segunda-feira, agosto 31, 2009

"CABO" ANSELMO, A MORTE DE UM MITO


Anselmo em 1964, na revolta dos marinheiros:
não, ele não era agente da CIA...
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Quase caí pra trás quando vi. Ontem à noite, eu já me preparava para dormir, zapeando à toa na televisão, quando acabei me fixando em um programa de entrevistas, o Canal Livre, da TV Bandeirantes. O entrevistado, para minha surpresa, era ninguém mais, ninguém menos, do que o "Cabo" Anselmo!
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Se você chegou agora, eu vou dizer de quem se trata: o "Cabo" Anselmo, ou José Anselmo dos Santos, é um dos personagens mais polêmicos e misteriosos dos chamados "anos de chumbo" da ditadura militar no Brasil. Basta dizer que é a figura mais deplorada e odiada pelos remanescentes da esquerda armada brasileira, que o acusam de delator e de agente duplo, imputando-lhe a responsabilidade por não sei quantas mortes de militantes. Ele se tornou famoso anos antes, quando foi o líder da chamada revolta dos marinheiros, a quebra da disciplina e da hierarquia militar que serviu de estopim ao golpe de 64 e à queda do governo populista de João Goulart. Preso pela primeira vez, fugiu da cadeia para juntar-se aos exilados brasileiros que orbitavam em torno de Leonel Brizola no Uruguai. De lá, foi para Cuba, onde treinou para ser guerrilheiro e voltar ao Brasil, onde pretendia derrubar pelas armas os militares que haviam tomado o poder. Parece que foi no período em que esteve na ilha que ele começou a se desencantar com o ideal comunista, que antes abraçara com fervor. Ao constatar a realidade da ditadura de Fidel e Raúl Castro, bem diferente do que prega até hoje a propaganda esquerdista, Anselmo começou um processo de autocrítica, que de certa forma se prolonga nos dias atuais. De volta ao Brasil, na clandestinidade, é preso em maio de 1971, em São Paulo, pelo famoso delegado do DOPS paulista Sérgio Paranhos Fleury. É aqui que começa a fase mais obscura de sua trajetória. Torturado, é colocado diante da seguinte opção: ou aceita colaborar com a repressão, tornando-se um delator, ou terá o mesmo destino de alguns de seus companheiros: a cova. Anselmo aceita a primeira opção. "Ofereceram-me a oportunidade de ficar vivo", contou ele em 1999 ao repórter Percival de Souza, em seu ultimo depoimento antes do de domingo.
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Rebatizado como "Jônatas", Anselmo passou então, por medo de morrer (mas também por desilusão ideológica), a entregar seus ex-companheiros da organização a que pertencia, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), formada basicamente da fusão de ex-militares cassados com militantes trotskistas ultra-radicais. Durante três anos, de 1971 a 1973, vários caíram por sua causa. Até que, em janeiro de 1973, a direção da VPR, exilada no Chile, descobre que ele era um traidor e ordena seu imediato "justiçamento". A revelação chega aos militantes da VPR em Recife (PE), onde a organização pretendia instalar um foco guerrilheiro: Anselmo estava trabalhando para a repressão e deveria morrer. A decisão é tomada. Mas antes de ser cumprida, os agentes do DOPS, que vinham monitorando o grupo com a ajuda de Anselmo, agem a tempo: seis membros da VPR, inclusive a companheira de Anselmo, uma paraguaia chamada Soledad Barret Viedma - que estaria grávida dele, segundo se diz, mas ele nega - são emboscados e mortos a tiros de metralhadora. Seus corpos aparecem em uma chácara no município de Abreu e Lima, na Grande Recife, crivados de balas. Quanto a Anselmo, sumiu no mundo, após uma operação plástica que lhe mudou as feições. Começava aí o mito do famigerado "Cabo" Anselmo, o traidor, o infiltrado, o bandido.
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A entrevista de Anselmo na TV é histórica por várias razões. Em primeiro lugar, até onde eu sei, é a primeira vez que o "cabo" - na verdade, marinheiro de primeira classe -, hoje com 67 anos, mostrou a cara na televisão, depois de quase quarenta anos de fuga. Ali estava, perante uma bancada de jornalistas encabeçada por Bóris Casoy e Fernando Mitre, um senhor de barbas e cabelos grisalhos, quase totalmente brancos, tentando desesperadamente limpar seu nome. Infelizmente, não vi toda a entrevista, peguei-a no meio do caminho. Mas deu para perceber que Anselmo está de volta. Desta vez, não mais à luta armada, mas a uma luta pessoal, pelo restabelecimento do próprio nome.
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Mais do que uma entrevista, o que se viu na noite de domingo, na verdade, foi a morte de um mito, talvez o último mito engendrado pela ditadura militar. O mito do "Cabo" traidor, "agente da CIA" e responsável pela aniquilação de inúmeros guerrilheiros, transformado mesmo no principal culpado, segundo a vasta historiografia esquerdista sobre o regime de 64, pela destruição da guerrilha urbana no Brasil. Quem estava ali, respondendo às perguntas dos jornalistas, era o homem José Anselmo dos Santos, o esquerdista desiludido, usado pelas forças da repressão para capturar companheiros de luta, e desde então obrigado a viver escondido, como um fugitivo, aos deus-dará, sem direito sequer a uma carteira de identidade com seu verdadeiro nome.
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A mitificação do "Cabo" Anselmo, o maior bicho-papão das esquerdas brasileiras nos últimos tempos, é uma invenção de derrotados e ressentidos. Como todo mito, esse cumpre também uma função política e psicológica. Após a aniquilação da luta armada, no começo dos anos 70, era preciso achar um bode expiatório, de forma a desviar a atenção dos erros que conduziram à derrota. A figura de Anselmo - na verdade, um soldado raso da guerrilha - caía a esse papel como uma luva. Logo começaram a circular as estórias mais delirantes envolvendo seu nome, que buscaram inflar seu papel no massacre de militantes, como se ele tivesse sido o principal responsável pelas mortes - como se, não fosse por ele, o projeto guerrilheiro tivesse alguma chance de ser vitorioso. Não demorou até que começassem a dizer que ele era espião e "agente da CIA" antes mesmo do golpe de 64 - tese defendida, sem qualquer base factual, por historiadores de esquerda, como Moniz Bandeira. Tudo isso com um único propósito: isentar de culpa os esquerdistas e colocar a responsabilidade inteiramente sobre os ombros de um único homem, o "traidor". Era uma forma, além disso, de a esquerda justificar os próprios crimes cometidos em nome da "revolução", como os "justiçamentos" de militantes suspeitos de traição ou vacilação ideológica. Anselmo, o traidor, seria o único culpado por tudo, a prova da infinita perfídia dos inimigos do povo, contra a qual são necessários o máximo rigor e a máxima vigilância.
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O próprio Anselmo é o primeiro a desmitificar seu papel na História. Não, ele não era "agente provocador", muito menos a soldo da agência de espionagem norte-americana, antes ou depois de 1964. Não, não foi ele o maior responsável pelo fim do delírio guerrilheiro no Brasil e pela destruição da VPR. Foi, sim, mais um personagem do drama humano que foi a luta armada dos anos 60 e 70. Um personagem que destoa dos demais, em primeiro lugar, por ter passado para o outro lado, invertendo assim a trajetória do maior ícone da esquerda radical do período, Carlos Lamarca - a quem ninguém na esquerda chama de traidor das Forças Armadas -, e, em segundo lugar, por ter feito também uma escolha ideológica, baseada no desencantamento com as teses de esquerda. Anselmo percebeu, talvez já em Cuba, que a causa pela qual ele estava lutando, o comunismo, não era melhor que a ditadura dos militares, e leva um choque. Ele rejeita categoricamente a versão heróica e mitificada da luta armada, tendo percebido que, se o regime militar era autoritário e antidemocrático, o regime que os guerrilheiros pretendiam instalar no Brasil não era preferível àquele, muito pelo contrário. Era em nome do objetivo de transformar o Brasil em uma nova Cuba que os guerrilheiros praticavam o terrorismo, matando inclusive pessoas inocentes. Quando percebe isso, porém, Anselmo estava num beco sem saída. Uma vez militante de uma organização armada de esquerda, simplesmente não havia como voltar atrás e se desligar da luta - alguns tentaram fazê-lo, como Márcio Leite de Toledo, e foram sumariamente assassinados por seus próprios companheiros. Também não havia como não colaborar com a polícia: ou Anselmo colaborava com a repressão, ou se tornava mais uma vítima de uma guerra suja. Tratou-se de uma das escolhas mais difíceis e perigosas que alguém poderia fazer. Anselmo escolheu o lado da repressão, acreditando que, ao tirar de circulação aqueles jovens fanatizados, estava fazendo também um favor a eles.
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Anselmo nega que tenha matado ou torturado quem quer que seja e, ao que consta, está falando a verdade. Também rejeita enfaticamente ter sido o culpado pelas mortes de militantes, o que é discutível. Para ele, os companheiros de luta que caíram fizeram uma escolha consciente, sabiam dos perigos em que estavam envolvidos. Em vez de botar a culpa na repressão, única e simplesmente, ele prefere responsabilizar as esquerdas, em especial os dirigentes das organizações armadas, que arrastaram centenas de jovens idealistas para a morte em uma luta sem possibilidade de sucesso. Sente-se um injustiçado, e, de certa forma, realmente é. Afinal, todos foram anistiados - terroristas, torturadores, assaltantes de bancos, sequestradores -; todos, menos ele. Agora ele reivindica seus direitos de cidadão, como o de ter uma carteira de identidade. O direito a ter um nome e um rosto, em primeiro lugar.
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Muita gente na esquerda certamente se morde de raiva e indignação ao ver Anselmo requerer, junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o direito a ser anistiado. Consideram isso o cúmulo do cinismo etc. Gostariam mesmo que ele fosse "justiçado", se não pelas armas, pelo menos com palavras. Mas o fato é que ele tem tanto direito a esse requerimento quanto qualquer pessoa que teve os direitos políticos cassados e que foi torturada nos órgãos de segurança do regime militar. A Anistia, apesar do que afirmam Tarso Genro e Paulo Vanucchi, foi para os dois lados, não somente para os que queriam seguir os passos de Che Guevara ou Mariguella. E não adianta dizer que tortura é um crime imprescritível - terrorismo também é. Ressalte-se ainda que Anselmo não pleiteia nenhuma indenização milionária, como as que foram regiamente concedidas a muitos que mataram, sequestraram e explodiram bombas, mas, até onde eu sei, deseja que lhe sejam restituídos os proventos que perdeu, como ex-marinheiro cassado pelo golpe de 64. Além disso, ele quer que o outro lado da História seja ouvido. Creio que ele está no seu direito ao fazer isso.
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Anselmo não foi herói, nem vilão. Foi, isto sim, mais uma vítima dos anos de chumbo, que arrastaram consigo muitas pessoas fanatizadas por um ideal totalitário. É fácil condená-lo, de um ponto de vista simplista, como um delator ou traidor, um sujeito execrável, um canalha. Mas não se pode negar que sua opção ideológica foi menos nefasta do que a adotada pela esquerda radical do período, e que, a seu modo, ele acreditava estar agindo da melhor forma possível para combater um mal maior. Muitos remanescentes da esquerda armada ainda hoje não têm essa consciência, ou falsificam a História para apresentar-se como democratas. É fácil também discordar das opiniões de Anselmo sobre o Brasil atual, descartando-as como teses "de direita" etc. - sua visão ideológica, hoje, aproxima-se bastante do que pensam os militares nacionalistas (perguntado sobre o que acha do governo Lula, ele falou várias vezes sobre as concessões aos "banqueiros internacionais" etc.). Mas não é esse o ponto. A questão é um homem que quer recuperar sua dignidade, quando tantos que fizeram até pior que ele são hoje aclamados como heróis pelas hostes esquerdistas.
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Nas considerações finais da entrevista, Anselmo conclamou a "juventude desinformada" do Brasil a não se deixar levar apenas por um lado da História. Ao final, constatando a futilidade de sua opção ideológica de juventude, ele desabafa: "fui um otário". Alguém pode dizer que ele está errado?

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto e análise muito interessantes. Não assisti à entrevista, mas agora vou buscá-la no youtube.