quarta-feira, novembro 14, 2007

DIÁLOGO ENTRE UM REVOLUCIONÁRIO DE ESQUERDA E UM PORCO DIREITISTA


Continuando a série "cartas e respostas" deste blog, recebi há alguns dias uma carta (reluto em usar a expressão e-mail, acho muito impessoal) de um velho conhecido meu dos tempos de universidade, para o qual eu havia enviado, meses atrás, meu texto "Como me tornei um reacionário"(http://gustavo-livrexpressao.blogspot.com/2007/06/como-me-tornei-um-reacionrio.html). Para minha surpresa - e, confesso, um pouco de decepção -, meu ex-camarada parece ter esquecido de mim e da época em que sonhávamos com a revolução socialista mundial que iria derrubar a burguesia e redimir a humanidade. Não sendo eu capaz de resistir à tentação, reproduzo aqui a missiva de meu ex-camarada, do jeito que ele mandou, com sua lógica perfeita e seu português impecável:

"Gustavo, acredito que sejas meu colega que trabalha na EMATER.

Lamentou muito o que aconteceu com vc. Concordo sobre o que dizes das biografias e em parte sobre o orkut. Realmente tem alguns amostrados. Já soube a biografia, vc tb é um grande exemplo: afirmar que enquanto jovem sempre teve sua opção sexual sem conflitos, verdadeiramente é tentar encobrir seus próprios impulsos "imaturos" (como diria vc).

Vc tem razão tb quando afirma q, mesmo eu, q pouco lhe conhecia, me surpreendi com seu texto. Têm muitas organizações ditas trotskystas que, acredito, vc tenha tido experiência em alguma delas, realmente esquisitas e até engraçadas se não fosse isso na realidade, tragicômico. E agora veja só, o que esta experiência trouxe para vc.

Eu não participei da mesma organização ultra q vc. Mas algumas características me pareceram familiar. Acredito q nem cabemos em uma kombi. Basta algo muito menor. Entretanto, não se mede a justeza política de um pensamento pelo número de adeptos. Isto eu aprendi quando jovem como vc e, agora mais velho, acredito mais ainda nisso. A luta política é assim mesmo. Vc fez o curso de História, sabe que a burguesia demorou séculos para conquistar o poder. Pq haveria os defensores da revolução comunista mundial ficarem depressivos pelo fato de estarem hoje restrito a uma meia dúzia ou menos de propagandístas? Para usar suas palavras, não sou impaciente e nem presunçoso ao ponto de achar que vou viver uma época diferene disso.

A divisão do movimento trotskystas deve-se a razões históricas. Isso significa pra mim que deve-se aos percurssos, dificuldades e até a morte de Trótsky que aconteceram no passado. As forças centrífugas do movimento trotskysta portanto, não são de hoje. Como acabar com esta divisão? Para mim é um problema prático e não teórico. Penso que somente com uma revolução atual vitoriosa.

A caracterização da ex-URSS não deve-se a radicalidade dos grupos mas ao estudo de sua formação social. A ex-URSS nunca foi socialista não pq estes grupos "extremistas" não queiram, poderiam até querer, mas a análise de sua formação social demonstra que não era. Fidel Castro como um burguês contra-revolucionário, bem, isso deve ser uma análise singular do grupo que vc participou e que, na minha opinião, demonstra um equivoco muito grande de seu antigo grupo.

A questão dos codinomes, atividades semi-clandestinidade e clandestinas destes agrupamentos tb são características comuns. Isso se dá devido a consciência de q não há democracia e a que existe, sendo de classe, pode ser suprimida. Evidentemente que não seria de uma hora para outra, mas nenhum grupo conseguiria se preparar apenas quando ela vinhesse. É preciso educar-se desde já. E o golpe de 64 no Brasil é uma prova na história de que a segurança dos grupos que defendem o fim do capítalismo é uma questão necessária e séria. Realmente, vc tem de nv razão, que possui um aspecto romântico. Mas, pelos poucos colegas que conheço que viveram a época de 64 - eu não a vivi - eles não acharam nem um pouco romântica.

