quarta-feira, setembro 02, 2009

A ESCOLHA DE ANSELMO




Acima: José Anselmo dos Santos
Abaixo: O "Cabo" Anselmo
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Em meu último post, relatei minha surpresa ao ver, em pleno domingo à noite, uma entrevista na televisão com o "Cabo" Anselmo. Expliquei por que o fato é histórico, e deixei clara minha opinião sobre o assunto. Agora, que assisti ao vídeo inteiro da entrevista (quem quiser pode assistir aqui: http://www.band.com.br/canallivre/videos.asp), posso dizer com toda segurança: no domingo à noite, 30 de agosto de 2009, o "Cabo" Anselmo morreu. Em seu lugar, nasceu - ou melhor: renasceu - o ex-marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos.

Durante toda a entrevista, Anselmo tentou separar o máximo possível o homem do mito criado em torno de sua pessoa, mito ainda hoje cultivado, como epitome da traição, pela historiografia de esquerda (o que significa, no caso do Brasil, por quase toda a historiografia). Apesar de algumas reticências - ele ainda vive escondido, e em alguns momentos dá a impressão de que sabe mais do que está falando -, a meu ver ele atingiu esse objetivo. Quem estava ali, falando para as câmeras de TV, era um ser de carne e osso, não o personagem inventado pelas esquerdas como justificativa para a derrota da luta armada.

A trajetória de Anselmo é um tapa na cara dos que ainda acalentam a ilusão juvenil de que os "guerrilheiros" eram heróicos combatentes pela liberdade. Sua história é importante e merece ser ouvida porque demonstra que a realidade da luta armada no Brasil nos anos 60 e 70 foi muito mais complexa do que se ensina há décadas nas escolas. Uma história sem nenhuma glória, feita de muito sangue e horror. E não apenas de um lado, como se pensa até hoje.

Antes que alguém o julgue - o "Cabo", não o homem -, e certamente muitos o farão, creio que é importante citar alguns fatos para compreender a história de Anselmo, suas trajetória e opção ideológica.

O primeiro fato a ser levado em conta é que a guerrilha era um caminho sem volta. Uma vez membro de uma organização terrorista de esquerda, não havia como sair, a não ser pela morte. Esta poderia vir ou pelas mãos da repressão política, ou - o que é bem menos conhecido - pelas dos próprios companheiros de organização, que não hesitariam em "justiçar" (ou seja: assassinar friamente) qualquer militante que mostrasse qualquer sinal de vacilação ou que ousasse discordar dos métodos da guerrilha. Isso aconteceu, e não foi somente uma vez. O ex-dirigente comunista Jacob Gorender, em seu livro Combate nas Trevas, narra quatro desses casos (é possível que haja outros, inclusive contabilizados até agora como "vítimas da repressão"). Os grupos armados de esquerda não eram nenhuma convenção de escoteiros: eram seitas ultra-stalinistas de fanáticos dispostos a tudo para atingir seus objetivos, e que não admitiam qualquer defecção em suas fileiras, a qual era punida com a morte. O relato de Anselmo não deixa dúvidas sobre isso. Ele descreve como a organização a que pertencia - a VPR - era inflexível e compartimentada, e que a idéia de abandonar a luta estava simplesmente fora de cogitaçao, acarretando risco de morte. Ao ser preso, em 1971, e colocado diante da escolha entre colaborar com os policiais e ser morto por eles, ele provavelmente já alimentava dúvidas sobre a luta armada e a esquerda, que parece que surgiram quando ele esteve treinando guerrilha em Cuba. Desiludido com a esquerda, ameaçado de morte pela repressão e impossibilitado de deixar a guerrilha na qual não mais acreditava e que já considerava perdida, não restou outra saída a ele senão trair e tentar sobreviver.

Outra coisa que passa geralmente despercebida é que Anselmo não foi o único traidor infiltrado nas fileiras esquerdistas no período. Houve outros, até mais eficientes do que ele. Alguns são conhecidos, outros preferem até hoje manter-se nas sombras (será que é porque continuam na mídia e não abandonaram ainda a militância esquerdista? Mistério...). De acordo com documento das Forças Armadas, por exemplo, o grupo Movimento de Libertação Popular (MOLIPO), uma dissidência da ALN de Carlos Mariguella surgida em Cuba, foi exterminado devido à ação de um agente infiltrado em suas fileiras ainda na ilha caribenha - até onde se sabe, o massacre de seus militantes não teve nada a ver com Anselmo. O que se sabe, e Anselmo admite, é sua participação no aniquilamento da VPR, única organização, além da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, de que ele fez parte. No entanto, nada se compara, em intensidade, ao ódio que lhe é devotado pelas esquerdas.
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A verdade é que grande parte da animosidade que lhe é dirigida pelos esquerdistas se deve ao fato de que Anselmo não foi somente um delator. Foi alguém que fez uma opção ideológica consciente, e que se tornou, desde então, um símbolo de desilusão política. Se ele trairia sem ter sido preso antes é algo que só ele pode responder. Mas, a julgar pelos seus depoimentos, sua desilusão com a esquerda é genuína e começa bem antes, mais precisamente no período em que ele esteve em Cuba e pôde vivenciar, durante algum tempo, a verdadeira realidade do "socialismo real". Ele faz questão de enfatizar: em Cuba, ele percebeu que a guerrilha estava lutando por um regime muito mais ditatorial, verdadeiramente totalitário, e decidiu não tomar parte nessa luta. O problema é que era tarde demais para pular fora, ele já estava envolvido até o pescoço. É isso, mais até do que a delação em si, o que a esquerda até hoje não perdoa - e jamais perdoará, pois esta não é a prática da esquerda. É o fato de ele, Anselmo, ter feito autocrítica, concluindo, pesarosamente: "fui um otário".

É fácil rotular a atitude de Anselmo como uma canalhice, até mesmo como covardia. Afinal, traidores, seja de que lado estiverem, nunca são bem vistos, e o que ele fez, concorde-se ou não com sua opção ideológica, foi traição. Mas o mesmo não fez Lamarca, ao desertar de um quartel carregando um arsenal inteiro de presente para a luta armada? Lamarca, inclusive, não se limitou a fazer isso, tendo sido o autor de várias mortes, inclusive de um tenente da PM assassinado a coronhadas após ter sido capturado, indefeso e com as mãos amarradas (um crime de guerra, portanto). No entanto, Lamarca é visto como um herói, e até recebeu uma condecoração post-mortem a general do Exército, com todas as honras, enquanto Anselmo ainda luta para restituir sua dignidade. Dificíl entender. Ou melhor: não é difícil, não.

Como eu disse antes, é fácil tachar Anselmo com a pecha de traidor, espião, agente infiltrado etc. Difícil é colocar-se na pele dele, um ex-militante que se deu conta, tardiamente, que a causa em que estava envolvido estava fadada ao fracasso, ou levaria, na hipótese improvável de vitória, a algo muito pior do que o regime contra o qual lutava. Parafraseando Roberto Campos, entre os anos de chumbo e os rios de sangue, ele escolheu a primeira opção.

Anselmo não se orgulha do que fez, mas não se arrepende. Nisso, ele demonstra muito mais honestidade do que a legião de "ex-militantes" e "ex-presos políticos" que torram a paciência e ofendem a inteligência alheia com relatos de supostos heroísmos em defesa de uma causa que insistem em apresentar, contra todas as evidências históricas, como democrática e até libertária. Em certo sentido, é lícito afirmar que, com sua traição, Anselmo fez muito mais pela volta da democracia no País do que os que assaltavam bancos, sequestravam diplomatas estrangeiros e explodiam bombas. Estes, ao contrário do que dizem, não tiveram qualquer participação na redemocratização do Brasil. Já os militares, que os perseguiram, aceitaram devolver o poder aos civis.

Para ficar mais claro o que quero dizer e facilitar a compreensão da escolha de Anselmo, aí vão outros fatos. Desafio qualquer pessoa a provar que o que vem em seguida é falso:

- O regime militar brasileiro, que durou 21 anos, matou 424 pessoas, com o atenuante de que a maioria - repito: a maioria - eram terroristas ou tinham algum tipo de conexão com os terroristas de esquerda. Estes mataram, por sua vez, cerca de cem pessoas, com o agravante de que muitas de suas vítimas eram pessoas inocentes - alvos "simbólicos", mortos pelo único motivo de serem militares ou estrangeiros (ou as duas coisas), ou simples transeuntes, culpados de estarem no lugar errado e na hora errada ("danos colaterais").

- Todos - absolutamente todos, sem exceção - que pegaram em armas contra as ditaduras comunistas, como a cubana e a soviética, e que foram capturados na luta, foram mortos pela repressão estatal ou mofaram na prisão, muitos deles por décadas, jamais tendo sido anistiados ou perdoados. O mesmo não pode ser dito dos que pegaram em armas contra o regime militar no Brasil. Estes, além de terem sido anistiados, jamais cumpriram penas maiores do que sete ou oito anos de cadeia, e continuam vivos - e "bem vivos", como demonstram as indenizações milionárias que alguns receberam -, inclusive ocupando atualmente altos postos no Estado.

O que está acima são fatos, não são opiniões. Tentem refutá-los, se puderem. Advirto que será mais fácil descobrir a cura da AIDS e do câncer. Diante dessas considerações, convenhamos, fica muito mais difícil condenar o "Cabo" Anselmo.

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