sexta-feira, julho 24, 2009

LULA E A BANALIDADE DO MAL

É da filósofa alemã Hannah Arendt um dos conceitos mais importantes e influentes do século XX, o da "banalidade do mal". Este surgiu quando Arendt cobriu como jornalista o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichman em 1960, em Jerusalém. Eichman, um dos responsáveis pela implementação da "Solução Final" de Hitler, fora capturado por um comando israelense na Argentina, onde vivia escondido desde o final da guerra, e enviado a Israel para julgamento. Sobre suas costas pesava parte da culpa pelo extermínio de seis milhões de judeus nos campos de concentração do regime hitlerista.

Muitos esperavam, Hannah Arendt inclusive, ver em julgamento uma espécie de monstro de maldade e vileza, um sádico cruel e sanguinário. Pois Arendt, que era judia, se surpreendeu, assim como todo o mundo, quando viu, no banco dos réus, não o que se poderia esperar de um assassino monstruoso, mas um sujeito absolutamente comum, pai zeloso e pacato, um burocrata frio e cinzento, incapaz de ação e pensamento próprios, e que o tempo todo se escudou num único argumento: fez o que fez não porque odiasse suas vítimas, mas porque assim fora ordenado por seus superiores hierárquicos. Em outras palavras: deportou milhares de judeus para campos de concentração não porque nutrisse qualquer sentimento genocida, mas simplesmente porque era seu dever como funcionário do Reich fazê-lo. Para ele, Eichman, enviar milhares de velhos, mulheres e crianças para a morte era apenas mais uma tarefa, como carimbar documentos ou organizar um fichário - ele mostrou mesmo um certo orgulho de sua eficiência. O contraste chocante entre a personalidade apagada de Eichman e a enormidade dos crimes que lhe foram imputados levou à idéia da "banalidade do mal", que Arendt desenvolve em seu livro Eichman em Jerusalém.

O conceito de banalidade do mal me vem à mente com freqüência desde que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência da República, em 2003. Não, não estou comparando o Apedeuta ao criminoso nazista. Ainda não perdi a noção de proporcionalidade, algo que parece desconhecido para muitos que apóiam o atual governo brasileiro, e que não vêem contradição alguma em reclamar de um editorial de jornal que chamou de "ditabranda" um regime político que matou 424 pessoas em 21 anos e aplaudir, ao mesmo tempo, uma tirania que ja dura 50 anos e fez cerca de cem mil mortos. Ao contrário desses, sei que os crimes são diferentes, tanto em suas proporções, quanto em suas circunstâncias. Mas é inevitável não lembrar de Hannah Arendt e de sua perplexidade ante a frieza burocrática de Eichman quando me deparo com a sucessão interminável de escândalos de corrupção que constituem a marca registrada do governo Lula da Silva e, principalmente, com a maneira como ele lida com esses fatos.

Guardadas as devidas proporções, tanto em um caso como em outro o que se vê é uma banalização total da idéia de bem e de mal, de certo e de errado. Desde que assumiu o poder, Lula não tem feito outra coisa senão jogar na cara de todos que o elegeram e que não o elegeram que está se lixando para o que as convenções da moral e da ética estabeleceram como bom e justo, escarnecendo de tudo que nos foi ensinado como mais sagrado desde a mais tenra infância ("não mentir" e "não roubar", para começo de conversa).

O último dos escândalos a freqüentar o noticiário, os quais, por já se tornarem corriqueiros, nem parecem mais causar indignação, é a crise no Senado Federal decorrente das denúncias contra seu atual presidente, José Sarney, que usou e abusou do cargo para nomear parentes em atos secretos. Com o intervalo de alguns dias, Lula disse que Sarney, um aliado fundamental do governo,"não pode ser tratado como se fosse uma pessoa comum", reclamou que "é preciso levar em conta sua biografia", e tentou minimizar as acusações de que ele é alvo, queixando-se dos que as vêem "como se fosse um crime de pena de morte". Nesse último caso, sob a aparência de hierarquização do crime, o que ele quis, na verdade, foi justificar a impunidade e o nepotismo. No primeiro caso, zombou da igualdade de todos perante a lei, justificando uma mentalidade colonial. Ao apelar para a biografia de Sarney, exigindo-lhe respeito, somente reforçou a velha idéia, tão velha quanto o Brasil, do "sabe com quem esta falando?" Em todos os casos, uma amostra explícita de escárnio em relação à opinião pública.