Gustavo, realmente eu lamento que vc tenha tido uma visão de revolução tomando o Palácio de governo ou lutando em uma Sierra Maestra, fuzilando inimigos e alguns desafetos pessoais, etc. Não tenho esta visão. Não lembro se algum dia a tive. Mas com certeza, sua permanencia enquanto simpatizante durante muito tempo neste grupo e sua falta de relato sobre as leituras de Trótsky que marcaram sua vida, demonstra que vc, apesar de afirmar q estava um acima da "média" dos mortais normais (que diabo é isso? média? como vc calculou isso?), leu pouquissimo e o pouco que escutou não entendeu quase nada.

De tudo que vc escreveu, lhe peço que não me escreva mais - acredito q fará com prazer -, a única coisa que acredito vc ter razão completamente, é quando afirma que é um reacionário. Quem diria, uma pessoa que diz ter tido experiência em uma organização trotskysta terminar como um reacionário. Entretanto, para sua infelicidade, vc não é o primeiro, portanto, nem nisso sua vida tornou-se singular. Mas afinal, pra vc tb isso não importa. Então está td bem. Vc tb não é original quando afirma juventude imatura, irresponsavel de fácil manipulação e quando ficamos velhos ficamos mais inteligentes. Por favor, isso é tradicional demais.

Vc tem razão, VC SE TORNOU UM REACIONÁRIO."

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Sensibilizado com esse eco de meu passado, resolvi escrever ao meu ex-camarada. Eis a carta que lhe enviei, com algumas pequenas alterações de estilo:

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Olá Alessandro,

Não sou seu colega que trabalha na EMATER. Sinto muito.

Parece que você esqueceu quem eu sou, ou então não deve ser o Alessandro revolucionário que eu conheci alguns anos atrás, e que depois foi ser professor na UERN. Se for o primeiro caso, entendo. Afinal, já faz muito tempo, mais de quinze anos... Vou refrescar sua memória: sou aquele Gustavo com quem você tinha altas conversas sobre marxismo e revolução, primeiro na ETFRN e depois na UFRN, lá em Natal. Lembra?

Bom, depois dessa sessão nostalgia, permita-me dizer uma ou duas palavras sobre sua resposta tardia ao meu texto. Espero que não se importe, mesmo sabendo que você não deseja que eu lhe escreva.

Antes de qualquer coisa, só um esclarecimento, de caráter, digamos, biográfico: não disse que, quando mais jovem, sempre tive minha opção sexual "sem conflitos". Disse apenas que, de todas as dúvidas que se pode ter na adolescência, jamais as tive sobre minha opção heterossexual, da qual, aliás, me orgulho muito (se existe até uma parada do orgulho gay, acho que tenho direito de me orgulhar de nunca ter feito nenhuma concessão nessa área, não acha?). Sei que, para você, como revolucionário (ou seja: como um indivíduo certamente mais evoluído, muitos degraus acima do restante dos mortais), isso pode parecer meio "careta" e até mesmo "imaturo", como você disse. Para mim, foi apenas um exemplo que dei para ilustrar o processo de minha formação.

Meu caro Alessandro, não lamente o fato de eu ter me transformado num reacionário. Na verdade, sendo bem sincero com você, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, até agora. Isso mesmo. Descobri que sou um reacionário - e direitista, e conservador, e contra-revolucionário, e todos esses adjetivos com que os marxistas costumam brindar todos aqueles que não pensam como eles, como "agente da CIA" e "lacaio do imperialismo" - quando finalmente descobri, depois de muito refletir e principalmente VIVER, que a LIBERDADE - a liberdade burguesa mesmo, essa de falar o que se quer, quando se quer, sobre o que se quiser, sem pedir licença a ninguém -, a liberdade de pensamento, de expressão, de opinião, de reunião, de associação (até mesmo para defender a revolução socialista e o fim da democracia burguesa), a liberdade, enfim, é a coisa mais importante que existe. Mais importante que o pão. Mais importante que a tal "igualdade" defendida pelos revolucionários comunistas. Enfim, descobri-me um reacionário quando me dei conta de que eu jamais poderia viver - nem desejo que ninguém viva um dia - sob o tacão do TOTALITARISMO, que é o tipo de regime que os revolucionários marxistas - todos eles, de todos os matizes - desejam para a humanidade.

