sexta-feira, julho 17, 2009

FÉ: UM DELÍRIO


Dizem que religião, assim como futebol e política, não se discute. Eu discordo totalmente, e já escrevi aqui por quê. Religião se discute, sim. A velha questão, tão antiga quanto a humanidade - Deus existe? -, é, mais do que nunca, discutível. Mais que isso: colocá-la em debate, hoje, não tem nada de inútil, é algo extremamente necessário. Uma questão até mesmo de saúde mental, digamos assim.
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Atualmente há um certo boom editorial de autores que se declaram abertamente ateus, e que questionam a religião e a crença em Deus, santos e demônios. Alguns desses livros, como Deus: Um Delírio, do biólogo evolucionista inglês Richard Dawkins, já viraram verdadeiros best-sellers. Trata-se de uma novidade, certamente bem-vinda, que esse tema esteja sendo objeto de debate - sobretudo em um país como o Brasil, onde mais de 95% da população diz acreditar em Deus e onde se dizer ateu ainda é sinônimo de ser visto de esguelha, como um criminoso ou um louco. Mas, nesse terreno movediço, é bom ir devagar com o santo porque, como dizem os crentes, o andor é de barro.
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Pode-se dividir os autores da atual safra de literatura ateísta em duas grandes categorias. De um lado, há os adeptos do ateísmo científico, como Dawkins, Sam Harris (The End of Faith, Carta a uma Nação Cristã) e Daniel C. Dennet (Quebrando o encanto: a religião como um fenômeno natural), que usam as ferramentas da ciência - no caso de Dawkins, a biologia evolutiva; no de Harris e Dennet, a neurociência - para desacreditar a fé, apresentando as religiões como o produto de temores irracionais ou de atavismos supersticiosos, quando não de certa programação neurolingüística. De outro, há os que professam o que se poderia chamar de ateísmo moral ou filosófico - Michel Onfray (Tratado de Ateologia) e Christopher Hitchens (Deus Não é Grande) são seus principais representantes -, que questionam a religião e seu principal dogma, a crença em Deus, a partir dos pressupostos éticos dessa crença. A idéia de que a ética religiosa é necessariamente superior a uma ética atéia é implacavelmente demolida por esses autores, que apresentam o fenômeno do fundamentalismo religioso (sobretudo das três grandes religiões monotéistas - judaísmo, cristianismo e islamismo) como prova irrefutável de que crer em Deus, ao contrário do que afirma o senso comum, não torna ninguém mais pacífico e bondoso. Pelo contrário: como demonstram o 11 de setembro de 2001 e Osama Bin Laden, não há qualquer contradição entre ser um fiel devoto e em promover um banho de sangue, movido a fanatismo e intolerância.
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O sucesso editorial de algumas dessas obras, principalmente a de Dawkins, tem suscitado, é claro, críticas severas. E, pelo caráter deliberadamente polêmico desses livros, não poderia ser diferente. As críticas partem não somente de quem seria óbvio esperar uma reação desfavorável, como padres, pastores, imans e rabinos, mas também de gente que não tem nada de carola, muito pelo contrário. Acabei de ler um artigo de um filósofo conhecido meu, o Pablo Capistrano (http://colunas.digi.com.br/pablo/dawkins-um-delirio/), aliás insuspeito de qualquer ultramontanismo, em que ele desce o pau em Dawkins, o qual acusa de não ver a beleza intrínseca às religiões, pois não enxerga que “doutrinas religiosas são construções literárias que servem como instrumentos de produção de experiências místicas e precisam ser lidas com ferramentas hermenêuticas específicas”. De fato, se formos analisar o livro de Dawkins, ou qualquer outro autor, com base nessas "ferramentas hermenêuticas específicas", estaremos fazendo não ciência ou filosofia, mas literatura ou teologia, e a obra de Dawkins não é, em nenhum aspecto, literária ou teológica. Trata-se, na verdade, de um livro de divulgação científica, que usa os instrumentos da ciência e da razão para se contrapor à crença religiosa. O que faz, diga-se de passagem, de forma razoavelmente competente.
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O mais curioso é que muitos dos argumentos utilizados agora contra Dawkins e outros autores partem de pessoas que costumam usar pesos diferentes para medir o mesmo fenômeno. Muita gente que contesta Dawkins com argumentos filosóficos e mesmo literários enche-se de indignação contra alguma declaração considerada ultra-ortodoxa do Papa Bento XVI sobre aborto e casamento gay, assim como não hesita em apontar "intolerância" em algumas charges do Profeta Maomé publicadas em um jornal dinamarquês. São as mesmas pessoas que não vêem problema algum em defender com unhas e dentes, em nome do "multiculturalismo" e do "respeito às diferenças", o "direito" de os muçulmanos apedrejarem mulheres adúlteras ou arrancar com gilette o clitóris de meninas em idade pré-púbere. Também não vêem contradição alguma em condenar o que lhes parece "intolerância" na Igreja Católica em relação a homossexuais e fechar os olhos para, ou mesmo justificar, intolerância bem maior contra os mesmos homossexuais nos países islâmicos. É que condenar a Igreja é algo "progressista", enquanto fazer o mesmo com os muçulmanos é "eurocentrismo"... Por que o que é condenável no cristianismo é aceitável no Islã?
