quinta-feira, setembro 03, 2009

A RAÇA COMO IDEOLOGIA

É isso o que se quer para o Brasil?
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O Itamaraty tem passado por algumas mudanças nos últimos anos. Em especial, as novas regras de seleção e admissão à carreira diplomática, antes muito rígidas, estão sendo apresentadas como prova da maior "democratização" do acesso à carreira, considerada "elitista". De fato, nos últimos anos, com o aumento do número de vagas e outras modificações - algumas bem polêmicas, como o fato de o Inglês deixar de ser eliminatório no concurso (eco de um velado - ou nem tanto - antiamericanismo?)-, rostos bem diferentes do usual no ambiente itamaratiano começaram a ser vistos nos corredores da augusta Casa de Rio Branco.

Até aí, beleza. A entrada de mais gente na carreira, com perfis e origens diversos do que se costuma ver, é certamente bem-vinda. É, sem dúvida, uma amostra do que se convencionou chamar de "diversidade regional e cultural" do povo brasileiro etc. - embora eu continue a não ver qualquer relação entre essa diversidade e o fim da exigência, no concurso, do pleno domínio do idioma de Shakespeare. Descontado esse detalhe, tem havido mesmo, vá lá, uma "democratização" da carreira, que tem ficado, digamos assim, mais parecida com o povo brasileiro. Não discuto isso. A diplomacia, assim como o serviço público em geral, deve mesmo ter a cara do País (quer dizer, se é que o Brasil tem uma cara...). O problema é até onde se está disposto a ir para atingir esse objetivo.

Desde 2002, o Instituto Rio Branco (IRBr), responsável pela formação dos diplomatas brasileiros, tem um programa de "ação afirmativa" que concede bolsas de 25 mil reais a candidatos que pretendem ingressar na carreira diplomática. A concessão das bolsas, lê-se no último edital do programa (2008), disponível no site do IRBr, dirige-se aos candidatos que atenderem os seguintes requisitos: além de ser brasileiro nato (item 2.1. do edital), o item 2.2. estabelece que o candidato deve, obrigatoriamente, "Ser afro-descendente (negro), condição a ser expressa por meio de autodeclaração".

Epa! Peraí! Como assim, "afro-descendente (negro)"? E, ainda por cima, "por meio de autodeclaração"!?

Deixando de lado o fato de que a África é o berço da humanidade (logo, biologicamente falando, todos somos, por definição, afro-descendentes), tenho algumas dúvidas a respeito do caráter imparcial e científico desse método de seleção. O fato de que, para entrar na carreira, o candidato deve primeiramente declarar-se negro, e esse critério autodeclaratório ser considerado prova irrefutável de negritude, depõe, a meu ver, contra a própria noção de "afro-descendente (negro)" que se quer adotar em um país como o Brasil. Seria o pardo, ou mulato (ou cafuzo, ou mameluco etc.) que, por ter, digamos, um bisavô "negro" ou o cabelo meio pixaim, se considera, portanto, negro? Mas ele não poderia, pelo mesmo critério, declarar-se branco, ou mestiço? E se ele tiver, digamos, um irmão gêmeo univitelino, com a mesma cor de pele e dos cabelos, mas que, por qualquer motivo que seja, não se "sente" afro-descendente e prefere declarar-se de outro modo? (Aliás, isso já aconteceu, tempos atrás, na Universidade de Brasília, onde vigora há algum tempo o sistema de cotas raciais, criando uma situação surrealista.) Convenhamos, a coisa fica meio difícil. Se a idéia é mostrar que o Brasil é um país racista e compensar uma parcela da população que estaria impedida, por motivos raciais, de entrar para o serviço exterior, esse sistema, ao exigir do candidato um atestado verbal de raça, prova exatamente o contrário. Se somos mesmo racistas, então por que o sujeito deve "declarar-se" negro para ser considerado como tal?

Tendo em vista essa dificuldade, os idealizadores do programa crêem ter encontrado a solução perfeita. No capítulo referente aos critérios de avaliação, ao lado das provas de conhecimentos, há uma parte que fala de uma "Entrevista Técnica" à qual o candidato deverá submeter-se. Na entrevista - "técnica", claro -, o candidato será avaliado a partir de uma série de fatores. Juntamente com a formação acadêmica e a adequação e viabilidade do Plano de Estudos e Desembolso (valor de cada item: 10 pontos), encontra-se a seguinte pérola de justiça, verdadeiro achado da inteligência humana: no ponto "d", 6.3.6., lê-se que será levada em conta, como critério de avaliação, a (abre aspas) "experiência pessoal do candidato como afro-descendente (negro)". E, ao lado, o valor do critério: "20 pontos"...
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Entenderam? Como no Brasil é difícil definir quem é negro e quem não é - daí a idéia genial da "autodeclaração" -, bolaram uma outra idéia mais genial ainda: negro é quem tem uma "experiência pessoal" a relatar. Em outras palavras: é quem se "sente" negro, e pronto! Genial, não? Trocando em miúdos: quem estiver se "sentindo" mais "negro" na hora da entrevista, quem tiver acordado no dia com uma "consciência" maior sobre sua "negritude" e tiver uma história comovente de preconceito a contar, leva a vaga. Coisa de Einsteins!
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Fico imaginando a seguinte situação - na verdade, imaginar é modo de dizer, pois tal situação já é uma realidade -: dois candidatos, com o mesmo perfil, apresentam-se ao programa. Ambos recebem as mesmas notas em todas as avaliações escritas, chegando empatados à hora da entrevista. No momento de responder à questão sobre sua "experiência como negro", um deles, que se "sente" negro, relata que já foi vítima de preconceito etc. e tal. O outro, cuja "consciência negra" não é tão forte, afirma não ter nenhuma história de discriminação a contar. Adivinhem quem levará a vaga.

O exemplo citado acima não é ficticio, não fui eu que inventei: é algo que está realmente ocorrendo. O que ele prova é que, sob a égide de movimentos políticos e do pensamento politicamente correto, a raça, no Brasil, virou uma questão ideológica. Se fosse um sistema de tribunal racial baseado tão-só na cor da pele, como era na África do Sul da era do apartheid, já seria um absurdo a ser execrado. Mas a questão, por estas bandas, vai muito além: ser "negro" no Brasil, além de critério de desempate em concurso público, é uma ideologia - a ideologia do vitimismo. Não basta, segundo essa visão, ter a pele mais escura, ou o nariz achatado: é preciso ser "vítima de preconceito". E nem precisa provar. Basta dizer: "uma vez me chamaram de 'crioulo' na escola, ou de 'neguinho'". Pronto! Está aí o "verdadeiro negro", o legítimo "afro-descendente", para o qual todas as portas do serviço público devem ser abertas. Quanto a avançar pelos próprios méritos... bom, melhor deixar pra lá: afinal, isso não é algo que contribui para a "democratização" da carreira...

Não duvido que por trás de programas de "ação afirmativa" como o que vem sendo implementado no Itamaraty estejam boas intenções. Mas, como já disse e repito, boas intenções, infelizmente, não são garantia de bons resultados e de um futuro radiante. Escolher alguém por ser "afro-descendente" - ou índio, ou gay, ou torcedor do Santa Cruz -, por um critério absolutamente subjetivo ("eu me sinto discriminado" etc.), em um país essencialmente mestiço como o Brasil, não é só um contra-senso: é a oficialização do preconceito e da discriminação racial. Mais: é a entronização da burrice. Entre dois candidatos, o que se "sente" menos "negro" do que o outro é preterido. Se isso não é racismo - e um racismo oficial, com a chancela do Estado -, o que é então?

Se um dia eu quiser largar o Itamaraty e buscar outra carreira no serviço público, já sei o que fazer: sendo nordestino e sem conexões políticas ou familiares importantes, vou me apresentar, na hora da entrevista "técnica", vestido com chapéu de couro e gibão de vaqueiro, dançando um xaxado e falando "ó xente" com o sotaque bem carregado. Se me perguntarem sobre minha "experiência como nordestino", direi que já me senti, sim, discriminado, que já me chamaram de "pau-de-arara" e "cabeça-chata", e já fizeram chacota com meu modo de pronunciar as letras "t" e "d" em "titia" e "coitadinho". Direi ainda que me "sinto" muito mais nordestino do que os outros candidatos que porventura também o sejam, e que, por vir de uma região mais pobre, tive menos acesso aos recursos existentes nas outras regiões. Só para garantir, vou forçar a barra e direi que o Nordeste é vítima constante de preconceito por parte dos grandes centros (a "periferia da periferia"). Tenho certeza de que, com esse papo, chegarei, pelo menos, a ministro de Estado. Quiçá a presidente da República.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não tenho a mínima idéia o que eles querem dizer com "experiência como negro".Mas o preconceito a respeito dos negros existe,aqui no Rio de Janeiro existe um fenômeno interessante que é a existência dos negros urbanos e dos negros favelados. Então não sei se o preconceito é em relação ao cara ser de tal comunidade ou pelo fato da cor de pele. E independente ou não das medidas de igualdade social adotadas pelo governo, realmente os negros tem pouca participação em altos cargos. Exemplo, o PROUNI é uma medida similar ao programa de ação afirmativa,80% dos alunos do meu curso na faculdade eram bolsistas integral ou parcial,mesmo assim não tinha nenhuma pessoa negra na minha sala aparentemente, no máximo mulatos ou pardos que nem eu.Alguém tem que fazer alguma coisa em relação à essas pessoas.Por quê os negros não alcançam essas vagas? Eles são mais burros ou estão sendo impedidos de outra forma? Se você julgar que eles são mais burros , você estará sendo preconceituoso.Você nordestino deveria entender , aqui no Rio de Janeiro, tem um monte que vem em busca de trabalho, e acaba sendo garçom ou pedreiro. Eu trabalhei nesse ultimo Censo do Ibge e tive a oportunidade de conhecer essas pessoas, você pensa em nordestino , você pensa nessas profissões. Por quê um nordestino não pode ser professor? Ta vendo , visão preconceituosa. Nós brasileiros somos bem preconceituosos, talvez porque o Brasil é diversificado em cultura.

Anônimo disse...

Pode até ser que os critério de avaliação sejam falhos, mas o objetivo dos programas de ação afirmativa para negros é proporcionar para essa parcela da população igualdade de oportunidades. Observe bem que o Instituto Rio Branco não está destinando parte das vagas para cotas para negros, mas oferecendo recursos financeiros para que pessoas pobres e capazes, que de outra maneira não conseguiriam comprar os livros e fazer os cursos necessários para o concurso, possam se preparar para as provas. Como disse, os critérios podem não ser perfeitos, mas a iniciativa é boa, pois a capacitação, aliás, como tudo no sistema capitalista, passa pelo dinheiro.