma anistia "auto-imposta" para garantir a impunidade dos agentes da repressão política, mas uma conquista da sociedade brasileira, inclusive da esquerda, que se organizou, na época, em vários Comitês pela Anistia (um dos deputados presentes tinha sido membro de um desses comitês). Respondeu, ainda, que, se a Anistia não vale e deve ser revogada porque o regime era de exceção (portanto, "ilegítimo"), então toda a legislação produzida após 1964, como a que criou o FGTS, deveria ser anulada. Finalmente, deixou claro que, entre tratados internacionais e a legislação nacional, é esta que vale.

Quanto à "lógica da Guerra Fria" ou "lógica de ameaças" a que se referiu a professora, o coronel (cujo nome, infelizmente, não retive) poderia ter dito mais. Poderia ter dito, por exemplo, que, por trás desse discurso aparentemente anódino, esconde-se um claro viés ideológico. A lógica da Guerra Fria se expressa, por exemplo, na forma da tentativa de revogar a Anistia a fim de punir apenas um dos lados - o dos militares, claro -, enquanto deixa de fora os terroristas de esquerda, que mataram, assaltaram e seqüestraram. Aliás, em todo o debate os que interpelaram o coronel não falaram em momento algum as palavras "terrorista" e "terrorismo". Já o coronel não se furtou em falar de tortura, lembrando, inclusive, que ela também foi praticada pela esquerda radical - e citou um caso específico, ocorrido na chamada guerrllha do Araguaia, em que um adolescente de 17 anos foi retalhado a facão pelos "guerrilheiros" na frente de sua família.

"A repressão foi uma opção dos militares", repetia a professora revanchista, como se isso invalidasse o fato de que a luta armada também foi uma escolha consciente da esquerda radical, que desejava derrubar o governo para instalar, em seu lugar, uma ditadura comunista (e isso, como bem lembrou o coronel, antes já de 1964). "Os militares têm que pedir desculpas", insistia - como se a corporação militar como um todo, que saiu do regime extremamente bem avaliada pela maioria da população (o que não inclui, obviamente, os esquerdistas), e cujos generais acreditam, não sem razão, que salvaram o Brasil do comunismo em 1964, devesse alguma desculpa. Quanto a isso, aliás, o coronel recordou o que quase ninguém, ali, queria lembrar: as vítimas e mesmo não tão vítimas assim do regime de 64 estão sendo agraciadas com fartas indenizações do Erário público. Já aqueles que caíram vitimados por balas e bombas da esquerda armada, muitos deles cidadãos comuns, sem qualquer relação com a luta política travada então, quando é que receberão pelo menos um pedido de desculpas de seus algozes? Se é de perdão que se está falando, por que os esquerdistas não se desculpam perante eles e suas famílias? Por que, em vez disso, endeusam terroristas?

As observações do coronel, claro, ficaram sem resposta. E não poderia ser diferente. Sua análise do regime de 64 e da luta armada, assim como da Anistia, foi impecável. Seu desmascaramento do revanchismo esquerdista, agora travestido de "Comissão da Verdade", foi total e irrefutável. Ficou claro que, qualquer tentativa de rever a Anistia não passa de uma forma de duplo padrão ideológico a fim de beneficiar a esquerda. Além do mais, a idéia de que os militares deveriam "pedir desculpas" pelo que fizeram é ridícula: primeiro, porque em 1964 eles não tomaram o poder sozinhos (tratou-se de um golpe, ou contra-golpe, civil-militar); segundo, porque tiveram amplo apoio popular; terceiro, porque os terroristas de esquerda eram uma ínfima minoria, não representando, de maneira alguma, os anseios da sociedade; e quarto, porque no Brasil, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, na Argentina, não houve um confronto entre a instituição militar como um todo e a população, e os militares que estiveram diretamente envolvidos nas atividades da repressão política foram uma fração pequeníssima das Forças Armadas. Finalmente, os militares concordaram em perdoar os terroristas e em devolver o poder aos civis, retirando-se da vida política - pode-se imaginar o mesmo acontecendo em Cuba, por exemplo? Os militares, com a exceção da minoria de torturadores e assassinos, não fizeram nada de que possam se envergonhar. Por que deveriam pedir desculpas?

Das observações certeiras do representante dos militares no debate da TV Câmara, e dos argumentos toscos de seus contendores, ficou claro para mim o seguinte: se fosse constituída eqüitativamente por representantes dos dois lados, com o objetivo de apurar as circunstâncias da repressão e da luta armada (e não somente da repressão, como se pretende), a tal "Comissão da Verdade" seria, de fato, uma oportunidade de restaurar a verdade histórica e, de certo modo, fazer justiça à memória e à História nacionais. Como não é esse o intento de seus idealizadores, a conclusão óbvia é que ela não passa de um palco para julgar o regime de 64 e impor a "justiça dos vencidos", isto é, o revanchismo. Não será, portanto, uma Comissão da Verdade, mas da meia-verdade. Ou da meia-mentira.

Um comentário:

Ivan disse...

cara parabéns pelo post, muito bom e explicou um ponto que até o momento eu não tinha conhecimento.O revanchismo.