Dizem que dos mortos não se deve falar, muito menos se é para se falar mal. Dizem também que a morte melhora as pessoas. Tenho sérias dúvidas quanto à primeira afirmação, e discordo radicalmente da segunda. Há heróis que morrem uma morte miserável e canalhas que perecem heroicamente e/ou cobertos de glória, e isso não muda absolutamente nada do que foram ou do que fizeram em vida. De fato, a morte, salvo as exceções de praxe, não melhora nem redime ninguém. Ocorre, muitas vezes, o contrário: em alguns casos, à medida que se vai conhecendo melhor e mais profundamente os detalhes da vida do defunto, a admiração ou a simples reverência que geralmente é de praxe manter nesses casos dá lugar à decepção, até mesmo ao asco. É o caso de José Saramago, escritor português ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, falecido nesta sexta-feira, 18 de junho.
Sei, sei. Dirão alguns que não é de bom-tom dissecar o cadáver em pleno velório, se não por condolências à família, pelo menos por respeito e educação. Mas é preciso abrir uma exceção, haja visto o clima de unanimidade besta que se criou em torno do escritor lusitano após seu falecimento. Além do mais, estou certo de que Saramago não faria qualquer objeção a essa minha intenção necrófila. Certamente, como ateu e comunista, ele não teria esse escrúpulo pequeno-burguês.
Que fique claro. Não falo aqui do Saramago escritor, que pouco li (tentei encarar A História do Cerco de Lisboa, mas parei lá pelo meio do livro, desestimulado pelo estilo ilegível e pela ausência de vírgulas e de parágrafos). Por esse motivo não vou entrar em disputas ou picuinhas literárias. Falo, sim, do "crítico da sociedade". Ou, se preferirem, do "polemista" Saramago, tão ou mais celebrado do que o autor de A Jangada de Pedra e de Ensaio sobre a Cegueira. Este último, aliás, virou filme, o que mostra que mesmo um anticapitalista ferrenho como Saramago não conseguiu resistir às sereias de Hollywood. Mas divago.
Nos obituários que já estão circulando pela internet, assim como nas inevitáveis homenagens que virão daqui para a frente, algumas das palavras mais repetidas são/serão "lúcido", "humanista" etc. Haverá inclusive quem dirá, em tom de puro panegírico, que o morto era um defensor de causas justas e louváveis. Como é comum acontecer nesses casos, tentarão inventar um outro Saramago, feito somente de virtudes, e a hagiografia tomará o lugar da biografia. A nota do Itamaraty que li há pouco dá bem o tom do que se lerá nos próximos dias: logo após lamentar a morte do escritor, esta elogia sua "conduta pessoal" e o enaltece como "um exemplo de atuação engajada em favor de um mundo mais justo".
Esperem aí. Lúcido? Defensor de um mundo mais justo? Têm certeza de que estamos falando da mesma pessoa? Do mesmo Saramago?
Ora, nenhum desses adjetivos se ajusta ao biografado. Saramago podia ser tudo, até um escritor de talento. Mas daí a dizer-se que era um paradigma de lucidez e de justiça, convenham, vai uma distância intransponível. Para começo de conversa - e isso ele fazia questão de que não esquecessem -, ele era comunista. Assim como Oscar Niemeyer, era um admirador do Gulag e de Stálin. E, assim como o arquiteto brasileiro, recusava-se a mudar. Em uma entrevista em 2009, ele chegou a se definir como um "comunista hormonal", o que me dá mais um motivo para considerar o comunismo uma espécie de doença, talvez das glândulas. Em outra ocasião, ele disparou todo seu pessimismo, afirmando que "a humanidade não merece viver". Nesse sentido, é forçoso admitir, ele também estava falando mais como comunista do que como literato: afinal, os regimes que Saramago considerava paradigmas do humanismo, como o de Stálin na ex-URSS, o de Mao Tsé-tung na China e o de seu ícone Fidel Castro em Cuba, também pensavam do mesmo jeito que ele. Tanto que deixaram atrás de si um rastro de 100 milhões de cadáveres. Assim como era comunista, Saramago carecia totalmente de qualquer noção histórica. Em 2002, ele comparou a situação dos palestinos a Auschwitz (!). (Posso até vê-lo naquele navio turco do comboio dos amigos do Hamas, investindo contra os soldados israelenses com uma faca e um porrete, em nome da "paz"...)
