terça-feira, julho 14, 2009

Ainda sobre a falácia relativista (ou: por que é impossível ser neutro diante do crime)

Pode-se ficar neutro diante disto?
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"Atrevo-me a dizer que as ditaduras de esquerda são piores, pois contra as de direita pode-se lutar de peito aberto; quem o fizer contra as de esquerda será tachado de reacionário, vendido, traidor". (Jorge Amado)
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"Não se pode ser neutro diante da morte: não fazer nada já é tomar uma posição". (Do filme No Man's Land - Terra de Ninguém)


No meu último post, analisei aquilo que está classificado nos manuais de filosofia como falácia relativista - o cacoete mental que insiste na afirmação de que a verdade, pelo menos em política, é inalcançável e que qualquer afirmação nesse terreno não passa, portanto, de um ponto de vista. Vou me estender um pouco mais sobre o assunto, se me permitem.
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Como mencionei em meu texto anterior, o discurso "neutro" e politicamente correto, que se pretende acima das ideologias e se recusa a emitir uma opinião clara e sem ambigüidades sobre ditaduras e terroristas é, na verdade, uma contradição em si, pois não está livre, ele também, de uma visão ideológica. Isso fica claro quando se observa que esse discurso, construído sob o signo da "imparcialidade", revela-se, na prática, bastante seletivo (logo, o contrário de imparcial) - para ditadores e terroristas de direita, condenação total e implacável; para os de esquerda, compreensão e neutralidade antisséptica. Daí a pergunta, que provavelmente continuará sem resposta por muito tempo: por que, pelo menos nos círculos mais intelectualizados, quando se trata de Hitler e Pinochet, o repúdio é unânime, mas, quando se trata de Stálin e Fidel, pede-se moderação e "equilíbrio"?
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O discurso "neutro" teria alguma legitimidade caso se abstivesse de condenar a todos, indistintamente. Como geralmente não o faz, reservando sua neutralidade e imparcialidade aos regimes e movimentos de esquerda, a conclusão lógica e inevitável é que não passa da mais grossa vigarice, de mera trapaça intelectual. E note-se bem: mesmo que o fizesse, enxergando com as mesmas lentes o nazismo e o comunismo - não para condená-los, mas para se recusar a emitir qualquer juízo moral sobre eles -, ao se recusar a tomar posição em relação a tiranos e assassinos, continuaria a ser um discurso desonesto. Corresponderia à anedota do Barão de Munchausen, o famoso mentiroso, em que este, para sair do pântano em que atolara juntamente com seu cavalo, descobre uma maneira ideal de fazê-lo: puxando-se, a ele e ao cavalo, pelos cabelos...
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Nos últimes meses, três episódios ilustram perfeitamente a falácia do relativismo moral. Vou elencá-los, um a um:

- O conflito Israel-Hamas, na Faixa de Gaza - Todos acompanharam pelos jornais e pela TV: a imprensa "isenta" e "imparcial" bombardeou o público com relatos do "massacre" e do "genocídio" que estaria sendo praticado pelos soldados israelenses. De fato, muita gente ficou com a impressão de que Israel estava promovendo um massacre indiscriminado contra a indefesa população palestina, e que a ofensiva israelense em Gaza não tinha outro objetivo senão provocar dor e morte entre os civis. No auge dos combates, Israel foi quase unanimente condenado - novamente, em nome da "isenção" e da "imparcialidade" jornalísticas - pela suposta "desproporcionalidade" de sua reação militar aos foguetes do Hamas. O que quase ninguém se lembrou de dizer é que, se há um lado genocida na história, não é Israel, mas os terroristas do Hamas, que juraram varrer Israel do mapa e aniquilar sua população, ou convertê-la à força ao Islã. Também se esqueceram - mais uma vez, os analistas "neutros" e "equilibrados" - que a "desproporcionalidade" tão condenada entre os dois lados é, felizmente, de meios, não de fins - ao que se sabe, Israel, ao contrário do Hamas e do Hezbollah, não deseja a destruição da Palestina e a conversão à força de sua população ao judaísmo. Para ser "proporcional", no sentido em que falava a grande imprensa, os soldados israelenses deveriam não se contentar em caçar e eliminar os terroristas do Hamas, mas exterminar toda a população palestina. Em outras palavras, inverteu-se a realidade, apresentando-se o agredido (Israel, não o Hamas) como o lado agressor, como se não houvesse mesmo Hamas e terrorismo islamita. Nesse caso, o discurso da "neutralidade" tinha um endereço certo: a condenação do direito de Israel de se defender e a condescendência com o terrorismo islamita, que quer destruí-lo. Algo muito equilibrado, como se vê...

- A fraude nas eleições do Irã - Aconteceu no mês passado, e ainda está fresca na memória. O atual presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ganhou de forma extremamente suspeita as eleições presidenciais. Seguiram-se protestos e manifestações de rua, brutalmente reprimidas pela polícia religiosa do regime, com dezenas de mortos do lado dos opositores. Novamente, os "neutros" apareceram em cena para demonstrar toda sua noção de justiça salomônica: no caso em questão, foi o presidente Lula da Silva, que, numa declaração inesquecível, entrou para o rol dos grandes frasistas da História. Eis o que disse nosso rei-filósofo: os protestos no Irã, assim como a repressão aos manifestantes que pediam democracia, eram uma briga de torcidas, uma simples questão de "vascaínos e flamenguistas" (!). Muito mais do que uma declaração infeliz, que banalizou a luta contra a teocracia islamita iraniana ao nível de um jogo de futebol, reduzindo a luta por liberdade num país dominado por fanáticos religiosos a um chororô de perdedores, a frase de Lula denota um padrão da política externa lulista, de adulação a tiranos e genocidas. Mais que uma gafe, foi uma confissão de cumplicidade com um regime que assassina pessoas. Muito mais grave pelo fato de o Apedeuta em pessoa ter reafirmado o que disse dias depois, desmentindo assim seu próprio ministro das Relações Exteriores que, diante da enormidade da frase, tentou justificar o injustificável, dizendo que ele não disse o que disse. Não colou.

- O "golpe" que não houve em Honduras - A mais recente prova do comprometimento ideológico do discurso relativista e nenhumladista foi dada pela crise institucional que se abateu sobre o pequeno país centro-americano. Um presidente, Manuel Zelaya, com o apoio explícito de Hugo Chávez e Evo Morales, e o silêncio complacente do resto do mundo, tentou violar afrontosamente a Constituição do país, tendo sido por isso deposto por decisão do Legislativo e do Judiciário, que declararam seu governo ilegal e inconstitucional. Novamente, o que fizeram os defensores da visão "neutra" e "imparcial"? Condenaram, no mesmo instante, o "golpe militar" e exigiram o retorno do golpista. Defenderam, inclusive, o boicote internacional ao país, e chegaram mesmo a flertar com a idéia de intervenção - algo que foi realizado explicitamente pelo governo de Hugo Chávez e do nicaragüense Daniel Ortega. Enquanto isso, a mesma OEA que condena os "golpistas" que depuseram Zelaya para salvaguardar a Constituição decide suspender a exclusão da ditadura comunista de Cuba da organização. Tudo em nome da "neutralidade", claro.

Os exemplos listados acima demonstram de forma bastante didática a falácia do discurso relativista aplicado à política. Há muitos outros exemplos, infinitos, que revelam que essa retórica não passa de uma capa para encobrir interesses inconfessáveis. Mas creio que esses três são eloqüentes o suficiente para revelar a fraude por trás do argumento. É impossível ser neutro diante do crime e da mentira. E isso não é uma opinião: é um fato.

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