Por falar em biografias, vale a pena dar uma olhada na de Lula. Ele construiu sua biografia em cima de uma serie de mitos, o maior deles o de que ele e seu partido, o PT, eram a parte sadia e "ética" da política brasileira. Como tal, especializou-se, durante mais de duas décadas, em enlamear a reputação de adversários políticos, enquanto construía cuidadosamente a própria. Até outro dia - até 2002, para ser mais exato -, o atual presidente da República tinha uma opinião muito diferente sobre o atual presidente do Senado (está no Youtube para quem quiser ver um vídeo daquela época, em que Lula se refere a Sarney com adjetivos não menos suaves do que "pai dos ladrões", entre outras delicadezas). Agora, com a cara mais lavada do mundo, pede respeito a seu aliado.
.
Em sua marcha para o Planalto, os petistas não pouparam meios: reputações foram destruídas, carreiras foram arruinadas. Conquistado finalmente o poder, após três tentativas frustradas e uma passagem inexpressiva pelo Congresso, Lula assumiu-se de forma explícita como um cínico bravateiro. A partir de então, o que antes era a esperança de renovação da política no Brasil e o partido mais ético da História nacional mostrou-se, na verdade, apenas mais do mesmo. Uma gigantesca máquina de cooptação política, feita de troca de favores e do mais puro fisiologismo, com sua sucessão de mensalões, valeriodutos, dossiês, renans, jaders e severinos - a maior máquina de sujar e lavar reputações da História do Brasil.

Se a "conversão" de Lula e do PT ao fisiologismo mais escrachado de velhas raposas como Sarney e partidos como o PMDB demonstra alguma coisa de forma clara e definitiva, é que o único critério petista em relação a seus aliados é o seguinte: Está comigo? Então pode tudo. Não está comigo? Então tome denúncia sensacionalista, tome calúnia e difamação. Esse é o único critério da política petista, é sua motivação básica. Nisso Lula e o PT superam todos os que os antecenderam. Inclusive em termos de inteligência. À diferença de FHC, em relação a quem nutre um indisfarçável complexo de inferioridade, Lula não pode sequer pedir que esqueçam o que escreveu. Simplesmente porque ele nunca escreveu - nem leu - nada na vida.
.
Vale a pena aqui analisar um pouco mais de perto a evolução do pensamento esquerdista em relação à corrupção. Trata-se de algo bastante instrutivo. Para fins didáticos, pode-se dizer que o "discurso ético" das esquerdas passou por três fases distintas:

1a Fase: "O partido dos trabalhadores" - Essa primeira fase cobre quase toda a história dos partidos esquerdistas no século XX e se encerra no final dos anos 80. Durante esse período, as esquerdas consideravam as denúncias de corrupção uma mera manifestação de "moralismo udenista" e uma "afetação pequeno-burguesa". O mais importante era combater as injustiças sociais e derrubar o capitalismo, fonte de todos os males. Tudo o mais era secundário e deveria se subordinar a esse objetivo glorioso. Foi nesse período que se consolidou no imaginário coletivo a imagem clássica do esquerdista como revolucionário radical, sempre pronto a convocar uma greve.

2a Fase: "O partido da 'ética na política'" - Tem início com o impeachment de Collor, em 1992. Caracteriza-se por uma mudança radical em relação ao discurso anti-corrupção: se antes denunciar a roubalheira era visto com suspeitas pelos esquerdistas como uma demonstração de udenismo, agora abria-se, pela primeira vez em décadas, a perspectiva de as esquerdas chegarem ao poder. Estas então abraçam os mesmos slogans que condenavam antes em seus adversários da direita, adotando entusiasticamente o discurso da "ética na politica". Com isso, também, tentaram afastar-se da imagem radical construída nos anos anteriores, aproximando-se das classes médias. A idéia agora era que a "ética" era representada por eles, os esquerdistas, enquanto seus adversários, a "direita", estavam identificados indelevelmente com a corrupção. É esse o período áureo do denuncismo petista, encarnado por figuras como o procurador do Ministério Público Luiz Francisco de Souza (lembram dele?), que se especializou em usar os holofotes da mídia para jogar lama de forma irresponsável em figuras proeminentes do governo FHC que anos depois seriam inocentadas de qualquer acusação pela Justiça. Nos anos seguintes, o "discurso ético" seria praticamente o único discurso das esquerdas, abaladas e desorientadas momentaneamente pelo colapso do comunismo e pela queda do Muro do Berlim, tendo sido empregado sistematicamente, até a exaustão, durante os anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, condenado no tribunal esquerdista por suas alianças espúrias com Antônio Carlos Magalhães e o ex-PFL (o "Fora FHC" foi o mote desse periodo).

3a Fase: "Todos fazem igual" - Comeca em 2003, com a chegada de Lula à presidência da Republica. Desde então, a inflexão esquerdista em relação à corrupção ocorreu de maneira muito mais radical. Com a explosão de casos escandalosos como o do mensalão e (muitos) outros, tornou-se impossível para os esquerdistas no poder sustentarem o discurso da "ética na política". Constatada sua inutilidade, este foi logo abandonado, em favor das realidades do poder. Inicialmente, a reação de Lula e dos petistas foi a de qualquer um pego com a boca na botija: tentaram negar as denúncias, atribuindo-as a uma fantasmagórica "conspiração das elites e da mídia". Em seguida, veio o "não vi nada, não sei de nada" e o ainda menos convincente "fui traído". É nesse momento que ocorre uma nova virada: sai de cena o "partido mais ético da História do Brasil" e entra o "todos fazem igual". Não sendo mais possível manter a máscara de bons-moços, não resta nada aos petistas e seus aliados senão espalhar lama para todos os lados, de modo a que, todos enlameados, seja impossível para o cidadão médio perceber as diferenças entre eles, os esquerdistas, e os demais políticos. Assim, nivelados todos por baixo, os petistas garantem sua impunidade, tal qual o bandido que, pego em flagrante delito, grita "pega ladrão" na esperança de que possa, assim, desviar a atenção de todos e escapar de fininho.
.
Com efeito, esse passa a ser, desde então, o discurso ofical petista para defender-se de qualquer crítica e justificar a bandalheira, enquanto o velho dogma esquerdista que considera as denúncias mera "afetação moralista burguesa" é, dialeticamente, ressuscitado. Hoje, Lula e seus aliados apegam-se a esse discurso com sofreguidão, não concebendo nada mais sofisticado do que dizer-se iguais aos demais partidos (antes diziam-se diferentes de todos) e que "ninguém é santo". Se antes apostavam na revolução ou no exclusivismo ético, a aposta agora é no cinismo e no esquecimento.
.
A tática parece estar dando certo, como demonstram os índices de popularidade de Lula, sempre nas alturas. Na cabeça da maioria dos brasileiros, educados na escola do clientelismo e do assistencialismo fisiológico, a corrupção petista e a associação com figuras como Sarney e Collor não passam de "coisas da política". Como pequenos maquiavéis, acreditamos que entre um governo corrupto de direita e um governo corrupto de esquerda, o segundo é melhor. Mas esse maquiavelismo tosco esquece-se de um fato essencial. A banalização da corrupção pelos companheiros petistas, se tem efeitos deletérios a curto e médio prazo, a longo prazo é simplesmente catastrófico. Lula e o PT não são apenas o que há de mais sujo e imoral já surgido na política brasileira - faço essa afirmação literalmente, e desafio qualquer um a mostrar um governo que tenha alcançado o nível de excelência do governo Lula em matéria de saque dos cofres públicos -; trata-se de um governo que, ao banalizar a corrupção, introduziu o cinismo na vida cotidiana, levando a um rebaixamento institucional sem precedentes na História do Brasil. Em outras palavras: conseguiram desmoralizar a própria corrupção, tida hoje como algo perfeitamente normal e aceitável.
.
Não foram somente os hábitos e costumes políticos brasileiros que sofreram um rebaixamento, mas o nível moral da população e a saúde das instituições democráticas que foram afetados seriamente, talvez de forma irreversível. Não por acaso, a alternância no poder, base mesma da democracia, foi diariamente ameaçada pelos petistas, que insistiram no terceiro mandato de Lula até o limite do possível. Do mesmo modo, instituições antes tidas como sérias e símbolos de rebeldia e resistência cívica, como a UNE, viraram exemplos do mais abjeto servilismo ao poder (falando nisso, onde estão os "carapintadas" que saíram às ruas pedindo a saída de Collor em 92? Aliás, Collor é hoje aliado e amigo de Lula, com quem compartilha até palanque).

O resultado disso tudo é o embotamento moral de todos, mergulhados num oceano de mentiras e de bravatas vistas como a coisa mais normal do mundo. Esse sentimento anda de mãos dadas com a perplexidade, que termina levando à indiferença, à crença generalizada de que, não importa quem esteja no poder, são todos farinha do mesmo saco - o "todos fazem igual". Nessas condições, a sucessão quase diária de denúncias e escândalos, ao invés de gerar indignação, provoca apenas tédio e uma sensação anestesiante e entorpecedora de impotência, pois afinal "são todos a mesma coisa". Ou, então, leva à fórmula pragmática de Paulo Betti ("não se faz política sem meter a mão na merda"). Ao propagar esse tipo de mentalidade cínica e conformista, o petismo triunfou completamente (a propósito: não gosto de política; nem por isso sou indiferente ao assunto - não se pode ser indiferente diante da nojeira).

Com Lula, a mentira e a corrupção se tornaram verdadeiros objetos de culto. Estamos sob o domínio do mal. Da banalidade do mal.

---
P.S.: Quanto a Adolf Eichman, os juizes israelenses não se sensibilizaram com a justificativa de que estava apenas cumprindo ordens: ele foi condenado à morte e enforcado. Para os que o julgaram, o mal não podia ser banalizado. É uma pena que nesta parte do mundo a escrita seja diferente.

Nenhum comentário: