Alem do fato de que, em momento algum a Concordata foi apresentada como um tratado entre dois Estados (e não entre o Estado brasileiro e uma religião, como foi sistematicamente repetido), a, vá lá, "reportagem" - é preciso inventar palavras novas para fenômenos como esse - cita os Artigos 6 e 7 do Acordo, como uma das "provas" do alegado "tratamento privilegiado" que seria concedido à Igreja católica no Brasil. O que dizem os Artigos? Dizem o seguinte:
O que há de contrário à liberdade de culto e de crença e à separação entre religião e Estado nos dois Artigos reproduzidos acima? O seguinte, segundo a IURD/Record: o patrimônio da Igreja católica (igrejas, mosteiros, conventos, peças sacras etc.) não faz parte do patrimônio cultural e artístico brasileiro. Logo, não tem nada que ser protegido pelo Estado.
Ora, até mesmo o mais ateu dos historiadores (e eu, como ateu e formado em História, sou insuspeito para falar) é obrigado a reconhecer que a Igreja católica teve um papel preponderante na formação histórica e cultural brasileira. Basta ir a qualquer cidade do País que essa influência saltará aos olhos, revelando-se no próprio nome dos lugares (São Paulo, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Salvador, Baía de Todos os Santos, Belém etc.). A arte do período colonial, sem o substrato católico, perderia completamente qualquer sentido: as esculturas de Aleijadinho, por exemplo, assim como toda a arte do barroco mineiro do século XVIII, que constituem inegavelmente patrimônio artístico e cultural do Brasil, são inseparáveis do patrimônio da Igreja católica. Sem falar no fator demográfico - a maioria esmagadora da população no Brasil é cristã, tendo a herança católica incorporada a seu referencial cultural. O catolicismo teve um papel fundamental na formação cultural e histórica do povo brasileiro - isso, queiramos ou não, é inegável. Daí porque nos tribunais e repartições públicas se costuma pendurar um crucifixo nas paredes, e não uma estátua de Buda ou um verso do Corão (embora isso não seja proibido, nem deveria).
Portanto, não é absurdo nenhum querer que o Estado proteja o patrimônio artístico e cultural da Igreja como parte da cultura brasileira. E isso não tem nada a ver com qualquer tentativa de "privilegiar" o catolicismo: fosse o Brasil um país majoritariamente muçulmano, ou budista, e o patrimônio a ser protegido pelo Estado seriam mesquitas e pagodes. Trata-se, na verdade, de regularizar uma situação já existente de fato: cabe sim ao Estado, através de suas instituições artísticas e culturais, proteger o patrimônio artístico e cultural do País, seja ele uma igreja ou mosteiro do século XVI, seja um terreiro de candomblé - até mesmo os horrendos templos da IURD, com seu estilo arquitetônico "greco-goiano", podem, um dia, entrar na lista.
Mas entende-se: para quem já chutou ao vivo uma imagem de santa na televisão, o Artigo 7 da Concordata Brasil-Santa Sé, que fala em proteger os lugares de culto e objetos católicos de qualquer tentativa de violação ou desrespeito, é mesmo inaceitável; é mesmo de uma "intolerância" sem tamanho com outros credos...
