quinta-feira, julho 16, 2009

SLAVOJ ZIZEK, OU: O DEVER DE ENTERRAR A "HIPÓTESE COMUNISTA"


Alguns anos atrás, quando eu ainda nutria alguma simpatia pelo marxismo - era, então, simpatizante trotskista -, escrevi um artigo para um jornal local, intitulado "O mal que o Stalinismo fez". Era uma crítica meio pedante, embora sincera e apaixonada, ao totalitarismo soviético e suas variantes, que eu, reverberando minhas leituras de Trotsky e Victor Serge, considerava um desvirtuamento, uma traição ao "verdadeiro" comunismo, o comunismo de Marx, Engels e Lênin, supostamente seqüestrado e deformado por Stálin e sua gangue burocrática, e representado pelo "profeta banido" Leon Trotsky. Eu acreditava, à época, que tudo que se dizia na imprensa e nos livros didáticos sobre "fim do comunismo" e coisas que tais estava errado, era fruto da ignorância ou da "propaganda burguesa": bastaria retomar o curso do marxismo original, pensava, expulsando os traidores e construindo uma autêntica liderança revolucionária dos trabalhadores, tal como defendia Trotsky após sua expulsão da URSS, que a História faria o resto.

Passados mais de dez anos daquele artigo - felizmente, hoje, esquecido -, é com uma mistura de alívio e certa melancolia que constato: tola ilusão! Como eu estava enganado! A derrocada do comunismo (ou dos "Estados operários burocraticamente degenerados", como dizíamos), bem como o próprio totalitarismo soviético, não foram o produto de nenhuma falsificação dos belos e nobres ideais marxistas pela brutal e infame camarilha stalinista, mas, sim, o resultado lógico e quase inevitável desses mesmos ideais. Hoje, isso está claríssimo para mim, e ainda espero ser desmentido pelos trotskistas, os sebastianistas da esquerda.

Minha convicção de que o marxismo é uma ideologia essencialmente totalitária, logo incompatível com a democracia, sai reforçada diante da leitura de textos como o do filósofo esloveno Slavoj Zizek (revista PIAUÍ, n. 34, páginas 58-60). Com o título "A hipótese comunista: começar do começo", Zizek, uma espécie de celebridade pop em certos círculos esquerdistas europeus, seguidor de Marx e Lacan e editor de coletâneas de textos de Lênin e de Mao Tsé-tung, propõe uma retomada da "hipótese" ou "Idéia" comunista. A cada frase, ele parece repetir o refrão daquela música de Raul Seixas: "tente outra vez". Parece parafrasear, quando se refere a "começar do começo", uma propaganda governamental até há pouco veiculada na TV: "sou comunista e não desisto nunca".
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Vejamos o que diz Zizek, para quem os acontecimentos de 1989 no Leste Europeu foram um "désastre obscur": citando Kierkegaard, ele diz que "um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento de repetir o começo e voltar a repeti-lo muitas vezes". O que ele quer dizer com isso? O seguinte: que, após o fim da pátria-mãe soviética e a queda do Muro de Berlim, os comunistas encontram-se diante da possibilidade - melhor, do dever - de voltar ao ponto onde pararam e "começar do começo". Mais que isso: citando Lênin, ele afirma que é necessário "reafirmar a hipótese comunista" constantemente, sem dar bola para o coro das vozes derrotistas que vêm de baixo e torcem, maldosamente, para que o excursionista caia da montanha. "Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor", ele diz textualmente. Nisso, Zizek proclama sua total concordância com seu colega marxista Alain Badiou, que, na mesma PIAUÍ* (n. 23), afirmou o seguinte: "Se precisarmos abandonar essa hipótese, então não valerá mais a pena fazer nada no campo da ação coletiva. Sem o horizonte do comunismo, sem essa Idéia, nada no devir histórico e político tem qualquer interesse para um filósofo". Logo, prossegue Badiou, "o que cabe a nós filósofos como tarefa, e até mesmo obrigação, é ajudar no surgimento de uma nova modalidade de existência da hipótese comunista".