Mesmo quando parecia ter alguns laivos de lucidez - o que era raro -, Saramago revelava seu apreço pelo dogmatismo. Assim ocorreu em março de 2003, quando a tirania de Fidel Castro, um de seus ídolos, fuzilou três pobres-diabos que tentaram fugir da ilha-prisão do Caribe. "Até aqui eu fui", declarou então Saramago, dando a entender que os milhares de fuzilados pelo regime castrista em mais de quarenta anos de ditadura não haviam causado qualquer peso em sua consciência. De qualquer modo, ele deu a muitos a esperança de que tinha se rendido, finalmente, aos fatos. De que havia, enfim, aberto os olhos para a realidade do totalitarismo cubano. Poucos meses depois, porém, lá estava ele, abjurando sua abjuração anterior. É que, uma vez comunista, sempre comunista, se se é estúpido. Ou, como se dizia na época do stalinismo: entre acertar fora do Partido e errar com o Partido, é melhor ficar com a segunda opção...
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Saramago morreu aos 87 anos. Teve tempo de sobra para rever suas posições e se arrepender de erros do passado. Mas não o fez. Pelo contrário, ele se esforçou para desmentir, com o correr dos anos, o velho ditado de que ficamos mais sábios e serenos com a idade. Nos últimos tempos, Saramago havia se reduzido a um porta-voz e um tocador de tuba para Hugo Chávez e outros "altermundistas", como um Noam Chomski ou um Ignácio Ramonet da vida. Um fim melancólico para um homem que sempre cultivou a melancolia, poder-se-ia dizer.
Poderão afirmar que essa é uma visão limitada sobre Saramago, e que ele não pode ser avaliado unicamente por suas opções políticas etc. Pois eu digo que não se pode separar o Saramago-escritor do Saramago-militante, do Saramago admirador de ditaduras. Digo mais: grande parte de seu fã-clube, que é enorme tanto no Brasil quanto em Portugal, é devido não a suas obras literárias, mas a suas opiniões políticas. Foram estas, atrevo-me a dizer, mais até do que seus livros, o que levou a Academia Sueca a lhe premiar com o Nobel em 1998 (a lista de ganhadores do Nobel nos últimos tempos, como Harold Pinter e Doris Lessing, parece reforçar essa impressão; nem falo do Nobel da Paz, o mais festejado, em que o critério puramente político está acima de qualquer mérito - aí está Barack Obama para comprovar). Se Saramago fosse unicamente o autor de Memoral do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou de A Viagem do Elefante, ouso afirmar, dificilmente seria reconhecido fora de Portugal. O que o tornou realmente famoso foi sua posição ideológica. Nesse sentido, ele não diferiu muito de outros laureados com o Nobel que colocaram sua pena a serviço do totalitarismo, como Jean-Paul Sartre e Pablo Neruda.
Estou sendo crítico demais? Ainda bem. Somos demasiadamente respeitosos, excessivamente reverentes em relação aos escritores. Talvez por haver tão poucos. É um traço de nosso subdesenvolvimento mental. Tendemos a enxergar intelectuais e artistas como seres iluminados, quase deuses, dotados de uma razão superior, acima do bem e do mal, e não como feitos do mesmo barro dos demais mortais. Aliás, como demonstra a inutilidade pomposa chamada Academia Brasileira de Letras, eles seriam mesmo imortais, só faltando voar e andar sobre as águas. Daí a resistência, eu diria psicológica, em lembrar fatos desagradáveis de suas biografias. Politicamente, Saramago era um cretino, uma verdadeira besta, um bobalhão de babar na gravata. Alguém precisa dizê-lo. A bem da verdade. Do contrário, para que existe a palavra escrita?
A morte de qualquer pessoa, ainda mais de um escritor consagrado, é uma lástima. Mas nem por isso se deve fazer concessões à hagiografia e sacrificar a verdade. Se eu tivesse que escrever o epitáfio de Saramago, seria com estas palavras: Aqui jaz um intelectual, mas não um sábio. Ou: Aqui jaz um escritor, não um humanista. Esta é a maior homenagem que posso fazer a ele.
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