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Vejam o caso acontecido alguns meses atrás em Pernambuco, da menina de 9 anos que teve que abortar por estar grávida do padrasto, que a estuprara. O caso incendiou a opinião pública, e levou à condenação praticamente unânime do arcebispo local, que excomungou a mãe da menina e os médicos que realizaram o aborto. Até o ministro da Saúde entrou na discussão, condenando de forma veemente o "obscurantismo" do clérigo. O que ninguém parece ter se dado conta é que a excomunhão, nesse caso, não foi um ato da vontade do arcebispo, mas uma medida automática da Igreja Católica, que considera o aborto, em qualquer circunstância, um pecado mortal. Mais importante, ninguém pareceu se preocupar com o fato de que a condenação da Igreja, em casos assim, não tem efeito algum sobre a integridade física ou a liberdade de quem quer que seja, sendo, antes, uma questão teológica da Igreja Católica e dos que nela acreditam. Em outras palavras: ninguém será queimado na fogueira por causa da decisão da Igreja. Já quanto às fatwas muçulmanas, como a que foi decretada pelo falecido aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie, prometendo o Paraíso a quem o assassinasse em nome de Alá, não se pode negar que se trata de algo muito mais grave e literalmente letal, pois diz respeito não somente a crer ou não num artigo de fé, mas a intolerância e obscurantismo puro e simples. Mas ainda há quem se escandalize com a atitude de um arcebispo católico num país laico, e não veja problema algum na jihad.
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Sempre que se toca no assunto religião, nunca me contento com argumentos do tipo "isso é uma questão de foro íntimo" ou "acredito em Deus porque eu sinto que Ele existe" etc. Também acho fraquíssimas afirmações como "não existem ateus na hora da morte". Francamente, não vejo diferença entre esse tipo de afirmação e uma alucinação ou expressão de vontade - e contra uma expressão de vontade, a Razão é impotente. Mas, ao mesmo tempo, sei que muita gente se declara atéia por modismo, ou por desesperança, ou, ainda, no caso dos marxistas, por ideologia. Uns poucos o são por motivos puramente fiósóficos ou morais. Procuro situar-me nesse último grupo.
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Sou ateu. Isso significa que não sou dado a arroubos místicos, nem considero qualquer "experiência transcedental" um critério de verdade objetiva. Mas nem por isso deixo de reconhecer, em algumas religiões, ensinamentos morais importantes ("não matarás" e "não furtarás", por exemplo, parecem-me ensinamentos bastante razoáveis). Assim como nem por isso deixarei de defender até o fim o direito dos crentes professarem suas crenças, por mais que eu discorde delas e as considere irracionais e até perigosas para a saúde. Ao contrário dos marxistas, que se opõem à religião muito mais para se livrar de um rival incômodo a seus deuses profanos, e dos multiculturalistas, que restringem suas críticas geralmente ao cristianismo (na verdade, à moral judaico-cristã ocidental), coloco-me a favor da liberdade, inclusive, e sobretudo, da liberdade religiosa. Exatamente por isso, ou seja, exatamente por reconhecer e defender que cristãos, muçulmanos, judeus, budistas e macumbeiros professem suas crenças sem serem perturbados, espero não ser apedrejado ou linchado na rua por, se me perguntarem, responder que não creio em Deus. Crer, ou não crer, para mim, mais do que uma questão de fé, é um direito. Fora disso, só existem as trevas, o obscurantismo, a barbárie.

Um comentário:

Diego disse...

Excelente texto, mais uma vez - ainda mais um com o qual concordo inteiramente, sendo eu ateu agnóstico.

E me traz à lembrança o ótimo texto seu, "Ateus e ateus". O fato de parte das atrocidades comunistas terem sido cometidas principalmente por causa da convicção religiosa da vítima, e menos pela posição política das vítimas ou pela ingerência (a grande maioria dos cem milhão de mortes) pode ser sim infelizmente posto na conta do ateísmo como um todo na mesma lógica em que pusermos as atrocidades diretamente ligadas à religião na conta de cada religião como um todo. Mas isso de forma alguma quer dizer que tanto a religião quanto o ateísmo estejam necessariamente errados, e que não possa estar em alguma forma de ateísmo uma cosmovisão menos ilusória e mais efetiva em adequar nossa mente à realidade.