Pausa para reflexão. O que está aí em cima é bastante revelador. Nas palavras sábias de M. Badiou (e também, portanto, de Zizek), "sem o horizonte comunista, sem essa Idéia" - com I maiúsculo - "nada no devir histórico e político tem qualquer interesse para um filósofo". O que isso significa, exatamente? Significa que, sem a gloriosa e redentora Idéia comunista, sem esse fetiche, nada, absolutamente nada, se pode fazer, nem pensar. A própria Filosofia (com F maiúsculo) torna-se, portanto, impossível. Ou, dito de outro modo: sem o marxismo, sem a perspectiva comunista e revolucionária, não há Filosofia. Toda a enorme tradição filosófica de milênios, portanto - desde Platão e Aristóteles até Heidegger e Wittgeinstein, de Confúcio a Karl Popper, passando por S. Agostinho e S. Tomás de Aquino -, perderia todo o sentido, seria nada mais do que um exercício fútil e descartável de onanismo mental. A Filosofia, se não estiver a serviço da "hipótese comunista", não é Filosofia, é isso que nos dizem Badiou e Zizek. Daí não ser surpreendente a afirmação que vem logo em seguida: a tarefa dos filósofos - na verdade, sua obrigação, como diz Badiou - se resume a tentar ressuscitar o cadáver, "ajudar no surgimento de uma nova modalidade de existência da hipótese comunista". Tudo o mais - as complexas questões da metafísica e do ser, o debate interminável sobre a realidade das coisas e o infinito etc. - perde completamente qualquer relevância diante desse objetivo sublime (pelo visto, Raymond Aron não estava sendo metafórico quando definiu o marxismo, em um lance de genialidade, como o ópio dos intelectuais...).

Não é preciso ser filósofo para perceber que, por trás desse palavreado empolado, o que existe é uma tremenda picaretagem, a mais pura vigarice intelectual - uma tentativa canhestra de negar o óbvio, a fim de manter acesa a chama da "Idéia" que a História tratou de jogar na lata de lixo junto com outras ideologias totalitárias, como o fascismo e o nazismo. Isso fica claro quando Zizek apresenta a definição do que seria a tal "hipótese comunista", que deve ser preservada apesar de tudo.

Segundo Zizek, o capitalismo global está assentado em quatro antagonismos, a saber: 1) "a ameaça premente de catástrofe ecológica"; 2) "a inadequação da propriedade privada para a chamada propriedade intelectual"; 3) "as implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos, especialmente no campo da engenharia genética"; e - o mais importante para Zizek - 4) "as novas formas de segregação social - os novos muros e favelas". Os três primeiros são o que Zizek chama de "commons", usando uma terminologia emprestada dos teóricos marxistas Michael Hardt e Antonio Negri: são os bens comuns a toda a humanidade, que constituem "a substância compartilhada do nosso ser social, cuja privatização é um ato violento ao qual se deve resistir, se necessário, pela força". "Contudo", prossegue Zizek, "é apenas o quarto antagonismo, o dos excluídos, que justifica o termo comunismo".

Olhemos um pouco mais de perto esses quatro "antagonismos do capitalismo global", no dizer de Zizek. O primeiro, a "ameaça premente de catástrofe ecológica", pode ser traduzido assim: o capitalismo é mau, frio e perverso, movido unicamente pela ganância e pelo lucro, o que resulta, inexoravelmente, em destruição do meio ambiente e em poluição. Uma caracterização muito atraente, sem dúvida, que cairia bem em uma cartilha ginasiana ou em uma escolinha do MST. A dedução lógica é que o sistema antagônico ao capitalismo - o socialismo, o comunismo, enfim a "hipótese comunista" -, por colocar o "coletivo" acima do vil egoísmo e da ambição individual, é automaticamente superior e deve-se, portanto, lutar por ele. Objetivo certamente sedutor, sobretudo para adolescentes revoltados de classe média em busca de uma "causa", mas que, infelizmente, não responde às seguintes questões inconvenientes: 1) onde está cientificamente comprovado, senão na mente paranóica dos ecoxiitas, que o capitalismo é necessariamente incompatível com a preservação do meio ambiente e conduzirá, inexoravelmente, a uma catástrofe ecológica? (o desenvolvimento sustentável e o eco-turismo, por exemplo, seriam, nesse sentido, atividades sem fins lucrativos - o próprio Zizek, aliás, parece reconhecer a fragilidade desse "antagonismo"); e 2) se a "hipótese comunista" é mesmo superior ao capitalismo no quesito preservação ambiental, então se deveria concluir que tragédias como a de Chernobyl e o secamento do Mar de Aral, sem falar nas fábricas mais poluentes do mundo, ocorreram em outro lugar, e não na finada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Quanto a isso, Zizek silencia.