Participamos, sim, da mesma organização ultra-esquerdista. Chamava-se TPOR - Tendência pelo Partido Operário Revolucionário (francamente, até hoje não entendo essa "Tendência", mas deixa pra lá). Isso, claro, se você é o mesmo Alessandro que eu conheci. Nem sei se ainda existe a tal sigla e, se existe, francamente não me interessa muito. Com suas idéias ultra-radicais e sectárias, é difícil que alguém ainda lhe dê atenção. Mas esta não é a questão principal agora.

Alessandro, você afirma que "não se mede a justeza política de um pensamento pelo número de adeptos". Eu concordo com você. Hoje em dia, por exemplo, aqueles que colocam a liberdade e a democracia acima de quaisquer outras considerações são uma minoria no Brasil e no restante da América Latina. Aqueles que afirmam, como eu, que não existe esquerda "moderada", mas apenas esquerda ingênua e dissimulada, de um lado, e esquerda radical e totalitária, de outro, e que todas as correntes de esquerda - trotskistas, stalinistas, maoístas, castristas, reformistas etc. - são variações do mesmo viés totalitário, tendo em comum o mesmo ódio à liberdade e ao indivíduo, o mesmo desprezo pela democracia e pelo pensamento discordante, continuam a ser até mesmo discriminados como "de direita" e outras palavrinhas que você certamente conhece. Assim como você, acredito que a verdade de uma causa não é uma simples questão matemática. Creio que pelo menos uma coisa temos em comum, afinal.

Você também afirma lamentar que eu tivesse nessa época uma visão da revolução como se fosse a tomada do Palácio de Inverno ou a descida da Sierra Maestra, e que não defende essa visão. Eu também lamento isso. Principalmente porque era assim que eu visualizava o triunfo dos trabalhadores contra o capitalismo e o imperialismo, em meus delírios juvenis. Usei essas duas imagens porque eram e continuam a ser as duas imagens clássicas da revolução. Por isso acho tão estranho você agora negar que também via a coisa desse jeito. Afinal, que revolução - e socialista, ainda por cima - já foi feita no mundo sem derramamento de sangue dos burgueses e contra-revolucionários? Que revolução já triunfou em algum país sem fuzilamentos, sem expurgos, sem burocracia, sem gulag? Tudo bem que a dissimulação é uma arma dos esquerdistas, mas não precisa exagerar.

Mais um esclarecimento: não afirmei em meu texto que estava acima da "média" dos mortais, como você disse. Escrevi apenas que, quando eu ainda era um moleque entediado e presunçoso, leitor ávido de textos de esquerda (para seu conhecimento, guardo ainda hoje minha coleção de livros marxistas, como Que Fazer? e O Estado e a Revolução, de Lênin, e A Revolução Traída e Moral e Revolução, de Trotsky), lia um pouco acima da média de meus colegas de escola. Algo, aliás, que não é muito difícil de "calcular". Logo, ao contrário do que você imagina, eu li algo sobre o assunto, sim. Mas numa coisa você tem razão: na época eu não entendi muito. Na época, eu acreditei sinceramente que a revolucão proletária era o caminho para o fim das desigualdades e para a verdadeira emancipação humana. Só agora, depois de tanto tempo, é que percebo com clareza o que todos esses autores até hoje idolatrados pela esquerda marxista de fato defendiam: a supressão da democracia (mera ditadura disfarçada "de classe", na visão desse pessoal) e a instauração, em seu lugar, de um Estado totalitário, como de fato ocorreu em TODOS os países em que os comunistas tomaram o poder. Demorei para perceber esse fato. Deve ser porque eu, como um reacionário, ainda não estou à altura desses seres humanos tão iluminados e acima do restante da humanidade, que são os revolucionários marxistas. Talvez seja por isso.

