Sarney e Lula: discurso de esquerda legitima velhos hábitos políticos
Uma das lorotas mais repetidas de todos os tempos é a de que os revolucionários e reformadores sociais, seja lá como se denominem - antes eram os comunistas, agora são os "bolivarianos" - têm por objetivo final a reparação de uma situação social injusta, na qual uma minoria se apropriaria do produto do trabalho coletivo e das riquezas do país em detrimento da maioria da população, condenada a viver na miséria. Trata-se de uma dessas mentiras que, como dizia o Dr. Goebbels (ele também, aliás, um socialista - ou vai dizer que o nacional-socialismo era uma ideologia adepta do livre mercado?), de tão repetida, acaba virando verdade na mente das pessoas.
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Em nome desse objetivo utópico - a "justiça social", como se convencionou dizer -, os revolucionários de ontem e de hoje estão dispostos a sacrificar tudo: a democracia, a legalidade constitucional etc., tidas invariavelmente como meras formalidades jurídicas, uma "forma disfarçada de ditadura da classe exploradora sobre a classe explorada", como gostam de dizer. A idéia subjacente é que as insituições democráticas - a Constituição, as eleições, o Parlamento - são mesmo um obstáculo à realização dessas reformas necessárias, um instrumento de conservação da opressão social, e não a manifestação da vontade soberana do povo. Logo, segundo os justiceiros sociais, tais instituições devem ser destruídas, substituídas por outras, mais adequadas à "vontade das massas", seja na forma da ditadura do proletariado ou da "democracia participativa e protagônica", ou outro rótulo qualquer.
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Tão fundo penetrou no senso comum essa forma de propaganda ideológica que muitos que não concordam com a idéia de revolução violenta, ou que apresentam reservas quanto às intenções autoritários de comunistas e socialistas em geral - o grosso da opinião pública -, fazem questão de dizer que estão de acordo, porém, com a necessidade de "mudança" e de "quebrar o poder das oligarquias". Desse modo, mesmo sem o saber, terminam comprando o discurso dos que querem destruir a democracia. "Fidel Castro é um ditador, mas fez algo por seu povo", ou "Hugo Chávez é um caudilho populista, mas está olhando pelos mais pobres", é o que se ouve há anos. A conclusão daí resultante é que todo aquele que se opuser a esses líderes personalistas é necessariamente um "gusano", um membro da burguesia ou da oligarquia, e que é movido muito mais por interesse próprio ou de sua classe do que por amor à democracia. Os que repetem esse discurso certamente não se dão conta, mas esse palavrório era utilizado por muitos liberais e democratas quando se referiam aos regimes de Hitler e Mussolini na década de 30 (Hitler, particularmente, adorava espezinhar a "aristocracia e a burguesia liberal e decadente"). Com a diferença de que, ao contrário de Cuba, por exemplo, na Alemanha e na itália a falta de liberdades veio acompanhada de certa melhoria do nível de vida da população (mas isso também é ignorado pela maioria das pessoas).
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Ainda que esse discurso fajuto de justificação da tirania tivesse algum pingo de verdade; ainda que, digamos, todos os opositores de Chávez ou de Fidel Castro não passassem de reacionários odientos e barões da indústria (o que está bem longe de ser verdade), eu continuaria dizendo que NADA, absolutamente NADA justifica o paredón e a censura. Vou mais além: nada disso justifica uma só gota de sangue, uma só violação da ordem constitucional, em nome do que quer que seja. Parafraseando Orwell, a finalidade da revolução não é outra coisa senão a própria revolução. Ou melhor: a finalidade da "mudança" não é a melhoria do nível de vida da população mais pobre - objetivo que pode perfeitamente ser atingido sem nenhuma ruptura institucional, como comprovam países como a Suiça e o Canadá -, mas unicamente o PODER. No caso dos revolucionários, o poder ABSOLUTO. É por esse objetivo, e não por qualquer outra coisa, que eles estão dispostos a sacrificar tudo - sobretudo a liberdade e a vida alheias. Se têm alguma dúvida, dêem uma olhada na Rússia após 1917 ou na China de Mao Tsé-tung e sua pilha de 100 milhões de cadáveres.
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Por que estou dizendo isso? Porque há muitos que, quando olham para países como Honduras ou a Venezuela, vêem não uma conspiração diabólica para a usurpação do poder e a instauração de uma ditadura por um autoproclamado salvador da pátria, mas tão-somente a disputa entre reformadores sociais e setores oligárquicos. Um amigo meu filósofo chegou a afirmar num artigo, meses atrás, que o debate sobre a tirania castrista de Cuba era uma questão de Vasco versus Flamengo (antecipando, assim, o Apedeuta, que usou a mesma metáfora futebolística para minimizar o massacre da oposição pela política religiosa no Irã). Ele não viu, ou não quis ver, que entre um ditador assassino que transformou seu país numa imensa prisão para dissidentes e os que se opõem a esse tipo de coisa está muito mais do que as paíxões de duas torcidas num jogo de futebol. O mesmo fenômeno se repete, agora, com relação a Manuel Zelaya, o presidente defenestrado de Honduras por tentar mudar inconstitucionalmente a Constituição e se eternizar no poder à la Chávez: muitos até concordam que ele seja um ridículo caudilho bananeiro, e que deseja mesmo mandar a democracia hondurenha às favas, mas acreditam piamente no discurso de que ele só quer o melhor para seu povo, sobretudo para os mais explorados, e que os opositores são todo teleguiados da CIA etc. etc.