Sobre o segundo "antagonismo" (a "inadequação da propriedade privada para a propriedade intelectual"), suponhamos, por um momento, que a propriedade privada seja mesmo inadequada à propriedade intelectual. Nesse caso, teríamos que admitir que os artistas e intelectuais, sem falar nos cientistas, que lucram com as patentes e royalties de seus livros, filmes e invenções, viveriam em outro planeta. Já os escritores, músicos e cineastas vinculados à UNEAC - União dos Escritores e Artistas de Cuba -, obrigados a entregar seus direitos autorais ao Estado, e que vivem em um país onde vigora, segundo Zizek, a "idéia comunista", seriam os mais ricos do mundo.

Quanto ao terceiro ponto ("as implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos" etc.), parece-me que Zizek confunde o avanço da ciência com o próprio capitalismo (no que, aliás, pode estar certo: afinal, foi o capitalismo, e não qualquer outro sistema socieconômico, o responsável pelas maiores descobertas científicas e pelo maior salto de qualidade na vida da humanidade, em toda a História). Além do mais, comete um erro crasso, ao inferir que, por estarem supostamente submetidos à lógica implacável do mercado, tais avanços estariam além de qualquer controle: qualquer ameaça potencial à segurança genética da humanidade - a clonagem de embriões humanos ou os vegetais transgênicos, por exemplo - encontra-se, há anos, sob intenso escrutínio governamental e da opinião pública na maioria dos países, e o simples debate acalorado entre defensores e inimigos da engenharia genética demonstra-o cabalmente. O mesmo não pode ser dito, porém, dos antigos países socialistas, nos quais a vigência da "Idéia" levou a aberrações como o lyssenkismo, com todos os funestos resultados conhecidos na produção de alimentos. É inegável que, em sociedades totalitárias, a ciência, como tudo o mais, está subordinada ao Estado, constituindo, assim, uma ameaça muito mais temível. O problema, portanto, não é a ciência em si, mas sua utilização por regimes totalitários. Quem leu Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, sabe do que estou falando.

Mas é no quarto "antagonismo" apontado por Zizek ("as novas formas de segregação social") que a "idéia comunista" se mostra, para ele, mais forte e necessária. Para Zizek, o pecado maior do capitalismo, aquilo que ele, Zizek, não pode perdoar, não é a devastação dos rios e florestas, a incompatibilidade com a noção de propriedade intelectual ou as ameaças inerentes à manipulação dos genes, mas o antagonismo incluídos (a "classe dominante" de outrora), de um lado, e excluídos (a "classe dominada"), de outro. É, enfim, a velha luta de classes, hoje ampliada para além da dicotomia clássica "burguesia versus proletariado" para abarcar a questão dos muros e favelas etc. A "hipótese comunista", nesse sentido, seria a busca por reduzir a distância - social e geográfica - entre esses dois setores, ao mesmo tempo em que rejeita a "noção liberal predominante" de democracia como inclusão dos excluídos "como vozes minoritárias" em favor da "universalidade corporificada dos excluídos". Esta seria, segundo Zizek, a concretização da "hipótese comunista" em seu mais alto grau: "Desde a Grécia Antiga, temos um nome para a intrusão dos excluídos no espaço sociopolítico: democracia". E arremata: "Em contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm 'nada a perder além de seus grilhões', o que nos une é o perigo de perdermos tudo".

Mais uma vez: algo muito lírico, muito bonito, poético até. Pena que essa descrição da "hipótese comunista" como o éden dos excluídos-tornados-incluídos seja tão verdadeira quanto o conto de fadas marxista que quer preservar a qualquer custo. Em primeiro lugar, a definição dessa "idéia" como "a intrusão dos excluídos no espaço sociopolítico" - que corresponde, de fato, ao conceito clássico de democracia, desde Atenas - tem tudo a ver com o capitalismo da atualidade, e nada a ver com o que quer que seja identificado com o comunismo, seja como realidade estatal, seja como "hipótese" ou "idéia". Pois é somente no capitalismo que floresceram, até agora, sociedades plenamente democráticas - se Zizek tem alguma dúvida quanto a isso, sugiro olhar para os países da Europa onde vive, por exemplo. É verdade que o capitalismo pode conviver com regimes autoritários (o Chile de Pinochet e a China atual são dois exemplos), mas é um fato inegável que, até o momento em que escrevo estas linhas, não surgiu ainda nenhum exemplo de país não-capitalista que fosse, também, uma democracia. Isso sem mencionar a brutal separação incluídos/excluídos nas "democracias populares" do Leste Europeu entre 1945 e 1989, onde uma elite privilegiada de burocratas do Partido excluía a maioria da população das delícias da "ditadura do proletariado" (foi o que ocorreu em TODOS os países socialistas). Inclusive com o mais famoso Muro da História - o Muro de Berlim -, uma prova cabal de separação política e social não só interna, mas de um regime em relação ao resto da humanidade. Zizek jamais irá reconhecer, mas a inclusão dos excluídos nos espaços de decisão coletiva é, na verdade, uma característica do... capitalismo.