Falando em livros, e como você parece ser alguém que dá bastante importância à leitura (no que me convenço ainda mais que é o Alessandro que conheci), recomendo alguns que você certamente vai achar muito interessantes: pode começar com O Livro Negro do Comunismo (Stéphane Courtois, ed., 1999). Mas se você achar muito básico e estiver interessado em algo, digamos, mais acadêmico, pode ler também O Passado de uma Ilusão (François Furet), A Grande Parada (Jean-François Revel), A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Karl Popper), O Caminho da Servidão (Friedrich Hayek) e O Ópio dos Intelectuais (Raymond Aron). Claro que são todos livros de autores "conservadores", "reacionários" e "direitistas", alguns deles até ex-comunistas desencantados. É possível que você, como bom revolucionário, os descarte logo de cara por causa disso, o que, aliás, não me surpreenderia nem um pouco. Mas pelo menos fica a sugestão.

Acho que já me alonguei bastante. Com certeza você tem tarefas importantes da revolução a cumprir. Espero ter deixado claro para você o porquê de minha opção político-filosófica. Desejo-lhe sorte em sua empreitada política revolucionária, e que você alcance o que quer. Peço-lhe somente uma coisa: que, quando vocês tiverem finalmente se apoderado do aparelho do Estado e instaurado a ditadura do proletariado, por favor poupe do fuzilamento este pobre reacionário e porco direitista que lhe escreve, e que um dia acreditou que o comunismo era uma coisa boa e que as nuvens eram de algodão. Acho que não é pedir muito. Ou será que é?

Abraços reacionários.

Ass.: Gustavo

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P.S1: Mais uma coisa. Não disse que, quando ficamos mais velhos, ficamos mais inteligentes. Se fosse assim, seria muito fácil, não seria preciso sequer pensar: bastaria contar quantos anos vivemos e pronto. O que disse e reafirmo é que, quando somos muito jovens, como era o meu caso quando participei de uma organização revolucionária marxista semi-clandestina, somos facilmente enganados e manipuláveis. Claro que isso não é uma regra absoluta. Algumas pessoas ficam até mais burras com a idade. É o que acontece quando insistem nos erros da juventude e continuam aferradas às mesmas ilusões de quando tinham 18 ou 19 anos. A ponto de rejeitarem essa simples constatação, como algo "tradicional demais". Essas pessoas, infelizmente, estão além do alcance da razão.
P.S2: Convenci-me que o autor da carta era a mesma pessoa que conheci há anos quando, em seu texto, ele fez referência aos codinomes e "regras de segurança" que devem ser seguidos pelos "revolucionários". A principal justificativa para esse tipo de paranóia era exatamente a mesma que está na resposta de meu ex-camarada: "não vivemos numa democracia de verdade e, sendo esta um regime de classe, nada garante que não seja revogada. Veja o que houve em 1964" etc. Daí o gosto dos "revolucionários" trotskistas por uma militância meio escondida, semi-clandestina, mesmo em pleno Estado de Direito Democrático. Hoje, estou convencido de que esse papo meio neurótico de "segurança" não tem nada a ver com o fato de vivermos numa "ditadura de classe", e que a relutância de nossos Lênins e Trotskys tupiniquins em exporem suas idéias, de forma clara e aberta, não resulta do receio de irem parar no xilindró, mas unicamente da incapacidade de sustentarem suas teses em público. Em outras palavras: do medo do ridículo. Algo, aliás, bem humano - bem burguês, como diria meu ex-camarada.
P.S3: Na foto que ilustra este texto, uma lembrança dos velhos tempos: meu ex-camarada discursando para as massas e eu, no canto esquerdo, conspirando discretamente pela derrubada da burguesia e pela vitória inexorável da revolução comunista mundial. Quem sabe agora ele lembre.

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