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Bobagem. Besteira. Vejamos por quê.
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Manuel Zelaya, ao contrário do que já estão dizendo por aí, não é nenhum expoente das classes populares. Pelo contrário: é um oligarca, rico fazendeiro, anticomunista e "de direita". Quando foi eleito, em 2006, foi com uma plataforma claramente "neoliberal". Uma vez no poder, porém, converteu-se ao bolivarianismo. Não se contentou em ser dono de terras: queria ser dono do país. Queria, em outras palavras, transformá-lo em sua fazenda, onde pudesse mandar e desmandar a seu bel-prazer. E a "revolução bolivariana", com seu desprezo pela democracia e promessa de poder total, caiu como uma luva para esse seu plano. Nisso, aliás, Zelaya segue fielmente a trajetória de seu principal mentor, Hugo Chávez: guardo até hoje os panfletos de campanha de Chávez em 1998, quando, recém-saído da cadeia, para onde foi após a frustrada tentativa de golpe militar seis anos antes, ele se derrama em garantias retóricas ao empresariado venezuelano, prometendo implementar políticas econômicas responsáveis e não fazendo qualquer referência à "revolução bolivariana" ou "socialismo do século XXI". Esses slogans só apareceram no discurso chavista depois de consolidado seu poder pessoal, mediante frequentes referendos e mudanças constitucionais.
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Que Manuel Zelaya seja, ele mesmo, um representante da mesma classe que agora seus apoiadores bolivarianos acusam de reacionarismo não é de surpreender. Ao longo da História, os líderes revolucionários vieram não das camadas mais baixas, mas da elite (das "zelite"). Lênin nunca foi operário, assim como Fidel Castro, advogado filho de um latifundiário (já o ditador Fulgencio Batista, que ele substituiu, ex-sargento taquígrafo do exército e, além de tudo, mulato, era um verdadeiro representante das classes populares). Do mesmo modo, Salvador Allende era em tudo, até no trajar, muito mais um lorde inglês do que um campesino chileno. E o nosso João Goulart, tão incensado pelas esquerdas, estava mais interessado em cuidar de suas estâncias no Rio Grande do Sul e no Uruguai do que em melhorar o padrão de vida dos trabalhadores. Para citar apenas alguns.
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Não se trata apenas de demagogia: o fato de os revolucionários, com ou sem aspas, virem dos setores mais altos da sociedade demonstra que a chamada revolução bolivariana, assim como o esquerdismo em geral, não passa de um golpe de marketing e de uma técnica para políticos espertalhões que desejam se livrar dos empecilhos da democracia para se perpetuarem no poder. Para tanto, estão dispostos até mesmo a engolir o que disseram sobre antigos adversários, servindo de sustentação ao poder oligárquico que dizem combater. É o caso de José Sarney, antes inimigo, hoje o maior aliado do governo Lula. Este, que até bem pouco tempo atrás se apresentava como o sumo sacerdote da "ética" e que brindava em seus discursos o senador maranhense com adjetivos não menos gentis do que "corrupto" ou "ladrão", hoje defende com todos os meios a permanência do oligarca Sarney na presidência do Senado, com atos secretos e tudo, a ponto de declarar que este "não é uma pessoa comum", estando, antes, acima do restante dos mortais. Do mesmo modo, os petistas e seus aliados, antes inimigos do assistencialismo ("uma forma de adiar as transformações sociais", diziam), agora são seus maiores promotores, na forma do Bolsa-Família, o maior engodo eleitoreiro da História do Brasil, que não faz mais do que reproduzir as formas oligárquicas de dominação nas regiões mais atrasadas do País. Não, é mais do que simples demagogia e safadeza política: é uma clara demonstração de inversão psicótica.
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Repito: mesmo que Zelaya fosse um autêntico representante do povo, dos "excluídos" - como gosta de se apresentar o Apedeuta, aliás um ex-pobre -, isso não seria justificativa para o que ele quis fazer em Honduras. Seria até um motivo a mais para impedi-lo de concretizar seu golpe civil, mergulhando o país na guerra de classes. O golpismo dos ressentidos não é melhor do que o golpismo dos abastados.
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É uma enorme ilusão achar que os esquerdistas querem transformar a sociedade e diminuir as diferenças sociais: seu único objetivo é agarrar-se ao poder, custe o que custar - inclusive preservando velhos hábitos e vícios políticos. Sarney e Zelaya que o digam.
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