A obstinação dos marxistas de hoje, como Slavoj Zizek, no que chamam de "hipótese comunista" só se explica por uma necessidade platônica e psicológica de separar o "ideal" do "real', da mesma forma como ainda hoje muitos filósofos e cientistas sociais persistem na distinção entre "socialismo ideal" (a "hipótese comunista" de Zizek e Badiou) e "socialismo real" (a dura e feia realidade dos países comunistas). Assim, pretendem manter as consciências limpas, preservando o ideal da juventude ao mesmo tempo em que o inocentam de qualquer responsabilidade pelos crimes dos comunistas. Estes seriam culpa da maldita realidade, que insiste no péssimo hábito de não se curvar ante nossos mais puros desejos...
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É uma tática eficiente, não se pode negar. Muitos que jamais leram uma linha de Marx na vida, e que sabem tanto sobre o comunismo e a Revolução Russa quanto de física quântica, repetem automaticamente essa tese. Mas isso demonstra apenas o triunfo não da verdade, mas da propaganda e do wishful thinking. É fora de dúvida que, por mais que queiram o contrário os órfãos da utopia marxista, o fato é que a realidade comunista é inseparável da "Idéia". O Gulag e os processos de Moscou, os milhões de mortos em sangrentos expurgos ou em fomes generalizadas e induzidas pelo Estado na Ucrânia e na China, os campos da morte no Camboja, o paredón em Cuba... nada disso surgiu do nada, do vazio; tampouco foi o resultado de um desvio de rota, de um desvirtuamento do plano revolucionário original, supostamente puro e imaculado, devido, talvez, ao caráter intrinsecamente mau e pervertido da natureza humana, ainda não tocada pela vara de condão redentora do marxismo. Pensar assim é pura auto-ilusão, mera racionalização da derrota. O "socialismo real" nada mais foi do que a aplicação, na prática, do "socialismo ideal"; a tradução, no plano da realidade, dos pressupostos e dogmas marxistas e comunistas. Os que hoje negam esse fato e se refugiam no engano neomarxista ou neocomunista - como se repetir o mesmo erro resultasse, um dia, em acerto -, deveriam ter a honestidade e a coragem intelectual de admitir que toda a obra marxista, e inclusive o comunismo pré-marxista, contém em germe a semente do totalitarismo, assim como as teorias eugenistas e racistas do século XIX forneceram a base pseudo-científica à "Solução Final" e a Auschwitz - tese que nenhum estudioso sério do nazismo ousa contestar.
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Os verdadeiros pais intelectuais do extermínio de 100 milhões de seres humanos não foram Stálin ou Mao, nem Lênin e Trotsky, mas Marx e Engels. Aqueles foram apenas seus operadores, tendo acrescentado muito pouco ao que os mestres disseram. Querer dar uma nova chance a essa "Idéia" responsável por tanta morte e sofrimento é, para usar uma imagem do próprio Marx, tentar fazer a História repetir-se, seja como tragédia, seja como farsa (ou, o que é mais provável, como as duas coisas ao mesmo tempo). Transformar a distopia em utopia é a melhor maneira de iludir os incautos. Contra essa monumental impostura, contra essa tentativa de coletivização do pensamento, é necessário resistir, aqui sim, se necessário, pela força. Comunismo nunca mais. Nem como hipótese.
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* = A PIAUÍ é aquela revista moderninha que posa de "independente" e que vez ou outra publica artigos de Tariq Ali ou de Alain Badiou, mas que nunca publicou nada, pelo menos não que eu saiba, de Jean-François Revel, Bernard Lewis ou Victor Davis Hanson. É, novamente, a "imparcialidade" a favor de um lado só.