Em seguida, a reportagem encasqueta com o Artigo 11 da Concordata. Este seria o mais perigoso, segundo a IURD/Record, à preservação da laicidade estatal e à liberdade de culto e de crença no Brasil. Aqui os, digamos, "repórteres" a serviço do "bispo" foram um pouco mais além: usando os recursos típicos da linguagem televisiva, como destacar partes de um texto em detrimento de outras, eles tentaram mostrar que o Artigo, ao estabelecer o "ensino religioso" (= católico) nas escolas públicas, é uma clara violação da Constituição brasileira. De fato, quem tiver lido somente o que foi mostrado na TV saiu convencido que, com a Concordata, todas as crianças serão obrigadas, no horário de aula, a rezar o pai-nosso e ir à missa. Por isso, faço questão de reproduzir, aqui, o texto integral do referido Artigo. Ei-lo:
Atentem para as partes em negrito. Fiz questão de grifá-las para deixar claro que, nesse caso, a emissora do empresário da fé Edir Macedo não se limitou a mentir de forma descarada: ela OMITIU, proposital e deliberadamente, parte essencial da questão, de forma a mostrar o Artigo 11 da Concordata como uma ameaça à liberdade de culto e de crença. Por meio de manipulação, a reportagem tentou induzir os espectadores a acreditarem que o Brasil está para assinar um acordo que irá privilegiar uma religião, instituindo, de forma obrigatória, o ensino católico nas escolas. Quem ler o texto, porém, verá que não é nada disso: não só o ensino não será necessariamente católico, como será facultativo (ou seja: estuda quem quiser, sem qualquer forma de discriminação). A Record enganou o público. Mais uma vez, diga-se.
Mas a mentira não parou por aí. A fim de reforçar, na mente do público-alvo, que a Concordata será a versão moderna da Inquisição medieval, os "jornalistas" da IURD/Record fizeram comparações com o vigente em outros países. Quando se referiram a Israel, um país ameaçado diariamente pelo fanatismo islâmico, a forçação de barra chegou ao ridículo: a reportagem mostrou cenas de escolas religiosas islâmicas, as madrassas, de onde saem muitos homens-bomba, tentando fazer uma associação entre o terrorismo islamita e a proposta de ensino religioso da Concordata. Sem comentários...
Para dar um verniz de "imparcialidade" ao que estava sendo dito, foram colhidos depoimentos, além do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (que disse que a Concordata era um "retorno ao século XVIII"), de alguns líderes religiosos: um pastor da Assembléia de Deus (colocar alguém da IURD seria dar muito na vista), um mulá muçulmano (que falou em árabe) e uma representante da ONG "católicas pelo direito de decidir". Todos foram unânimes em sua condenação à Concordata, mostrada sempre como uma ameaça ao Estado laico. Durante toda a reportagem, não se viu nenhum padre ou bispo católico falando a respeito.
Ao longo de toda a matéria, a condenação à Concordata foi apresentada como a defesa intransigente da laicidade e da liberdade de culto e de crença, contra uma tentativa de "privilegiar" uma religião em detrimento de outras. Mas o que ficou claro é que, por trás da resistência ao Acordo, está um falso laicismo, um preconceito anticatólico. Na verdade, é mais que isso: trata-se de, em nome da diversidade religiosa, opor-se à livre concorrência entre as religiões, do mesmo modo que muitos se opõem à livre concorrência no mercado. Ou seja: a oposição à própria noção de diversidade e pluralismo religiosos. O oposto exato da idéia de laicidade. .Ou se
Se tem algo que a atual campanha contra a Concordata Brasil-Santa Sé demonstra com clareza é que, para atacar a Igreja católica, vale qualquer arma, até mesmo fingir-se de laico. Muita gente inteligente, em nome de supostos ideais iluministas, está se deixando enganar por essa conversa mole, aderindo ao CCC - Comando de Caça aos Católicos.
A IURD tem o direito a se opor à Concordata com a Santa Sé. Tem o direito, inclusive, de fazer lobby no Congresso para que esta não seja aprovada, o que fazem os deputados e senadores a ela ligados. Pode-se, inclusive, questionar o ensino religioso nas escolas públicas, tendo em vista até mesmo questões práticas e sua inaplicabilidade (haverá um professor para cada religião? etc.). Mas isso não dá a ninguém o direito de mentir e enganar o público. Que a neopentecostal IURD, conhecida por suas "fogueiras santas de Israel" e por seus "exorcismos" feitos com sal grosso, sem falar nos chutes a imagens de santas e na maneira, digamos, empresarial como encara a fé, se arvore em defensora da "tolerância" contra o "obscurantismo" católico é mesmo um sinal dos tempos. É algo que só vem provar que religião e política - e religião e jornalismo - realmente não combinam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário