Ah, como é tedioso escrever sobre certas coisas... A tal política de cotas raciais nas universidades, por exemplo. Como se diz lá em minha terra: pense num assunto chato. Mas alguém tem que fazer, infelizmente. Ainda mais diante de um texto como o que vem a seguir, de autoria de José Jorge de Carvalho, professor da UnB e coordenador de um certo INCT (Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do CNPq).
O leitor verá que os, por assim dizer, "argumentos" do professor Carvalho são mesmo de tirar o chapéu... e lamentar, balançando a cabeça, como se faz num enterro. Nesse caso, os defuntos são a lógica, o bom senso e a honestidade intelectual, impiedosamente assassinados pelo emérito professor no altar da política de cotas racistas, digo raciais, nas universidades.
Vamos lá. O texto foi publicado na Folha de S. Paulo de hoje, 17/09, com o título "Cotas: uma nova consciência acadêmica". Ele vai em vermelho, eu vou em preto (sem trocadilho).
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ENQUANTO cresce o número de universidades que aprovam autonomamente as cotas, a reação a esse movimento de dimensão nacional pela inclusão de negros e indígenas vai se tornando cada vez mais ideológica, exasperada e descolada da realidade concreta do ensino superior brasileiro.
Note-se que o texto já começa com uma afirmação peremptória: o sistema de cotas, aprovado autonomamente e de dimensão nacional (logo, só pode ser coisa boa, né?, é o que está implícito na frase), é "pela inclusão de negros e indígenas". A dedução é a seguinte: como as cotas são "pela inclusão", quem se opõe a tal sistema só pode ser contra a inclusão, esse é o raciocínio. Portanto, só pode ser um racista, um troglodita elitista, um canalha abjeto... ou seja: já se começa delimitando qual é o lado "do bem" e o lado "do mal", sem espaço para qualquer nuance. Além disso, o leitor verá que o autor sabe o que está dizendo quando fala em reação ideológica, exasperada e descolada da "realidade concreta" (existe uma realidade abstrata? eu não sabia...). Adiante.
Em um artigo recente ("O dom de iludir", "Tendências/Debates", 9/9), Demétrio Magnoli citou fragmento de um parágrafo de conferência que proferi na Universidade Federal de Goiás em 2001. Mas ele suprimiu a frase seguinte às que citou -justamente o que daria sentido ao meu argumento, que, da forma como foi utilizado, pareceu absurdo.
Magnoli, para quem não sabe, é autor de um livro excelente, recém publicado, Uma gota de sangue: história do pensamento racial, uma resposta bem escrita e solidamente embasada às falácias dos racialistas. Recomendo-o a quem quiser saber mais sobre o assunto. Vejamos que frase ele suprimiu na palestra do ilustre professor.
Sua transcrição truncada fez desaparecer a crítica irônica que eu fazia ao tipo de ação afirmativa de uma faculdade do Estado de Maine, nos EUA. O tema da conferência era acusar a carência, naquele ano de 2001, de políticas de inclusão no ensino superior brasileiro, fossem de corte liberal ou socialista.
Hmmm... Uma palestra acadêmica que tem por tema "acusar a carência de políticas de inclusão" no ensino superior já é de se estranhar. Mas, políticas de inclusão de corte liberal? Confesso que nunca tinha ouvido falar disso. Até onde eu sei, as políticas liberais têm por finalidade eliminar qualquer forma de distinção, seja racial ou qualquer outra, com base no princípio de que todos são iguais e merecem, portanto, iguais oportunidades. O contrário do que está por trás de qualquer política de "inclusão", como a defendida pelo professor Carvalho e pelos militantes racialistas.
Magnoli ocultou dos leitores o que eu disse em seguida: "Quero contrastar isso com o que acontece no Brasil.Como estamos nós? A Universidade de Brasília tem 1.400 professores e apenas 14 são negros". É 1% de professores negros na UnB.
E quantos são os docentes negros da USP? Dados recentes indicam que, de 5.434 docentes, os negros não passam de 40. Pelo censo de identificação que fiz em 2005, a porcentagem média de docentes negros no conjunto das seis mais poderosas universidades públicas brasileiras (USP, Unicamp, UFRJ, UFRGS, UFMG, UnB) é 0,6%.
Ah, então foi isso que Magnoli "ocultou dos leitores"? Nesse caso, tenho de dizer: ele fez mal, muito mal mesmo. Porque, se tivesse mencionado a frase inteira, teria muito mais argumentos para derrubar de vez a militância racialista.
Em primeiro lugar, como o professor Carvalho chegou à conclusão de que 1% dos professores da UnB são negros? Teria ele usado o mesmo critério extremamente científico do sistema de cotas já vigente naquela universidade, e perguntado, um por um, aos professores: "você se declara negro?". Essa é uma questão fundamental, que está, aliás, na essência do debate sobre as cotas.
Mas OK, confiemos nos "dados recentes" mencionados pelo professor (que não diz de onde os tirou... hmmm). Digamos que 1%, ou menos, do corpo discente das universidades é formado por legítimos exemplares da raça de ébano. Seria preciso perguntar, nesse caso, se os 99% restantes seriam todos brancos. Não é possível haver, no meio de todos esses, alguns mulatos, ou cafuzos, ou asiáticos, ou, sei lá, "moreninhos", ou de cor indefinida? Melhor dizendo: no conjunto da população brasileira, que é essencialmente mestiça, como identificar quem é negro, e quem não é? E, mesmo que os números estejam corretos - vejam como estou sendo bonzinho... -, como dizer que essa disparidade se deve a alguma forma de discriminação, ou preconceito, RACIAL? A resposta cabe aos militantes racialistas e cotistas.
Essa porcentagem pode ser considerada insignificante do ponto de vista estatístico e não deverá mudar muito, pois é crônica e menor que a flutuação probabilística da composição racial dos que entram e saem no interior do contingente de 18 mil docentes dessas instituições. Para contrastar, a África do Sul, ainda nos dias do apartheid, já tinha mais professores universitários negros do que nós temos hoje. Se não interviermos nos mecanismos de ingresso, nossas universidades mais importantes poderão atravessar todo o século 21 praticando um apartheid racial na docência praticamente irreversível.
É esta a questão central das cotas no ensino superior: a desigualdade racial existente na graduação, na pós-graduação, na docência e na pesquisa.
Primeiro, uma exclamação: Nossa! Eu não sabia que, na África do Sul da epoca do apartheid, havia mais professores negros do que no Brasil. Passada a supresa, vem a pergunta: será que isso ocorria porque a população da África do Sul, tanto hoje quanto nos dias do apartheid, é majoritariamente negra, ao passo que, no Brasil, definir o grau de negritude de alguém é uma questão, para dizer o mínimo, complicada? Será que o professor levou em conta essa variável?
Já sabemos que, segundo o professor Carvalho, há racismo no Brasil. Aprendemos também que o Brasil é pior, no quesito "inclusão racial", do que a África do Sul dos tempos do apartheid. Agora ele nos brinda com a afirmação de que, "se não interviermos nos mecanismos de ingresso" (ou seja: se não instituirmos um sistema de carteira de identidade racial, oficializando o racismo), as universidades brasileiras continuarão sendo um ambiente onde impera a discriminação e o racismo (ele fala em "apartheid racial")... Raciocínio genial, não acham?
Pensar na docência descortina um horizonte para a luta atual pelas cotas na graduação.Enquanto lutamos para mudar essa realidade, um grupo de acadêmicos e jornalistas brancos, concentrado no eixo Rio-São Paulo, reage contra esse movimento apontando para cenários catastróficos, como se, por causa das cotas, as universidades brasileiras pudessem ser palco de genocídios como o do nazismo e o de Ruanda!
Viram como são malvados os que criticam o racialismo? Agora qualquer um que se opuser ao sistema de cotas raciais, apontando a incongruência inerente a esse sistema, é um "branco" do "eixo Rio-São Paulo"... (só faltou dizer que é um "reacionário", um "elitista", ou - meu xingamento predileto - "de direita"). Também pudera: para se opor a coisa tão maravilhosa, a idéia tão genial, só sendo mesmo alguém da "elite branca sulista" etc. Pois é... Se havia alguma dúvida de que os racialistas iriam acabar levando a uma forma de separação da sociedade com base em raça, etnia ou o que seja, não existe mais. Aí está: é a divisão racial em ação.
Mas a forçação de barra a favor das cotas não pára por aí. Não, não é "por causa" das cotas que as universidades se tornarão um palco de genocídios como o nazista e o ruandês (pelo menos, espero que não). A questão é: se não fosse por sistemas de classificação racial, como o existente na Alemanha nazista e em Ruanda, os massacres ocorridos nesses países muito provavelmente não ocorreriam. Ou, colocando de forma mais didática: como seria possível matar um judeu, ou um tutsi, sem um sistema que os identificasse? (Por exemplo:a estrela amarela, no caso dos judeus). Se a pessoa tem, em sua carteira de identidade, o adjetivo "negro" (ou branco, ou amarelo, ou cor-de-jambo-maduro), e se, por causa dessa classificação, ela se distingue das demais, obtendo privilégios na seleção para o vestibular ou para um emprego público, convenhamos, a probabilidade de surgirem ressentimentos por conta disso é bem maior. Em Ruanda, começou assim.
Como não podem negar a necessidade de alguma política de inclusão racial, passam a repetir tediosamente aquilo que todos sabem e do que ninguém discorda: não existem raças no sentido biológico do termo. Primeiro: quem exatamente "não pode negar a necessidade de alguma política de inclusão racial"? Eu, pelo menos, a rejeito categoricamente, acho um contra-senso e uma estupidez num país mestiço. Para mim, a única política de "inclusão" aceitável é aquela que leva em consideração o mérito pessoal, e não a cor da pele (ainda mais autodeclaratória). Segundo: vejam que o próprio autor reconhece que raças não existem. Mais adiante, porém, ele fala outra coisa completamente diferente.
E, contrariando inclusive todos os dados oficiais sobre a desigualdade racial produzidos pelo IBGE e pelo Ipea, começam a negar a própria existência de racismo no Brasil.
Vejamos: segundo dados do IBGE de setembro de 2006, a população declaradamente - atentem para o "declaradamente" - "preta" e "parda" tem menos escolaridade e um rendimento médio equivalente à metade do recebido pela população "branca". Já a taxa de desocupação dos "pretos" e "pardos" (11,8%) é superior à dos "brancos" (8,6%). Segundo o IPEA, os números não são muito diferentes.
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Visto assim, parece que o Brasil é mesmo um país racista, onde impera a desigualdade racial. Mas olhemos mais de perto os números. Eles apontam a existência de um problema crônico brasileiro: a desigualdade de renda e o desemprego, que é maior nas camadas mais pobres da sociedade. Estas, em sua maioria, são constituídas do que o IBGE chama de "pretos" e "pardos". Mas o que os números dizem sobre a existência ou não de RACISMO no Brasil? Que número oficial ou dado estatístico afirma, categoricamente, que os negros são mais pobres e têm menos acesso ao emprego não por serem POBRES, mas porque são NEGROS (ou "pretos" e "pardos")? Em vão se achará qualquer estimativa, oficial ou não, sobre isso. Por um motivo simples: é IMPOSSÍVEL chegar a qualquer conclusão, com base em estatísticas, sobre a existência ou não de racismo na sociedade brasileira. Há apenas uma maneira de se constatar isso: mediante a introdução de um sistema de classificação racial, como se pretende com as cotas nas universidades.
Fugindo do debate substantivo, os anticotas optam pela desinformação e pelo negacionismo: raça não existe, logo, não há negros no Brasil; se existem por causa das cotas, não há como identificá-los; logo, não pode haver cotas.
Exemplo claro de sofisma, de raciocínio completamente sem pé nem cabeça. O fato de não existirem raças no sentido biológico não quer dizer que não existam negros no Brasil. Isso é falso. O que se está dizendo é que raça é um conceito ideológico, não biológico, e que, no Brasil, houve miscigenação; logo, é difícil definir quem é negro e quem não é, em primeiro lugar. A maior prova disso é o próprio sistema de cotas, baseado em critérios subjetivos e autodeclaratórios: negro é quem "se diz" negro etc. A associação entre as cotas e a existência ou não de negros no Brasil só pode ser entendida como desonestidade pura e simples.
Em suma, o que os cotistas e racialistas estão dizendo é: raça não existe, logo, precisamos criá-la; negando a miscigenação que torna difícil, senão impossível, qualquer sistema de identificação racial no País - instituindo o racismo oficial, em outras palavras.
Raças não existem, mas os negros existem, sofrem racismo e a maioria deles está excluída do ensino superior. Felizmente, a consciência de que é preciso incluir, ainda que emergencialmente, só vem crescendo -por isso, a presente década pode ser descrita como a década das cotas no ensino superior no Brasil. Começando com três universidades em 2002, em 2009 já são 94 universidades com ações afirmativas, em 68 das quais com recorte étnico-racial.
Vivemos um rico e criativo processo histórico, resultado de grande mobilização nacional de negros, indígenas e brancos, gerando juntos intensos debates, dentro e fora de universidades. Os modelos aprovados são inúmeros, cada um deles tentando refletir realidades regionais e dinâmicas específicas de cada universidade.
O que quer dizer a frase "raças não existem, mas os negros existem"? Ora, não é preciso ser gênio para saber que "negro" (ou branco, ou amarelo etc.) é uma definição racial - logo, ideológica, não sociológica. Dizer que existem negros, em contraposição a brancos, é, quer queiram quer não, traçar um corte na sociedade, separando-a por raça, o que já foi desmoralizado pela biologia. É o mesmo raciocínio que levou ao apartheid e as leis "Jim Crow" no sul dos EUA até os anos 60. A isso soma-se a vitimização, que tem por objetivo consolidar a idéia de "raça (mais uma vez) oprimida" - "vítima de racismo", "excluída do ensino superior" etc. O discurso que vem depois, de caráter triunfalista, nem merece comentário: não passa de propaganda mais vulgar, de proselitismo mais vagabundo e vigarista. E daí que são 94, e não três, as universidades que adotam hoje o sistema de cotas? Isso não mostra o acerto do sistema; pelo contrário: só mostra a gravidade do problema.
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Essa nova consciência acadêmica refletiu positivamente no CNPq, que acaba de reservar 600 bolsas de iniciação científica para cotistas. Se o século 20 no Brasil foi o século da desigualdade racial, surge uma nova consciência de que o século 21 será o século da igualdade étnica e racial no ensino superior e na pesquisa.
Errado! Se depender dos militantes racialistas, o século XXI será o século da desigualdade étnica e racial. Não somente no ensino superior e na pesquisa, mas em todos os setores da sociedade.
Os racialistas não têm somente o dom de iludir, como diz Demétrio Magnoli: têm também o dom de distorcer, de falsear, de enganar. Eles não vão sossegar enquanto não instituírem um sistema de classificação racial semelhante ao que existiu na África do Sul ou que existe na Índia, onde perdura a divisão por castas. Querem porque querem dividir a população brasileira em raças. O nome disso é racismo. Ponto.
Não lembro o nome do autor da frase seguinte, mas nunca ela foi tão verdadeira: "A melhor maneira de combater a desigualdade racial é combater... a desigualdade racial!"
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